Insetos no folclore brasileiro (parte 4): na mosca!

Em uma das mais recentes visitas que fiz à senhora minha mãe, dona Ilmar Ribeiro da Silva, ela deixou escapar com naturalidade uma lembrança do passado. Uma memória absolutamente banal, mas que chamou a atenção do entomólogo aqui.

Minha mãe me contou que, recentemente, enquanto aguardava para uma consulta médica, uma mosca parecia a perseguir. E isso fez com que lembrasse da própria mãe, a saudosa dona Ilka de Oliveira Ribeiro, carinhosamente conhecida entre os netos, quando crianças, pelo apelido de “Icaca”. Vó Icaca falava que quando uma mosca ficava rodeando insistentemente você, era sinal de que alguém queria lhe falar.

Pronto, esse breve e simplório relato familiar é a desculpa perfeita para eu manter um já tradicional procedimento aqui na coluna: o de, em agosto, falar de insetos no folclore. E, assim, o bicho escolhido da vez é a mosca.

No chamado “mês do desgosto”, mais precisamente no dia 22, é comemorado no Brasil o dia do Folclore. Renovo o convite anual para que você revisite os textos sobre o tema, relativos aos anos de 2020 [1], 2021 [2] e 2022 [3]. Reforço que estou usando aqui a definição de folclore no sentido de cultura popular [4] ou, em uma das muitas definições dadas pelo maior folclorista brasileiro, mestre Luís da Câmara Cascudo, “a sabedoria do povo” [5].

Um egun quer estabelecer contato

Bom, voltando às insistentes moscas que, segundo as matriarcas da minha origem familiar mais próxima, indicam que alguém quer falar, há variações quanto a essa percepção popular, algo, aliás, bastante comum. Por exemplo, segundo escutou minha esposa, Luci Boa Nova Coelho, a mosca que rodeia alguém é sinal de que um egum quer estabelecer contato. Termo das religiões de matriz africana, eguns (do iorubá egun) podem ser tanto espíritos considerados “evoluídos” ou “de luz”, quanto os de parentes ou mesmo aqueles que são desorientados e obsessores [6]. Exatamente nesse último sentido é que a expressão, conforme minha esposa escutou, se refere.

Outras versões semelhantes dizem que ser seguido por moscas é um presságio de ataque de inimigos. Quando uma delas pousa no rosto é presságio de que vai chegar uma notícia imediata e, caso se consiga espantá-las, isso é sinal de êxito. Outros dizem que, se uma mosca pousar na cabeça, é paixão na certa que se aproxima; por outro lado, se ela pousar em um prato, é desilusão. E quando se vê uma mosca voando é sinal de inveja [7].

No notável Dicionário do folclore brasileiro [8], Cascudo aborda a repugnância popular às moscas, pretensamente por sua falta de higiene. E menciona que se há muitas por perto, é possível as enxotar dizendo “Moscas malvadas! Da sexta-feira para o sábado, estejam mudadas!”. Expulsão com dia certo. Porém, pode ser que valha à pena não expulsar todas, pois elas podem ser úteis. Por exemplo, em Alagoas diz-se que se um rapaz adolescente quer que lhe cresça um belo bigode, basta esmagar uma mosca com as mãos e a esfregar no buço [9].

As moscas e os indígenas

Além de estar na boca do povo (ou no buço dos infantes), em expressões como “comer mosca”, “moscar”, “mosca de padaria” e “picado pela mosca azul”, tema já abordado por aqui [10], as moscas estão em algumas lendas. No que se refere à presença em lendas folclóricas, dentre as listadas no livro As 100 melhores lendas do folclore brasileiro [11], duas têm participação ativa das moscas. Foram elas, mais especificamente as varejeiras, que atuaram como cúmplices subservientes ao urubu-rei, que havia surrupiado o fogo, em uma lenda dos Parintintins, grupo indígena do sudeste do Amazonas. Essa parceria das moscas com o urubu-rei está também em uma lenda dos povos do Xingu, em Mato Grosso, que explica a origem do dia. Obviamente a associação entre esses insetos e o bonito urubu Sarcoramphus papa, ave da ordem Cathartiformes e da família Cathartidae, não é fruto do acaso, mas provavelmente resultado de observações acerca da presença conjunta em carcaças.

As moscas, juntamente com os mosquitos e outros bichos aparentados, são classificadas na ordem dos dípteros (Diptera), um dos maiores grupamentos dentre os insetos. Na enciclopédica obra Insetos no folclore, é mencionado que a ordem que inclui as moscas é caracterizada pelo aparato bucal sugador; por possuir apenas um par de asas bem desenvolvidas, o par anterior; pelas asas posteriores transformadas em estruturas minúsculas, os halteres ou balancins, que conferem estabilidade ao voo; e por serem insetos “grandemente importunos” [12]. Ou seja, uma interessante caracterização, que vai além da definição morfológico-funcional e inclui também a percepção humana sobre o grupo.

Ainda de acordo com o livro supracitado [12], é dito que o nome geral “mosca” é usado para todos os integrantes da ordem dos dípteros, especialmente aqueles classificados no grupo dos Brachycera, aí incluindo as moscas-domésticas. E são exatamente elas que protagonizam alguns curiosos causos ou crendices, como a que diz que certos diabinhos se transformam em moscas, sendo então chamados de “moscas-familiá”. Na cultura popular, esse “familiá”, também conhecido como “diabinho da garrafa”, pode ser preso em uma garrafa, de onde, imagino eu, seja explorado para realizar os desejos de seu “dono” (sai pra lá, estou fora!), tipo uma versão mais sinistra do gênio da lâmpada. Esse tipo de crendice, com muitas variações, é bastante presente nos folclores do Brasil e de Portugal [13].

Talvez por serem consideradas, como já mencionado, importunas ou até mesmo irritantes, as moscas costumam ser associadas ao chamado “coisa ruim”, só para usar um dos nomes mais populares do diabo judaico-cristão. O próprio dito cujo é até chamado também de “o senhor das moscas”. É, fica claro que esses onipresentes insetos, de irritante determinação para ficar perto de nós, não gozam mesmo de muita popularidade.

Mas, a julgar pelo estrondoso sucesso evolutivo e ecológico do grupo, as moscas não estão muito preocupadas com isso. E, certamente, continuarão prestando os papeis ecossistêmicos que desempenham, tanto no que se refere à participação em teias alimentares complexas quanto em termos de polinização e outros serviços relevantes.

Referências
[1] https://faunanews.com.br/insetos-no-folclore-brasileiro-muitas-narrativas-refletindo-discriminacoes-e-padroes-de-comportamento/
[2] https://faunanews.com.br/insetos-no-folclore-brasileiro-o-talisma-da-coruja-e-outras-estorias/
[3] https://faunanews.com.br/insetos-no-folclore-brasileiro-parte-3-estorias-de-cupim/
[4] Brandão, Carlos Rodrigues. 1984. O que é folclore, 4ª edição. Editora Brasiliense.
[5] Cascudo, Luís da Câmara. 1975. Contos tradicionais do Brasil. Edições de Ouro.
[6] https://ocandomble.com/tag/egum/
[7] https://www.jornalnovaepoca.com/artigo/os-insetos-e-suas-historias
[8] Cascudo, Luís da Câmara. 2012. Dicionário do folclore brasileiro. 12ª edição. Global Editora.
[9] Nomura, Hitoshi. 2001. Curiosidades folclóricas sobre insetos. Projeto Cadernos de Folclore, Centro de Estudos da Cultura Popular / Museu do Folclore.
[10] https://faunanews.com.br/na-boca-do-povo-os-insetos-nas-expressoes-populares/
[11] Franchini, A.C. 2011. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro. L & PM Editores.
[12] Lenko, Karol & Papavero, Nelson. 1979. Insetos no folclore. Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas.
[13] https://www.academia.edu/32285399/O_FAMALIÁ