
Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
invertebrados@faunanews.com.br
Na escola, aprendemos que o Brasil tem em sua composição cultural elementos dos indígenas, os moradores originais; do colonizador branco ocidental, preponderantemente português; e do trabalhador escravizado trazido da África, em uma das maiores atrocidades que a humanidade foi capaz de conhecer. Essa composição que nos é ensinada é uma simplificação extrema, estando longe de representar a situação real.
Os índios são, na verdade, um somatório de povos distintos, cada qual com sua cultura e costumes próprios; aos portugueses somaram-se outros colonizadores europeus; e, por fim, nossa diáspora africana – a maior fora da África – é formada por diferentes nações. Posteriormente, acréscimos de trabalhadores procedentes de todas as partes do mundo, vindos para cá em busca de condições melhores de sobrevivência, moldaram essa mistura complexa e heterogênea de nações e etnias, simplificadamente chamada de “povo brasileiro”.
Com tão grande mistura, é natural que tenhamos um folclore igualmente diversificado – possivelmente o mais rico do mundo. Nossas lendas e mitos têm pontos de ligação e proximidades com os de outros países latino-americanos, africanos, europeus e orientais. O folclore brasileiro é uma amostra do folclore de todas as partes do planeta.
Os insetos, por sua vez, são o grupo mais numeroso, presente e encontradiço de seres vivos da Terra. Com em torno de um milhão de espécies descritas (e, segundo estimativas, até 100 milhões de espécies ainda por descrever), nosso relacionamento com esses animais é frequente. Certamente muito além do que gostaríamos, na maior parte das vezes. Não é de se surpreender, assim, que os insetos sejam componentes importantes em muitos causos do folclore brasileiro. Mas nem sempre a gente se dá conta disso. Nada melhor do que a proximidade com o dia 31 de outubro, o famoso Halloween ou Dia das Bruxas na América do Norte e, por aqui, batizado com propriedade como o Dia do Saci para se contar alguns dos nossos causos entomológicos.
Uma lenda bem disseminada pela Região Sul do Brasil é a do Negrinho do Pastoreio. Com elementos da mitologia africana e cristã, a lenda surgiu provavelmente no século XIX. Ela conta a história de um menino escravizado que sofria muito com os maus tratos de um fazendeiro. Em um determinado dia, o fazendeiro mandou que o menino cuidasse de alguns cavalos, porém, desafortunadamente, um fugiu. O dono, quando retornou, sentiu falta do cavalo baio e reclamou com o menino. Após sair em busca do cavalo perdido, o menino chegou a encontrá-lo, porém, não o conseguiu capturar de volta. Furioso, o fazendeiro resolveu castigar o menino com muitas chibatadas e, além disso, lançá-lo num formigueiro, onde foi deixado até a morte. Entretanto, no dia seguinte, o fazendeiro se deparou com o menino vivo [1].
Como em toda boa lenda, há variações, mas, via de regra, em todas as versões da lenda o menino, como punição, foi abandonado em um formigueiro e devorado pelas formigas – para posteriormente aparecer na frente do agressor [2]. A lenda era muito contada no final do século XIX, especialmente por aqueles que defendiam o fim da escravidão. Atualmente, em muitas localidades do Sul do Brasil, acredita-se que se algum objeto estiver perdido, o Negrinho do Pastoreio pode ajudar a encontrá-lo. Para isso, basta acender uma vela perto de um formigueiro, pedir com muita fé e o objeto reaparecerá [1].
À luz da Entomologia (a Ciência que se encarrega do estudo dos insetos), é fascinante fazer um exercício de dedução para estimar qual teria sido a espécie de formiga (Hymenoptera: Formicidae) que inspirou a lenda do Negrinho do Pastoreio. Para tal, alguns requisitos seriam necessários às formigas candidatas, como o fato de serem comuns em pastagens sulistas, terem um formigueiro ao menos razoavelmente grande e hábito alimentar carnívoro. Formigas com grandes mandíbulas, mas cortadoras de folhas, como as saúvas e formigas-quem-quem, estão descartadas. Solenopsis richteri Forel, 1909, popularmente conhecida como lava-pés-preta, poderia ter sido um bom palpite, pois trata-se de uma espécie descrita da Argentina e com ocorrência no Sul do Brasil [3]. Mas como algumas versões da lenda dizem que a formiga em questão é vermelha, ela também acaba sendo descartada.
Quem nos socorre é o mirmecólogo (especialista em formigas) Rodrigo Feitosa, mestre e doutor em Entomologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal do Paraná. Conhecedor da lenda do Negrinho do Pastoreio desde quando, ainda menino, a escutava cantada na voz de Inezita Barroso [4], o professor Rodrigo considera que “a formiga em questão deveria definitivamente ser Solenopsis invicta Buren, 1972, a popular lava-pés! Muito agressiva e abundante nas pastagens sulinas, além de fazerem ninhos acima do solo”.

O Negrinho do Pastoreio representa a lembrança de uma época terrível, em que parcela significativa da população brasileira, inclusive crianças, sofria tratamento desumano. O tempo passou e, em que pese os progressos sociais e culturais da humanidade, ainda hoje tudo isso soa como cruelmente atual. Insetos muito presentes em nosso cotidiano, tanto no meio urbano quanto no rural, não surpreende que as formigas tenham papel central em uma lenda, ainda mais em uma de grande importância simbólica.
Outro inseto rico em histórias e lendas é um tipo muito esquisito de cigarra, a jequitiranaboia (gênero Fulgora Linnaeus, 1767 – Hemiptera: Fulgoridae). No célebre Dicionário do Folclore Brasileiro [5], obra do maior folclorista nacional, Câmara Cascudo, há um verbete específico para o estranho inseto, cuja quantidade de nomes comuns listados já dá mostra da importância cultural do bicho: jaquiranaboia, tiranaboia, jitiranaboia, cobra-de-asa, cobra-do-ar, cigarra-cobra, cigarra-doida e yakira, mboy. Bióloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a entomóloga Luci Coelho, mestre em Entomologia pela Universidade Federal de Viçosa e doutora em Zoologia pelo Museu Nacional (UFRJ), acrescenta ainda mais nomes à Fulgora: cigarra-amendoim, cabeça-de-amendoim, cabeça-de-jacaré, cobra-jacaré e cigarra-jacaré.
Ainda segundo a bióloga Luci, as crendices dizem que o “veneno” do inseto resseca as árvores e que seu voo é cego, mas em linha reta, sempre com o “ferrão” apontando para frente. Com isso, a jequitiranaboia seria capaz de “espetar” as pessoas e matá-las com seu veneno. Ah, diz-se ainda que se o inseto estiver voando e pousar no peito de alguém, suga-lhe a alma. É impressionante como esse inseto inofensivo e fitossuccívoro (que se alimenta, por sucção, de seiva vegetal) é famigerado! Até mesmo naturalistas históricos relataram o terror provocado por ele: Von Martius, em 1819, visualizou um exemplar em voo, lá pelas bandas do Rio Negro, na Amazônia, e testemunhou o desespero dos índios, se atirando nas águas para fugir do “monstro” [5] e Henry W. Bates, também na Amazônia, relatou o “ataque” de uma jequitiranaboia à uma embarcação, matando (?!??) oito dos nove tripulantes.

Saindo um pouco do Brasil, os causos sobre esse curioso inseto assumem uma abordagem um pouco mais picante. Uma crença na Costa Rica diz que se uma pessoa jovem for “ferroada” pelo inseto, a única forma de evitar a morte é ter relação sexual em menos de 24 horas; se a vítima for um homem, o melhor antídoto seria uma virgem. Na Colômbia, um dos nomes dados a esse inseto é “machaca”, sendo a expressão “picado por la machaca” usada para designar uma pessoa de grande apetite sexual [6]. Será que o aspecto algo fálico da projeção da cabeça da jequitiranaboia tem a ver com essa visão sexualizada?
Dentro dessa visão folclórica sexualizada acerca dos insetos, provavelmente pouca coisa vai ser capaz de superar o que é dito sobre alguns integrantes da ordem Lepidoptera, que inclui as borboletas e mariposas. Por sinal, as crendices faladas sobre o grupo já foram tema de uma coluna aqui, especificamente em relação à mariposa-bruxa [7]. Mas o que será abordado agora é relativo às formas imaturas, as lagartas. Prepare-se para o que vem por aí, prezado leitor, pois bizarrice pouca é bobagem.
Segundo relatos em alguns povoados, as lagartas teriam uma estranha relação com mulheres humanas grávidas, até mesmo virgens. Em Nuku Shedivawe Xina – Sabres do Céu e da Terra [8], livro que aborda a cultura e identidade do povo Jaminawa, da Amazônia, há um causo perturbador. Conta-se que duas primas foram ao roçado arrancar macaxeira (aipim ou mandioca, de acordo com o local do Brasil), na parte da tarde, sendo que uma delas estava grávida. A que não estava grávida pegou uma lagarta da macaxeira ou mandarová [provavelmente da espécie Erinnyis ello (Linnaeus, 1758) – Sphingidae] e jogou na prima. Ao bater na grávida, o mandarová “entrou” pela barriga. Passou o tempo e a criança nasceu, bem antes do que seria normal, e tinha o jeito e as feições de uma lagarta. O bebê-lagarta era muito voraz, clamando sempre por atenção total da mãe, quase lhe decepando o peito de tanto que mamava. Todos estavam com muito medo e decidiram abandonar a criatura e fundar uma nova aldeia. Tempos depois, o pai retornou à aldeia antiga, viu a lagarta sobre de um pedaço de rede, com muitos excrementos no chão e decidiu colocar fogo na casa. A lagarta pegou fogo e explodiu.
Outros relatos amazônicos dizem que a mulher menstruada deve ter muito cuidado, ficar de resguarde e jamais passar por sobre um rio. Se a mulher menstruada passar por cima de uma lagarta, ela “cria” lagarta (ou seja, engravida da lagarta), mesmo sendo virgem. E acaba dando luz a um “saco de lagartas” [9]. Relato semelhante foi contado ao pesquisador Andriolli Costa, mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Conhecido como o Colecionador de Sacis, Andriolli recebeu, no episódio 25 do podcast Poranduba [10], a parteira Jaçanã, da etnia pataxó do sul da Bahia. Ela, após reforçar que a mulher menstruada tem que se reservar, ter cuidado com uma série de elementos da natureza e não pode exercer funções, contou a história de uma familiar virgem que foi ao mangue, sendo seguida por uma lagarta mãe-de-sauí, que ficou se esfregando nos rastros da menina. Isso teria sido o suficiente para a menina “engravidar” da lagarta e morrer algum tempo depois. Pelo nome e pela descrição, seria a lagarta de mariposas da família Megalopygidae, capaz de provocar queimaduras muito doloridas. Curiosamente, trata-se de lagarta que não tem um formato fálico, sendo completamente coberta por longas cerdas e, por isso, também chamadas de lagartas-cachorrinho ou lagarta-gatinho.
Há muitos outros relatos da Entomologia folclórica, incluindo especialmente os insetos das ordens Odonata (libélulas), Orthoptera (gafanhotos, grilos, esperança), Blattaria (cupins, baratas), Mantodea (louva-a-deus), Hemiptera (percevejos, cigarras), Hymenoptera (formigas, vespas, abelhas), Coleoptera (besouros) e Diptera (moscas, mosquitos). Mas isso pode vir a ser assunto para uma próxima prosa.
Para finalizar, fugindo um pouco do assunto da coluna, nessas lendas e causos envolvendo insetos, bem como em muitas manifestações folclóricas brasileiras de um modo mais geral, estão presentes posicionamentos sociais discriminatórios e indesejados, como o racismo e o machismo, ainda fortemente arraigados no Brasil. O ataque ao diferente, o preconceito, o punitivismo, a valorização da virgindade feminina e da promiscuidade masculina e a culpabilidade comportamental e biológica da mulher são figuras sociais recorrentes no nosso folclore – reflexo direto da sociedade brasileira.
Referências:
[1] https://www.todamateria.com.br/negrinho-do-pastoreio/
[2] https://www2.ufpel.edu.br/prg/sisbi/bibct/acervo/lendasdosul.pdf
[3] https://siteantigo.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/direito/acidentes-e-intoxicacoes-picadas-de-formigas/2831
[4] https://www.youtube.com/watch?v=E0H3jo3clbY
[5] Cascudo, L.C. 2012. Dicionário do folclore brasileiro, 12ª edição. Global Editora.
[6] Costa-Neto, E.M. 2004. Fatos reais e lendários sobre a jequitiranabóia. Ciência Hoje 34(201): 66-68.
[7] https://faunanews.com.br/2020/05/20/verdades-e-lendas-da-mariposa-bruxa/
[8] Padilha, R. N. et al. (organizadores). 2019. Nuku Shedivawe Xina – Saberes do céu e saberes da terra. Casa Leiria.
[9] Neri, I.T.T. 2018. Cartografia de saberes de mulheres ribeirinhas em uma classe hospitalar na Amazônia paraense. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade do Estado do Pará.
[10] https://colecionadordesacis.com.br/2018/11/22/poranduba25/
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