Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Os insetos surgiram há cerca de 300 milhões de anos e, ao longo de todo esse tempo, experimentaram muitos caminhos evolutivos. Com isso, tornando-se adaptados a quase todos os tipos de habitat, dentre eles os ambientes aquáticos [1]. Sim, há insetos aquáticos, alguns até bastante conhecidos do público, como as libélulas e os mosquitos. Porém, de modo curioso, embora os insetos como um todo sejam um grupo familiar a todos nós, quando se fala em “insetos aquáticos”, a reação do público leigo – e até mesmo de alguns zoólogos não tão familiarizados com a Entomologia (a Ciência dedicada ao estudo dos insetos) – geralmente é de total desconhecimento [2]. Aqui, nesta coluna, já abordamos algumas formas de insetos aquáticos [3] [4].
São considerados aquáticos aqueles insetos que, ao menos em uma fase de seu ciclo biológico, apresentam estreita relação com ambientes hídricos, utilizando-os como local de vida e alimentação. Os insetos aquáticos são um grupamento heterogêneo, ou seja, não representam uma unidade filogenética ou evolutiva. Muito pelo contrário, há muitas linhagens evolutivas independentes que, ao longo do tempo, realizaram retornos secundários à vida nos ambientes aquáticos. Representam apenas cerca de 3% do total conhecido de espécies de insetos, mas, em alguns ambientes de água doce, constituem cerca de 90% de toda fauna invertebrada, desempenhando papel ecologicamente relevante nos diversos sistemas aquáticos continentais [2] [5].
De acordo com as propostas de classificação mais corriqueiras, os diferentes grupos de insetos são distribuídos por cerca de 30 ordens, das quais quase metade apresenta ao menos alguns representantes aquáticos ou semiaquáticos. São elas:
Collembola: que inclui diminutos insetos apterigotos (sem desenvolvimento de asas), habitantes primariamente do solo, mas com algumas espécies adaptadas à vida aquática – e até marinha;
Ephemeroptera: insetos conhecidos em algumas regiões do Brasil como efêmeras, efeméridas, efemerídeos, siriruias ou sararás, cujas formas imaturas, chamadas náiades, são aquáticas e os adultos, aéreos;
Odonata: grupo das já mencionadas libélulas ou lavadeiras, também com imaturos aquáticos, as náiades ou odonáiades, e adultos aéreos;
Plecoptera: grupo pouco conhecido do público leigo, a ponto de sequer ter um nome popular consolidado, e que também tem náiades aquáticas e adultos aéreos;
Orthoptera: ordem dos grilos, esperanças e gafanhotos, com alguns representantes habitando ambientes alagados;
Blattodea: grupo das baratas, quase todas terrícolas, mas umas poucas vivendo com desenvoltura em ambientes alagados;
Hemiptera: grupo dos percevejos e cigarras, com muitos representantes bem adaptados à vida na água doce e até em ambientes marinhos;
Coleoptera: o grande grupo dos besouros, com algumas linhagens tendo retornado independentemente à vida aquática;
Neuroptera: ordem dos bichos-lixeiros e formigas-leão, com uma família (Sisyridae) cujas larvas são aquáticas e vivem associadas a esponjas de água doce;
Megaloptera: insetos de grande porte em que as larvas, chamadas de lacrau em algumas regiões do Brasil, são aquáticas;
Diptera: a grande ordem dos já mencionados mosquitos, bem como das mutucas e borrachudos, com muitos representantes cujas larvas vivem na água doce e até no mar;
Lepidoptera: ordem das borboletas e mariposas, cujas larvas de alguns grupos são adaptadas à água doce;
Trichoptera: grupo pouco conhecido do público, cujos imaturos, habitantes de água doce, são conhecidos em algumas localidades brasileiras como joão-pedreiro;
Hymenoptera: a grande ordem das formigas, abelhas e vespas, mas que apresenta alguns grupos que são parasitoides de outros insetos aquáticos.
Esse elenco de respeito tem destacada importância econômica por diversos motivos, pois inclui propagadores de doenças, como mosquitos [3] [6] e mutucas; pragas agrícolas, caso de alguns besouros semiaquáticos e das larvas de mariposas aquáticas [4]; e pragas aquícolas, as náiades de libélulas, que predam peixes, girinos e camarões de criações.
Dentre todas essas ordens, pode-se salientar Ephemeroptera, Odonata, Plecoptera, Megaloptera e Trichoptera, aquelas em que virtualmente todas as espécies têm as formas imaturas vivendo dentro d’água. Outros destaques são as ordens Hemiptera e Coleoptera, com muitos grupos passando o ciclo biológico inteiro nos ambientes aquáticos.
Esses grupos são importantes na dinâmica de diversos corpos d’água, como rios, riachos, igarapés, lagos, brejos e represas, desempenhando papéis ecológicos diversos. Por exemplo, alguns, ao se alimentarem, processam troncos, galhos e folhas, dentre outros materiais caídos na água, em partículas menores que poderão ser utilizadas por outros organismos. Além disso, são fontes de alimento para peixes, tartarugas, sapos, aves e morcegos [1].
Como os demais organismos aquáticos, os insetos podem ser agrupados em três categorias, de acordo com o local que passam a maior parte do seu tempo: os bentônicos estão associados ao fundo ou a qualquer substrato relacionado; os pelágicos vivem suspensos na coluna d’água, podendo ser levados pela corrente (plâncton) ou ter a capacidade de nadar livremente (nécton); e os neustônicos vivem na superfície, associados à tensão superficial [8].
Pela diversidade do grupo, tanto em termos de riqueza de espécies quanto nos papéis desempenhados no funcionamento de ecossistemas hídricos, alguns grupos de insetos aquáticos podem ser utilizados como bioindicadores de perturbações ambientais [1], sendo bastante estudados em programas de avaliação e monitoramento da qualidade da água [7]. Com grande experiência e destacada atuação no tema, o professor doutor Arlindo Serpa Filho, da Faculdade Maria Thereza e do Instituto Federal do Rio de Janeiro, considera que, quando se fala no estado de preservação dos ambientes de água doce, não se pode esquecer que a elevada diversidade de insetos é também um indicativo de boa qualidade.
Um bom exemplo é a criação de índices bióticos que levam em consideração a relação entre o número de espécies e o de indivíduos, resultando em escores que estimam assim a qualidade da água. As ordens Ephemeroptera, Plecoptera e Trichoptera são bastante utilizadas nesses estudos e, quando usadas em conjunto, recebem a denominação coletiva de EPT. Arlindo realça ainda que um outro grupo bastante estudado para esse tipo de abordagem é a família Chironomidae, da ordem Diptera, que apresenta algumas espécies muito resistentes às adversidades do ambiente.
Contudo, a despeito dos crescentes estudos sobre o uso dos insetos como bioindicadores, um grande entrave se apresenta para consolidação dessa prática: as dificuldades de identificação, resultantes da falta de taxonomistas para muitos grupos, especialmente em determinadas regiões do Brasil. Há grandes desigualdades de região para região no que se refere à formação e à fixação de taxonomistas em Entomologia aquática. A maioria dos trabalhos está concentrada ao redor de onde estão as instituições de pesquisa, o que realça a necessidade de criação de novos centros de estudos [7].
Segundo o professor doutor Frederico Falcão Salles, responsável pelo Museu Regional de Entomologia da Universidade Federal de Viçosa, os estudos sobre insetos aquáticos no Brasil cresceram exponencialmente nas últimas duas décadas. Até o final da década de 1990, poucos eram os laboratórios no país voltados para pesquisas nessa área. Hoje, a partir da formação de mais pessoal especializado e da estabilização desses profissionais em novos centros, muitos deles longe das capitais, o conhecimento sobre o grupo foi incrementado sobremaneira. Citando seu grupo de especialização, a ordem Ephemeroptera, Frederico realça que o número de espécies conhecidas para o Brasil praticamente triplicou nos últimos 15 anos. Porém, ressalva que todas essas conquistas são frutos de políticas de incentivo à pesquisa e à pós-graduação, as quais vêm sendo constantemente minadas nos últimos anos, o que é motivo de grande apreensão.
O professor doutor Lucas Ramos Costa Lima, da Universidade Estadual do Piauí, considera que o conhecimento taxonômico sobre os insetos aquáticos ainda é incipiente em algumas regiões brasileiras, como o Nordeste, uma vez que os estudos se concentram tradicionalmente em grandes centros de pesquisa, localizados no Norte e no Sudeste. Há carência de inventários faunísticos em alguns estados da Região Nordeste, como Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, o que só vai ser mitigado quando a formação de novos taxonomistas passar a ser considerada uma ação prioritária.
Para o professor doutor Rafael Boldrini, da Universidade Federal de Roraima, a rica biodiversidade do Norte do Brasil é bem estudada, basicamente, por causa dos dois grandes centros de pesquisa da região: o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e a Universidade Federal do Pará. Outras instituições e seus respectivos grupos de pesquisas vêm consolidando o conhecimento sobre os insetos aquáticos, com destaque para a própria Universidade Federal de Roraima e a Universidade Federal de Rondônia. Rafael considera que muito da entomofauna aquática amazônica já foi estudada, mas, levando em conta o imenso território e sua diversidade de habitat, estima-se que muito ainda precisa ser pesquisado e catalogado e, para tal, é necessário se resolver o déficit de taxonomistas especializados no grupo.
Assim, os pesquisadores consultados são unânimes em apontar que é fundamental a consolidação de uma política de formação e fixação de recursos humanos. Isso é imperativo para o adequado conhecimento acerca da fauna de insetos aquáticos no Brasil, o que irá alavancar as pesquisas mais aplicadas. Vale destacar que, por sua forte ligação com habitat específicos, muitos componentes da entomofauna aquática podem ser considerados em situação vulnerável. Além de sofrerem com os processos de modificação dos sistemas aquáticos, também recebem influência da paisagem do entorno [9].
Partindo-se da máxima que diz que é preciso conhecer para preservar [10], nossa riquíssima biodiversidade tem que ser, dentro do possível, inventariada, catalogada e divulgada. No caso dos insetos aquáticos, os importantes papéis por eles desempenhados nos distintos ambientes e regiões têm que ser divulgados o mais possível, dentro do princípio de que todo esforço no sentido de popularizar o conhecimento científico é bem-vindo. E retornará, com dividendos, através da maior aceitação popular à causa conservacionista.
Parafraseando e adaptando livremente o poeta Tom Jobim, as águas de março, pululantes de insetos, vão fechar o verão e criar uma promessa de vidas em nossos corações. Vidas da biodiversidade brasileira.
Referências
[1] Lopes, Maria José N. et al. 2008. Insetos aquáticos. In: Oliveira, M.L. et al. (eds.). A biodiversidade amazônica através de uma grade. Manaus, Áttema Design Editorial.
[2] Da-Silva, Elidiomar Ribeiro & Coelho, Luci Boa Nova. 2015. Os personagens de HQs como estratégia para popularizar a Entomologia aquática. Revista Científica Semana Acadêmica, 73.
[3] https://faunanews.com.br/2020/06/17/o-mosquito-o-besouro-e-a-efemerida-que-vieram-da-africa
[4] https://faunanews.com.br/2020/09/16/mariposas-dentro-dagua
[5] Hamada, N. et al. (eds.). 2014. Insetos aquáticos na Amazônia brasileira: taxonomia, biologia e ecologia. Manaus, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
[6] https://faunanews.com.br/2021/01/20/sobre-vacinas-e-insetos-sobre-covid-19-e-ciencia/
[7] Nessimian, Jorge Luiz et al. 2014. Taxonomia de insetos aquáticos: cenários e tendências para a Amazônia brasileira. In: Hamada, N. et al. (eds.). Insetos aquáticos na Amazônia brasileira: taxonomia, biologia e ecologia. Manaus, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
[8] Salles, Frederico Falcão & Ferreira-Júnior, Nelson. 2014. Hábitat e hábitos. In: Hamada, N. et al. (eds.). Insetos aquáticos na Amazônia brasileira: taxonomia, biologia e ecologia. Manaus, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
[9] Roque, F.O. et al. 2014. Insetos aquáticos no âmbito de instrumentos de gestão ambiental: caminhos ainda pouco explorados. In: Hamada, N. et al. (eds.). Insetos aquáticos na Amazônia brasileira: taxonomia, biologia e ecologia. Manaus, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
[10] Faria, M.B. & Souza, G.C. 2015. Popularização da ciência através do Museu de Zoologia Newton Baião de Azevedo: conservação da fauna. Revista Científica Semana Acadêmica, 67.
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