Insetos no folclore brasileiro (parte 5): o pito do Saci

Agosto é o mês do folclore brasileiro. E o tema de hoje tem a ver com um dos grandões do folclore brasileiro: o Saci.

Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural.
Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera e Lepidoptera, sendo que recentemente vem se dedicando ao estudo da presença simbólica de animais nas manifestações culturais, a chamada zoologia cultural. Com mais de cem artigos científicos publicados, cerca de 200 trabalhos apresentados em congressos científicos, nove livros editados e sete capítulos de livros, orientou dez dissertações de mestrado e três teses de doutorado. É idealizador e editor do periódico A Bruxa, uma revista de biologia cultural, e do fanzine sobre ciência Homem-Leoa. É também o criador e organizador do Colóquio de Zoologia Cultural e da Mostra de Biologia Cultural.

21 de agosto de 2024

FAUNA NEWS Insetos no folclore brasileiro (parte 5): o pito do Saci

Desde 2020, ano de minha estreia no time do Fauna News, dedico algumas mal traçadas linhas para evocar a presença dos insetos nas manifestações da cultura popular brasileira. O primeiro desses textos sobre insetos e folclore [1] foi publicado em outubro de 2020 e, para os seguintes, providenciei uma adequada migração a agosto [2] [3] [4]. E estamos aqui, eu na escrita e vocês na leitura, celebrando pelo quinto ano consecutivo a relevância folclórica do grupo taxonômico dominante no planeta. E, é claro, em pleno agosto, o mês do folclore.

Adicionalmente aos grandes personagens dos mitos e lendas, alguns super famosos, como Saci Pererê, Matinta Perera, Lobisomem, Mula-Sem-Cabeça e Boitatá, além de outros não tão populares, nosso folclore é repleto de crendices, causos, visagens e outras narrativas do povo. Tudo isso compõe o maravilhoso repertório da cultura popular, a sabedoria do povo, fonte inesgotável de inspiração para se falar de tudo, inclusive insetos.

O tema de hoje tem a ver com um dos grandões do folclore brasileiro, o Saci. Segundo muitas narrativas, um menino negro, de uma perna só, muito arteiro, que se locomove em redemoinhos, porta uma carapuça vermelha na cabeça e manuseia um cachimbo. Esse último instrumento aproxima o Saci ao fumo ou tabaco, objeto de cobiça e barganha de muitos seres folclóricos [5]. Um dos muitos nomes populares do inseto ora abordado é exatamente “pito-de-saci’, por causa da semelhança anatômica com o cachimbo portado pelo menino zoeiro. Sim, chegou o dia de eu falar um pouco mais sobre o folclore das libélulas.

Pois é, se nos folclores do Hemisfério Norte são comuns as fadinhas e outros elementais ostentando asas de libélulas [6], aqui no Brasil esse carismático grupo de insetos também está presente em interessantes narrativas populares. Integrantes da ordem Odonata, as libélulas já foram abordadas neste espaço [7] [8] [9], até mesmo com menções relacionadas ao folclore. Algumas bem bizarras, diga-se de passagem, como a que diz que no interior de Pernambuco rapazes conquistadores torram e reduzem libélulas a pó, que é utilizado em estratagemas de sedução [2].

Libélulas

As libélulas estão entre os insetos mais populares e são dos poucos que não provocam ojeriza. Muito pelo contrário, são até usados em prosa, verso ou canção por artistas Brasil afora, possivelmente por sua elegante beleza, voo rápido, determinado e preciso, e atitude ostensiva. Por exemplo, músicas de nomes de destaque de nosso cancioneiro, como Elza Soares, Chico Buarque e Zeca Baleiro, celebram as libélulas, caso também de muitas outras manifestações artísticas [10].

Essa popularidade resulta em um sem-número de nomes comuns com os quais o grupo é brindado. No texto em que brinquei com os nomes de insetos alusivos ao cavalo [11], menciono os nomes “cavalo-do-cão” (não confundir com alguns marimbondos grandões, da ordem Hymenoptera, que também recebem essa alcunha), “cavalinho-do-diabo”, “cavalo-do-diabo”, “cavalo-de-judeu”, “cavalinho-de-judeu”, “cavalo-judeu” e “cavalinho-de-são-jorge”. Além desses, e dos supramencionados “pito-de-Saci” e “libélula”, esses belos insetos também são conhecidos por aqui e acolá como “lava-bunda”, “lavadeira”, “molha-bunda’’, “lava-cu”, “zigue-zague”, “zig-zag”, “zig-zig”, “aguadera”, “aviãozinho”, “catarina”, “cabra-cega”, “calunga’, “fura-olho”, “guigo”, “jacinta”, “jacina”, “papa-mosquito”, “papa-vento”, “pica-fogo”, “pito”, “pito-do-coisa-ruim”, “pito-do-demo”, “tangerina”, “zabumba”, “helicóptero”, “cigarra”, “cigarrinha” (possivelmente referente ao cigarro, sem associação aos insetos da ordem Hemiptera), “macaco”, “macaco-seco”, “assa-peixe”, “olho-de-peixe”,“donzelinha” [12] e “libelinha”, esses dois últimos mais relativos aos integrantes da subordem Zygoptera, costumeiramente mais delicados em oposição aos integrantes da subordem Anisoptera, mais possantes.

Recentemente foi publicado na revista A Bruxa, dedicada à biologia cultural, o interessante artigo “O zigue-zague das libélulas (Insecta: Odonata) na cultura brasileira: uma análise bibliográfica” [12], de autoria de pesquisadores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas, em Inconfidentes, Minas Gerais. Nele, é colocado que as libélulas estão presentes em lendas e crenças de diversos povos brasileiros. Como acontece, por exemplo, no povo amazônico Baniwa, para o qual os machos das famílias Pseudostigmatidae e Polythoridae, que apresentam asas cintilantes, são associadas a Nhãpirikuli, considerado o deus criador. Também entre os Baniwa, uma narrativa conta a viagem mítica de Niãpirikoli e seus irmãos ao igarapé Pamáali, região de moradia tradicional do grupo Walipere, onde na foz de um igarapé há uma pedra chamada Ñepoli (libélula), que não deve ser tocada, pois, caso isso aconteça, haverá um dilúvio.

Ademais, esses indígenas acreditam que aquele que toca a pedra fica zanzando de um lado para o outro, em possível alusão ao voo em zigue-zague das libélulas. O fato é que, para muitos de nossos povos originários, as libélulas são um símbolo positivo. É o que acontece com os amazônicos Tembé, que contam uma narrativa em que uma multidão de libélulas, lideradas por Tatina, esvaziou de água certo trecho de rio, possibilitando a farta pescaria por parte dos indígenas [13].

Ainda quanto à religiosidade, em muitas sabedorias da Umbanda e do Candomblé as libélulas são associadas à orixá Oxum [14], ligada às águas doces – por sinal, nada mais adequado, visto que esses insetos passam os estágios imaturos em ambientes dulçaquícolas [7].O trânsito do ambiente aquático para o terrestre pode ser um dos fatores que fazem com que as libélulas sejam frequentemente consideradas como símbolos de transformação, renovação e crescimento espiritual [15].

No que refere à cultura popular, em Piracicaba, São Paulo, uma superstição diz que se uma libélula pousar na vara de um pescador, ele não terá sorte na pescaria do dia [13]. E em muitas regiões do Brasil há o hábito, especialmente entre as crianças, de se capturar libélulas ou outros insetos voadores, amarrá-los com linha ou barbante e usá-los para “brincar” de aviãozinho [6] [12]. Trata-se de uma prática que deve ser culturalmente combatida, posto que, obviamente, causa desnecessário estresse ao animal [12], isso para dizer o mínimo.

Em termos de terapêutica popular, a única menção sobre o uso de libélulas é no estado de Alagoas, especificamente no povoado de Marituba do Peixe, onde espécimes das famílias Aeschnidae e Coenagrionidae são utilizados no preparo de um chá usado para tratar picadas de cobra [16]. Nesse caso, vale sempre enfatizar que terapêuticas não oficiais não são, de forma alguma, indicadas para casos de acidentes ofídicos – situação em que é fundamental que se procure atendimento médico adequado, com a eventual administração do soro antiofídico específico, conforme o caso.

Por fim, só me resta torcer para que a magia alada das libélulas, que encanta há milênios nossos povos originários, permaneça atiçando a imaginação popular dos interioranos desse Brasilzão sem porteira. E, assim, contribua para uma percepção mais justa de nossa parte para com os insetos e suas incríveis façanhas – maravilhosamente reais ou lindamente fantasiosas. Que o Saci e seu pito continuem ziguezagueando por aí ao longo de todo o ano. Um viva à cultura popular. Até mês que vem.

Referências

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Sobre o autor / Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural. Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera […]