A caça é uma prática ligada, originalmente, à sobrevivência dos homens. Nos primórdios da história humana, perseguir e abater animais silvestres era a forma de conseguir parte da dieta que mantinha as pessoas vivas. Era uma necessidade.

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A humanidade evoluiu em suas práticas para garantir alimentos. A agricultura permitiu o sedentarismo, ou seja, o surgimento de comunidades fixas, que se transformaram em vilas e cidades. A criação de animais para consumo da carne e de suas partes, como o couro, também começa a ser praticada.

Com o passar dos séculos, a caça perde importância como forma de conseguir alimento em grande parte das culturas. A carne passa a ser um produto fornecido pela pecuária, que hoje já é uma indústria. Mesmo assim, a prática da caça não acabou.

Além de populações tradicionais que ainda dependem da caça para conseguir carne, como indígenas, há uma grande quantidade de países que permite a prática como forma de entretenimento, como expressão cultural ou como ferramenta de conservação e de garantia da manutenção da saúde pública.

Com o crescimento dos movimentos conservacionistas e de proteção animal, a caça passou a ser um dos temas mais polêmicos dentro do ambientalismo e das políticas públicas de meio ambiente.

No Brasil

As duas principais peças legais que tratam do assunto são a Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967 (Lei de Proteção à Fauna) e a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais).

A Lei de Proteção à Fauna é, basicamente, resultado de sucessivas alterações da legislação que aborda a caça no país. Enquanto colônia portuguesa, o Brasil estava subordinado às leis de sua metrópole. Entre 1500 e 1521, era aplicado o conteúdo das Ordenações Afonsinas. Essa compilação de leis foi modernizada, passando então a viger as Ordenações Manuelinas que, em 1603, foram substituídas pelas Ordenações Filipinas. Em todas elas, havia leis que tratavam da caça.

Apesar de o Brasil ter suas próprias constituições desde 1824, somente em 1916, com o primeiro Código Civil nacional, as Ordenações Filipinas deixaram de ser totalmente aplicadas. No Código havia cinco artigos tratando da caça (do 594 ao 598), que era amplamente permitida, praticada e não fiscalizada. Até a década de 1930, a legislação brasileira que abordava fauna silvestre o fazia sob o aspecto da prática da caça e da propriedade do animal abatido. Animais selvagens eram considerados res nullius, ou seja, “coisas sem dono”.

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Organização legal da caça como atividade
econômica e de lazer

Com a chegada ao poder do projeto de Getúlio Vargas, em 1930, houve grandes mudanças no enfoque das leis de proteção ambiental no país. Pesquisadores defendem que o Executivo e o Legislativo federais sofreram influência e pressão de movimentos de ambientalistas que começavam a se organizar no Brasil, inspirados pelo ideário preservacionista norte-americano. Em 1933, por exemplo, aconteceu, no Rio de Janeiro (capital do Brasil, na época), a Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza, que contou com a participação de cientistas, jornalistas e políticos. No mesmo ano, em Londres, realizou-se a Convenção para Preservação da Fauna e Flora em Estado Natural.

O projeto de Vargas de modernização do Estado e as influências dos primeiros ambientalistas organizados do país afetaram o olhar do poder público sobre o meio ambiente. Em 1934, entram em vigor o Código de Caça e Pesca (Decreto nº 23.672, de 2 de janeiro), o primeiro Código Florestal do país (Decreto nº 23.793, de 23 de janeiro), que teria sido elaborado com vários subsídios da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza, o Código de Minas (Decreto nº 24.642 de 10 de julho) e o Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 10 de julho).

Nesse contexto, normas que organizam a caça como atividade econômica e de lazer são concentradas na nova legislação de 1934, que terminou sendo substituída pelo Decreto-lei nº 5.894, de 20 de outubro de 1943. A lei da década de 40 foi revogada em 1967, quando entrou em vigor a Lei de Proteção à Fauna. Os animais silvestres deixam então de ter o status jurídico de res nullius (“coisas sem dono”) e passam a ser propriedade do Estado (bens semoventes, ou seja, que possuem movimento próprio).

Não é necessária uma leitura muito atenta para perceber que a Lei nº 5.197 de 1967, com seus 38 artigos, é mais uma versão dos códigos que regulamentam e disciplinam a prática da caça desde a década de 1930 do que propriamente uma iniciativa de conservação da fauna.

Artigo 1º – Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.

Artigo 2º – É proibido o exercício da caça profissional.

Artigo 3º – É proibido o comércio de espécimes da fauna silvestre e de produtos e objetos que impliquem na sua caça, perseguição, destruição ou apanha.

§ 1º Excetuam-se os espécimes provenientes de criadouros devidamente legalizados.

§ 2º Será permitida mediante licença da autoridade competente a apanha de ovos, lavras e filhotes que se destinem aos estabelecimentos acima referidos, bem como a destruição de animais silvestres considerados nocivos à agricultura ou à saúde pública.”

Lei n 5.197/1967

Ainda assim, houve uma restrição à prática, já que a caça profissional, ou seja, com finalidade de comercialização de carne e de partes dos animais (como peles) foi banida. Manteve-se a caça como forma de abate de animais considerados nocivos a atividades agrícolas (como hoje com os javalis – Sus scrofa – e javaporcos) ou à saúde pública.

A caça como prática considerada esportiva e de entretenimento foi mantida.

Artigo 6º – O Poder Público estimulará:

a) a formação e o funcionamento de clubes e sociedades amadoristas de caça e de tiro ao voo objetivando alcançar o espírito associativista para a prática desse esporte.”

Lei n 5.197/1967

Impacto da caça comercial na fauna brasileira

Há quem afirme que a proibição da caça comercial e a maior restrição à caça esportiva foi uma forma de o governo militar desarmar a população após o golpe de 1964. No Congresso Nacional, os relatórios das comissões de discussão do projeto que resultou na lei de 1967 destacam somente os impactos negativos à fauna consequentes da caça descontrolada, como redução de populações de várias espécies e o aumento de outras pela falta de predadores.

Em artigo científico publicado em 2016 na revista Science Advances, um grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros divulgou dados impressionantes a partir do doutorado do biólogo André Antunes no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Após vasculhar e analisar documentos oficiais, ele e os outros cientistas calcularam que cerca de 23 milhões de animais silvestres, de ao menos 20 espécies, foram mortos em Rondônia, Acre, Roraima e Amazonas para atender o comércio de couros e peles entre 1904 a 1969.

Em Belém e Manaus, era possível comercializar peles e couros de onça-pintada, maracajá-açu, maracajá-peludo, ariranha, lontra, queixada, caititu, veado-vermelho, capivara, peixe-boi, jacaré-açu, anta, cutia, mucura d’água, tamanduaí, jacaré-tinga, iguana, sucuri, jiboia, jacuraru e jacuruxi. Para Antunes, o número de animais abatidos é maior, pois em seu trabalho não constam os contrabandeados, os que morreram após serem feridos e conseguirem escapar e as peles e couros descartados por problemas de qualidade

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Caça esportiva no Brasil

Apesar de a lei de 1967 permitir a caça esportiva, a atividade não é praticada no Brasil desde 2008, quando a Justiça a proibiu no único Estado em que ocorria, o Rio Grande do Sul.

A Lei de Crimes Ambientais indica as punições penais para quem caçar sem autorização do poder público. As penas previstas para os infratores (artigo 29) variam de seis meses a um ano, o que credencia o ilícito para ser um crime de “menor potencial ofensivo” pela Lei 9.099/1995, passível portanto de o infrator aceitar a proposta de transação penal obrigatoriamente oferecida pelo Ministério Público. Ou seja, pagamento de cesta básica ou de alguma quantia em favor de atividades de conservação para não ser processado. Assim como o tráfico de animais, a caça é um crime incentivado pela impunidade.

Pela lei, o abate de animais de espécies ameaçadas de extinção e a caça profissional fazem com que as penas sejam aumentadas.

Legalização da caça no Brasil

Inúmeras são as tentativas de parlamentares que representam interesses das indústrias de armas e munições, de setores mais retrógrados do agronegócio e de pequenas parcelas da sociedade envolvidas com a caça como entretenimento em legalizar a atividade no país ou ao menos conseguir facilidades para sua prática – principalmente a esportiva. Ambientalistas têm se mobilizado para combater tais iniciativas e reforçar na sociedade a consciência contrária à caça.

É importante destacar que pesquisas têm destacado uma aversão dos brasileiros pela caça. A ONG WWF-Brasil encomendou ao Datafolha, em 2022, um trabalho sobre o tema e o resultado indicou que 90% da população do país é contra a prática. Em 2019, outra pesquisa encomendada pela mesma instituição, desta vez ao Ibope, chegou ao resultado de 93% se opondo à caça.

O próprio governo brasileiro, por meio do Ibama, encomendou uma pesquisa em 2003 (“Pesquisa de Opinião Pública – Utilização de Animais Silvestres”) e 90,8% dos brasileiros já eram contra a prática.

Em geral, os apoiadores da liberação da caça esportiva afirmam que parte do dinheiro arrecadado com a atividade pode ser investido em projetos de conservação, que o abate seletivo de animais de algumas espécies pode ter efeito positivo em determinados ecossistemas e que muita gente deixaria de praticá-la ilegalmente. Mas a realidade mostra-se diferente até em países onde a caça esportiva é regulamentada, pois a sua prática ilegal persiste e há um empobrecimento da biodiversidade local.

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No Brasil, deve-se também destacar o insuficiente sistema de fiscalização, que não daria conta de mais uma atividade a ser realizada, e o aumento do número de armas em circulação em uma sociedade bastante violenta. A carência de pesquisas sobre animais silvestres também é um impeditivo para qualquer menção sobre a legalização da caça comercial ou a liberação da esportiva. Sequer conhecemos a dimensão das populações de boa parte das espécies da fauna para embasar qualquer estudo que vise selecionar animais para serem alvo da atividade.

Pesquisadores também afirmam que a fauna nativa do Brasil tem como características uma alta biodiversidade e uma baixa densidade populacional por espécie, situação diferente das nações que mantêm a caça legalizada como os EUA, o Canadá e alguns países da África. Outro fator é o alto endemismo (ocorrência de espécies somente em um local), o que aumenta bastante a possibilidade de a caça gerar instabilidade nas populações faunísticas.

Isso sem entrar na discussão ética sobre o direito de matar por lazer, o sofrimento dos animais, o cruel uso de cães e o estímulo à violência.

Posição do Fauna News

O Fauna News é contra as caças comercial e esportiva de animais silvestres, seja no Brasil ou em qualquer outro país. A prática da chamada caça de subsistência tem de estar restrita a indígenas, conforme está determinado no Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973). Em comunidades isoladas, o poder público deveria atuar no incentivo à criação de animais domésticos e atuar para garantir segurança alimentar.

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Como combater

A caça ilegal é uma atividade que tem de ser combatida com uma série de medidas. Em resumo:

  • programas de geração e substituição de fonte de renda para redução da pobreza nas áreas de vulnerabilidade social, onde caçadores são contratados para o fornecimento de carne a centros consumidores;
  • repressão eficiente e sem corrupção;
  • legislação com punição severa;
  • educação ambiental com a disseminação de informações sobre os impactos negativos à biodiversidade, o risco das zoonoses, o desestímulo da caça por iguaria e o estímulo a criação de animais domésticos em regiões onde se alega a necessidade da caça de subsistência.
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É importante destacar que a segurança alimentar de populações mais pobres ou residentes em áreas isoladas não deve ser atribuída à biodiversidade, mas ao Estado com políticas públicas competentes. Tanto na Lei de Proteção à Fauna quanto na Lei de Crimes Ambientais não há qualquer menção sobre caça de subsistência, ou seja, ela é proibida. Na lei de 1998, o abate de um animal silvestre deixa de ser crime somente em estado de necessidade, para saciar a fome da pessoa e sua família naquele instante – o que é diferente da atividade regular de caça para subsistência.

Para os indígenas, o direito à caça está garantido no parágrafo 2º do artigo 24 do Estatuto do Índio.

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