Os insetos aquáticos entre heróis e vilões

Conforme já comentado por aqui [1], as histórias em quadrinhos (HQs) podem possuir ideias, alusões e detalhes sofisticados, sendo passíveis de utilização de diversas formas, inclusive nas salas de aula, como uma tentativa de despertar o interesse e prender a atenção dos alunos. Assim, a composição de um personagem das HQs muitas vezes recebe interessantes influências da vida real. E, nessa brincadeira de coisa séria, insetos do mundo real acabam sendo inspiração para a criação de personagens.

Na conversa de hoje, abordo um conjunto específico, os insetos aquáticos, sujeitos de um estudo que liderei em 2015 [2] e que foi baseado em palestra por mim proferida no III Simpósio de Insetos Aquáticos Neotropicais, realizado em Ribeirão Preto (SP). Foi uma das minhas primeiras falas públicas versando sobre a associação entre Ciência e Cultura. No trabalho, foram inventariados os personagens inspirados em insetos aquáticos e publicados em obras das duas principais editoras estadunidenses de HQs: a DC Comics e a Marvel Comics.

Os insetos aquáticos são um grupamento heterogêneo que tem em comum a vida na água durante algum estágio do seu desenvolvimento, o que também já foi comentado por aqui [3]. Isso significa dizer que eles não formam um bloco evolutivo único. Muito pelo contrário, diferentes linhagens de insetos assumiram independentemente uma nova vida nas águas. Nesses ambientes, eles desempenham relevantes papéis ecológicos, com participação nos diversos processos, sendo de grande diversidade em termos de número de espécies e estratégias de vida [4].

Das ordens obrigatoriamente aquáticas, ou seja, aquelas em que todas as espécies apresentam ao menos uma fase da vida associada aos corpos de água, Ephemeroptera (as efêmeras, efeméridas ou siriruias), Odonata (libélulas) e Megaloptera (lacraus ou diabos-do-rio) serviram de base para a criação de personagens. Ampliando o espectro para incluir as ordens não exclusivamente aquáticas, mas ainda assim com representantes nos ambientes de água doce, há personagens inspirados em Orthoptera (gafanhotos, grilos e esperanças), Blattodea (baratas), Hemiptera (percevejos e cigarras), Neuroptera (formigas-leão e bichos-lixeiro), Diptera (moscas e mosquitos), Coleoptera (besouros), Hymenoptera (formigas, abelhas e vespas) e Lepidoptera (mariposas e borboletas).

Universo DC Comics

Da DC Comics foram inventariados seis personagens inspirados em insetos verdadeiramente aquáticos, pertencentes às ordens Ephemeroptera, Odonata, Hemiptera. Megaloptera, Coleoptera e Diptera. Alguns desses personagens têm uma relativa importância no chamado Universo DC. Talvez o mais destacado seja a Rainha Inseto (Insect Queen, no original), cujo álter ego é a jovem Lana Lang, amiga de infância e adolescência de Clark Kent (identidade secreta do Superman).

Durante a Era de Prata dos quadrinhos (1956 a 1970), Lana estava passeando em um bosque bucólico quando se deparou com um alienígena de aspecto insetóide em apuros: ao lado da nave espacial avariada pela queda, ele estava preso sob uma árvore. Solidária, Lana foi lá e ajudou o visitante que, em gratidão, antes de retornar ao espaço, lhe deu um presente. Lana assim ganhou um anel mágico, capaz de permitir que ela metamorfoseasse parte de seu corpo no de algum artrópode, por um tempo limitado [5]. Lana usou e abusou desse poder, transformando-se frequentemente em diversos tipos de insetos, incluindo muitas formas aquáticas, como efeméridas, libélulas, percevejos-patinadores, mosquitos e moscas. Curiosamente, Lois Lane, a eterna namorada do Superman, por algumas vezes usou o tal anel, chegando a se transformar em um besouro aquático da família Dytiscidae.

Também na DC, há dois personagens ligados às histórias do Batman, sendo o principal deles o Hellgrammita (Hellgrammite, no original), destacado vilão do Homem-Morcego de Gotham. Hellgrammite é o nome comum em inglês das larvas da família Corydalidae (Megaloptera) [6]. Além dele, há também a vilã Dragonfly, ligada à Liga dos Assassinos, grupo liderado por Ra’s Al Ghul, um dos principais inimigos do Batman. Dragonfly é o nome em inglês das libélulas da subordem Anisoptera.

Completam a lista de personagens da DC inspirados em insetos aquáticos outros dois personagens. Shikari, que tem asas semelhantes às das libélulas, é integrante do grupo de heróis do futuro Legião dos Super-Heróis. E Mayfly, nome que, em inglês, é alusivo aos integrantes da ordem Ephemeroptera, é uma assassina cuja missão era matar a Mulher-Maravilha e que, além de não ter obtido sucesso na empreitada, ainda morreu pouco tempo depois de aparecer pela primeira vez, em possível menção à notoriamente curta duração da vida adulta das efeméridas [7].

Universo Marvel

Da Marvel Comics foi levantada a ocorrência de onze personagens, quase todos baseados em libélulas. Pois é, a chamada Casa das Ideias parece ter uma predileção especial por integrantes da ordem Odonata. Os personagens libélula da Marvel são: Angel Salvatore, vilã que mostrou suas asas de libélula no filme X-Men: primeira classe (Fox, 2011); Tito Bohusk, filho de Angel nas HQs e que herdou algumas das características da mãe; Karsano, vulgo Dragonfly, assassino em série coreano; Meiko Yin, também Dragonfly, sucessora de Karsano; o aventureiro Andre LeRoux, o Dragonfly; Veronica Dultry, inimiga dos X-Men, também de nome Dragonfly; Cornelia van der Valk e Robinson Knight, ex-integrantes da S.H.I.E.L.D., ambos de codinome Dragonfly; e… Dragonfly, uma aliada, sem nome próprio conhecido, do super-herói Prime.

Ah, o que pouca gente sabe é que, em um universo alternativo, Ben Grimm (o Coisa, do Quarteto Fantástico) foi transformado em uma criatura alada, que passou a usar o nome de guerra Dragonfly. Pois é, eu falei que a Marvel adora as libélulas.

Dentre os personagens insetos aquáticos da Marvel, a única não libélula é May Parker, a famosa tia do Homem-Aranha. Em um universo alternativo em que todos os personagens são artrópodes, a doce May é a Tia Mayfly (Uncle Mayfly, no original em inglês). Medalha de ouro no quesito criatividade.

Dentre as características apresentadas por esses personagens inspirados, de propósito ou não, em insetos aquáticos, destacam-se a presença de exoesqueleto, antenas e olhos compostos, a capacidade de voo (associada à presença de asas) e o hexapodismo (três pares de braços/pernas). Muitas dessas características são bem retratadas do ponto de vista morfológico e funcional, como as asas de alguns dos personagens denominados Dragonfly, claramente inspiradas em libélulas reais. No que se refere à percepção social, a maioria dos personagens desempenha nas tramas o papel de “herói”, porém sem diferença estatística significativa em relação aos “vilões”.

Ainda que inclua grupos extremamente populares, como mosquitos e libélulas, a real é que, quando se menciona “insetos aquáticos”, a reação do público leigo (e até mesmo de alguns zoólogos não tão familiarizados com a Entomologia) geralmente é de total desconhecimento. Partindo-se da máxima que diz que é preciso conhecer para preservar, esforços no sentido de se popularizar o conhecimento científico são sempre bem-vindos. E, assim, as HQs podem ser muito bem aproveitadas. Como, por exemplo, para mostrar quem são os insetos aquáticos, como são e o que fazem. Tudo isso em uma HQ bem pertinho de você.

Referências
[1] https://faunanews.com.br/insetos-que-estao-no-gibi/
[2] https://www.researchgate.net/publication/282577775_OS_PERSONAGENS_DE_HQS_COMO_ESTRATEGIA_PARA_POPULARIZAR_A_ENTOMOLOGIA_AQUATICA
[3] https://faunanews.com.br/as-aguas-de-marco-fechando-o-verao-sao-cheias-de-insetos/
[4] Hamada, N. et al. (eds.). 2014. Insetos aquáticos na Amazônia brasileira: taxonomia, biologia e ecologia. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus.
[5] Da-Silva, E.R. et al. 2014. Marvel and DC characters inspired by insects. Research Expo International Multidisciplinary Research Journal 4(3): 10-36.
[6] Barclay, A. et al. 2005. Tracheal gills of the dobsonfly larvae, or hellgrammite Corydalus cornutus L. (Megaloptera: Corydalidae). Journal of the Kansas Entomological Society 78(2): 181–185.
[7] Leech, J. 2000. The magic of the mayfly on the Shannon. Inland Waterways News 27(2): 1-2.

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