Nas tatuagens, libélulas e efêmeras à flor da pele

A tatuagem é considerada uma das formas de modificação corporal mais conhecidas e cultuadas do mundo, além de ser, possivelmente, a mais comum. É uma arte desenhada na pele humana, consistindo de aplicações subcutâneas através da introdução de pigmentos por agulhas. Tal procedimento artístico evoluiu muito ao longo do tempo, sendo que durante muitos séculos era considerado completamente irreversível. Hoje há algumas estratégias que podem cobrir tatuagens com as quais você não se identifica mais ou até mesmo removê-las, embora, dependendo do caso, as técnicas de remoção possam deixar cicatrizes e variações de cor sobre a pele.

Na chamada sociedade ocidental (ou eurocentrada), as tatuagens costumavam ser meio que associadas a grupos específicos, como marinheiros, motociclistas, artistas e presidiários. Porém, nas últimas décadas, parecem ter se tornado bem mais populares, chegando a todas as camadas da sociedade. De modo geral, considera-se que a motivação para os adeptos dessa arte corporal é ser uma espécie de galeria artística viva – e, sim, a tatuagem é uma forma de arte, podendo ser classificada na chamada Terceira Arte, a da pintura. Mas creio que a motivação pode ser simplesmente ter algo de seu gosto perto de você. Eu, por exemplo, tenho duas tatuagens: uma lanterna do Lanterna Verde e um símbolo estilizado do Batman. Pois é, preciso arranjar alguns motivos da Marvel para não ferir susceptibilidades quadrinísticas.

Tatuagens de insetos

Mas o que diabos as tatuagens têm a ver com os insetos, os donos parciais deste nosso cantinho? Tudo a ver, pois basta dar uma voltinha nos shoppings, praças, jardins e ruas da vida que fica fácil visualizar um monte de tatuagens de borboletas, mariposas, abelhas, besouros, moscas, cigarras e outros insetos, além de outros artrópodes e animais em geral. Bem dentro dos já bastante mencionados aqui conceitos da Zoologia Cultural [1] [2] e da Entomologia Cultural [3]. Vale ressaltar que, face ao grau de ligação do ser humano com os demais integrantes do reino animal, não é surpreendente que significativa parcela das tatuagens tenha inspiração em bichos, normalmente aqueles com algum significado simbólico para o tatuado.

Mesmo com a gigantesca ordem dos lepidópteros (Lepidoptera), a que inclui as famosas e populares borboletas e mariposas, sendo a possível campeã dentre as tatuagens entomológicas, outros grupos de insetos também suscitam abordagens interessantes no que se refere à presença ilustrativa em nossa pele. Aqui me refiro ao trabalho “Palaeoptera à flor da pele: considerações sobre a utilização de Odonata e Ephemeroptera como inspiração para tatuagens”, que foi apresentado por mim, em parceria com os pesquisadores Diego Paschoa Trindade, Virgínia Codá e Luci Boa Nova Coelho, no IV Simpósio de Insetos Aquáticos Neotropicais, evento realizado no ano de 2017, em Santa Teresa, Espírito Santo, através de parceria entre a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA) e a Associação de Amigos do Museu de Biologia Professor Mello Leitão (Sambio) [4].

Em tal trabalho, foram estudadas tatuagens ilustrativas de insetos da ordem dos odonatos (Odonata) e da ordem dos efemerópteros (Ephemeroptera), ordens essas que costumam ser reunidas em um grupo denominado Palaeoptera. Considera-se que os paleópteros teriam, ao longo da evolução, perdido a capacidade de dobrar e recolher as asas sobre o abdômen. Odonatos são insetos de grande apelo popular, conhecidos como libélula, lavadeira, libelinha, cavalinho-do-diabo e cavalinho-de-são-jorge, dentre muitos outros nomes comuns, alguns deles já abordados aqui [5] [6] [7] [8]. Por sua vez, os efemerópteros, que recebem os nomes comuns de efêmera, efemérida e siriruia, não são tão conhecidos do grande público, mas também já foram bem abordados neste espaço [6] [7] [8] [9].

O trabalho aqui referenciado teve por objetivo a análise das tatuagens com desenhos inspirados em odonatos e efemerópteros, com duas abordagens metodológicas. A primeira, de cunho quantitativo, foi realizada a partir de pesquisa (feita em dezembro de 2016) no buscador de imagens do Google, utilizando os termos “tattoo” e “dragonfly OR damselfly OR mayfly”. As cem primeiras fotografias que retratavam tatuagens contendo odonatos ou efemerópteros foram analisadas quanto à ordem taxonômica (Ephemeroptera ou Odonata) e, no caso dos odonatos, à subordem (Anisoptera, cujos integrantes são mais conhecidos como libélulas, ou Zygoptera, cujos integrantes são mais conhecidos como libelinhas); gênero social presumido do(a) tatuado(a); local de inserção da tatuagem (cabeça/pescoço, tórax, abdome, membros superiores, membros inferiores); grau subjetivo de realismo do desenho e presença de licenças poéticas no desenho. Na segunda abordagem, de cunho qualitativo, foram analisadas fotografias também obtidas no Google (em fevereiro de 2017), em pesquisa utilizando os termos “tattoo” e “mayfly”, estratégia necessária para se ter um maior número amostral de tatuagens contendo efêmeras.

Das cem fotografias obtidas na abordagem quantitativa, 99 mostravam tatuagens contendo odonatos e apenas uma continha o desenho de uma efêmera. Analisando as imagens, dentre as tatuagens de Odonata, foi possível perceber que a subordem dominante é Anisoptera e que são as mulheres que escolhem tal ordem com mais frequência. Dessas tatuagens, 42% foram feitas no tórax e 59% possuem tamanho médio mais ou menos do tamanho real dos insetos inspiradores; por sinal, 72% dos desenhos são bem realistas. Ainda quanto à análise quantitativa, em cerca de 46% das tatuagens, os insetos estão colocados em plantas, paisagens ou cenários. Há também o farto uso de licenças poéticas, com as antenas sendo a parte anatômica mais modificada, estando geralmente bastante aumentadas. Isso faz com que o odonato eventualmente tenha um aspecto semelhante a integrantes da ordem dos neurópteros (Neuroptera).

A busca de imagens na segunda abordagem, exclusiva para os efemerópteros, resultou em um acréscimo de 28 fotografias. Ao contrário do observado quanto às tatuagens de libélulas e libelinhas, os desenhos de efêmeras em tatuados supostamente do sexo masculino são proporcionalmente mais numerosos. Isso pode ser explicado levando-se em conta que muitos efemerópteros são utilizados como isca em um tipo popular de pesca no Hemisfério Norte, o flyfishing, e que a pesca costuma ser uma atividade mais comumente desempenhada por homens. Algumas tatuagens representam não o inseto em si, mas os anzóis e iscas imitadores. É interessante perceber que, em algumas tatuagens, as efêmeras são parte dos cenários e dos aspectos naturais retratados, incluindo cadeias alimentares. Nessas, o maior destaque vai para os peixes, novamente reforçando a ligação com a pesca.

E aí, já pensou em qual será a sua próxima tatuagem? Que tal usar a nossa maravilhosa biodiversidade como fonte inspiração temática? Posso garantir que, ao menos no que se refere aos insetos, não faltarão lindas possibilidades. Fica a dica.

Referências

[1] Da-Silva, E.R.& Coelho, L.B.N. 2016. Zoologia Cultural, com ênfase na presença de personagens inspirados em artrópodes na cultura pop. In: Da-Silva,E.R. et al. (ed.). Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro – ENTOMORIO. UNIRIO, Rio de Janeiro, p. 24-34.
[2] Retrospectiva 2018: o ano de consolidação da Biologia Cultural – e jamais isso foi tão necessário
[3] Monserrat, V.J. 2012. Los artrópodos enlamitologia, la Ciéncia y el arte de Mesopotamia. Boletínde la Sociedad EntomológicaAragonesa51:421-455.
[4] Pinto, A. P. et al. 2017. Livro de resumos. IV Simpósio de Insetos Aquáticos Neotropicais – SIAN 2017. Sociedade Brasileira de Zoologia, Curitiba, 90 p.
[5] Cavalaria entomológica: insetos com nome alusivo aos equinos
[6] Insetos que estão no gibi
[7] Os insetos aquáticos entre herois e vilões
[8] Águas de março fechando o verão são cheias de insetos
[9] O mosquito e a efemérida que vieram da África

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