Uma conservacionista pelo papagaio-verdadeiro

O papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) é uma espécie da fauna silvestre que está presente no cotidiano dos brasileiros. Conhecido, principalmente, como pet dentro das casas, inclusive considerado um membro da família, a ave tem distribuição pelo interior da América do Sul (Bolívia e Paraguai) e, no Brasil, ocorre na Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica de interior e Pantanal, além da região do Chaco (divisa do Brasil com Paraguai, área com características próprias). A espécie tem uma grande capacidade de ocupação e adaptação, aparecendo em outros biomas devido a solturas indevidas.

Apesar de ser considerado um animal bastante comum, o papagaio-verdadeiro sofre um declínio em suas populações naturais, tendo o tráfico de animais e a perda de hábitat grandes responsabilidades no problema.

Idealizadora e responsável pelo Projeto Papagaio-verdadeiro, a zootecnista Gláucia Helena Fernandes Seixas trabalhava no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) de Campo Grande (MS) em 1992, no início de sua carreira, quando notou que a principal espécie recepcionada era o papagaio-verdadeiro, provindos do tráfico. Apesar do alto índice, havia, até então, poucas informações sobre a biologia e a ecologia da espécie na natureza, mesmo sendo considerada comum no país.

A preocupação quanto ao impacto do tráfico de filhotes sobre as populações naturais dos papagaios-verdadeiros e a falta de conhecimento sobre a espécie levaram Gláucia a iniciar o projeto em 1997.

O Fauna News entrevistou Gláucia para entender os impactos do tráfico sobre a espécie.

Fauna News – Como foi o início de sua trajetória com os papagaios-verdadeiros?
Gláucia Seixas – Em 1992, comecei a trabalhar no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres de Mato Grosso do Sul, vinculado ao Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul). Lá, notei que o papagaio-verdadeiro era a espécie mais recepcionada por conta do tráfico de animais silvestres. Mesmo assim, até então, não havia qualquer informação sobre a biologia e ecologia do papagaio-verdadeiro na natureza, mesmo sendo considerada uma espécie comum no Brasil.

Minha grande preocupação quanto ao impacto do tráfico de filhotes sobre as populações naturais, associada à repetição dos procedimentos executados pelo Cras e a falta de conhecimento quanto à ecologia da espécie, me fez iniciar o Projeto papagaio-verdadeiro. Esse projeto é pioneiro no Brasil e tem como objetivo gerar conhecimento científico e utilizá-lo nas ações de conservação e combate ao tráfico dos papagaios-verdadeiros, dentro e fora de M ato Grosso do Sul.

A meta do projeto é que tenhamos papagaios-verdadeiros na natureza com as melhores condições populacionais e de hábitat, em perpetuidade. Atuamos em quatro linhas de ação: pesquisa científica,  comunicação e educação para conservação, fomento às políticas públicas e ferramentas para conservação.

Fauna News – Quais são as alterações que você vem observando sobre a reprodução da espécie em ambiente natural ao longo dos anos?
Gláucia Seixas – Em nossos estudos no Cerrado, Pantanal e Mata Atlântica de interior em Mato Grosso do Sul, identificamos que o período reprodutivo do papagaio-verdadeiro ocorre no segundo semestre, com pequenas variações de acordo com o clima e a disponibilidade recursos, como alimentação, cavidades e outros, de cada ano. No geral, a maior frequência para as diferentes fases da reprodução da espécie nesses biomas são: postura dos ovos em agosto, nascimento dos filhotes em setembro e voo dos jovens em novembro. Essas fases correspondem ao fim do período de seca e começo do período das chuvas. Consequentemente, esse é o período do ano onde ocorre o tráfico de ovos e de filhotes de papagaios-verdadeiros no Estado.

No Pantanal, a reprodução do papagaio-verdadeiro foi registrada em 25 espécies vegetais, sendo que o as palmeiras representam 21% do total dos ninhos naturais monitorados. No Cerrado e na Mata Atlântica de Mato Grosso do Sul, a reprodução foi registrada em seis espécies vegetais, sendo que as palmeiras representam 95% do total de ninhos naturais monitorados. Isto se deve à maior disponibilidade de duas espécies de palmeiras na região: a bocaiúva ou macaúba (Acrocomia aculeata) e pindó ou jerivá (Syagrus romazoffiana). Em algumas regiões, elas foram mantidas junto às pastagens para a pecuária bovina desde o momento da implantação desse sistema produtivo. Também porque as palmeiras formam cavidades com maior facilidade após mortas.

Essas palmeiras, nessa região, são recursos naturais fundamentais para garantir a reprodução e, consequentemente, a manutenção ou a melhoria das populações nativas de papagaios-verdadeiros. Para isto, devem ser mantidas em pé, mesmo após mortas, por ser justamente neste momento que os papagaios-verdadeiros e muitas outras espécies de aves utilizam para reproduzir.

Fauna News – Quais são as principais ameaças que a espécie sofre nos hábitats de ocorrência natural?
Gláucia Seixas – Entre as 12 espécies do gênero Amazona popularmente conhecidas como “papagaio”, que ocorrem no Brasil, o papagaio-verdadeiro sofre a maior pressão de saque de filhotes, além de ovos, para abastecer o comércio ilegal de animais de estimação de dentro e de fora do país. Isso se deve a sua fama de “melhor falador” quando comparado aos demais papagaios. Foi essa característica que, inclusive, gerou a denominação “papagaio-verdadeiro”.

As principais ameaças à espécie são perda ou descaracterização de seu hábitat devido aos desmatamentos, queimadas, pecuária intensiva, agricultura industrial e outras atividades antrópicas; tráfico de fauna (ovos e filhotes) e abate de indivíduos por danos às culturas agrícolas.

Devido às intensas ameaças que vem sofrendo ao longo de muitos anos, em toda a área de distribuição natural, dentro e fora do Brasil, o papagaio-verdadeiro deixou de ser classificado como “pouco preocupante” (LC = Least Concern) e passou a ser “quase ameaçada” (NT = Near Threatened) pelo governo brasileiro em 2014 e pela União Internacional para a Conservação da Natureza em 2019 (IUCN). Essa classificação é atribuída às espécies que estão próximas ou que apresentam grande probabilidade de chegarem ao status de “ameaçadas de extinção” se nada for feito para reverter.

Fauna News – A captura de papagaios para serem criados como animais de estimação é muito antiga no Brasil. E no Mato Grosso do Sul, sempre existiu ou o fenômeno é recente e se intensificou em algum momento? Ao longo desses anos de estudo, você tem notado alguma alteração na dinâmica das populações afetadas pelo tráfico?
Gláucia Seixas – Em Mato Grosso do Sul, já foram registrados cerca de 12.500 filhotes apreendidos pela fiscalização nos últimos 35 anos (1988-2023), o que coincide com o período de existência dos órgãos voltados ao meio ambiente (Cras-Imasul). Essa atividade se concentra, em maior intensidade, nos biomas Cerrado e Mata Atlântica do Estado, que se localizam nas divisas com São Paulo e Paraná. Sabemos que outros milhares de filhotes foram apreendidos nesses dois Estados após saírem de Mato Grosso do Sul. Por esses fatores e pelas dificuldades de a fiscalização interceptar todos os filhotes retirados dos ninhos e de registrar possíveis óbitos nas diferentes fases do tráfico, temos certeza que os números de animais apreendidos representa uma parcela muito pequena do total de papagaios-verdadeiros saqueados da natureza.

Nossos estudos nesses biomas sugerem que o roubo de filhotes tem se dado a níveis elevados, provavelmente bem acima da taxa de extração máxima que a espécie pode suportar. Como uma espécie longeva e socialmente monogâmica, a extração continuada de filhotes de papagaios-verdadeiros é especialmente difícil de ser percebida, até que seja tarde demais. Isso acontece porque os mesmos casais se reproduzem ano após ano, mas a extração intensa dos filhotes inibe o recrutamento de jovens adultos, até que toda a população esteja senescente.

Se nada for feito, é possível que as populações de papagaios-verdadeiros do Cerrado e Mata Atlântica de Mato Grosso do Sul em breve sejam bruscamente reduzidas e tenham um destino parecido com outras espécies, como as ariranhas (Pteronura brasiliensis) nessa mesma região.

Outro fator preocupante são as perdas de ninhos naturais no momento do saque dos ovos e dos filhotes ou mesmo por conta da expansão agrícola industrial nesses biomas. Quanto à perda dos ninhos para o tráfico, detectamos que os traficantes deixam os ninhos em péssimas condições para reutilização nos anos seguintes ou mesmo derrubam as árvores. Considerando que nascem, em média, dois filhotes por ninho, pode-se dizer que, no mínimo, 6.250 ninhos e até outros milhares foram saqueados no Cerrado e na Mata Atlântica do Estado. Isso gera impactos cumulativos, pois além de perder os jovens, sendo fundamentais para a manutenção da população, perdem-se os ninhos existentes ou, no mínimo, eles passam a ter qualidade inferior. A busca por cavidades escassas aumenta a competição entre os papagaios e outras aves, além de levar a diminuição do sucesso reprodutivo da espécie nesses locais.

Fauna News – Seus estudos têm encontrado alguma solução para minimizar essas perdas de cavidade para reprodução da espécie?
Gláucia Seixas – Registro, desde 2016, no Cerrado e Mata Atlântica do Estado, a crescente perda de ninhos naturais causadas pelo tráfico de ovos e filhotes e por outras ações antrópicas com taxas anuais que variaram de 55% a 85%, de acordo com a região. Com base nesse conhecimento, decidi em 2019 iniciar o uso de uma importante ferramenta de conservação, os ninhos artificiais. O objetivo é disponibilizar cavidades (ninhos artificiais) para os papagaios-verdadeiros como forma de suprir, minimamente, a carência de sítios reprodutivos para os casais continuarem gerando filhotes, mantendo a qualidade da população natural da espécie na região.

Mas vale salientar que o uso de ninhos artificiais é estratégia de manejo para a conservação de espécies que só deve ser utilizada quando existem estudos anteriores demonstrando que, em determinada região, havia ninhos naturais e que, atualmente, não existem mais. Paralelamente, é fundamental o estímulo à conservação ou aumento das árvores-ninhos existentes, seja pela criação de unidades de conservação ou pelo plantio de novas árvores.

Fauna News – Como são feitos os ninhos artificiais?
Gláucia Seixas – Com base nos conhecimentos adquiridos sobre a reprodução do papagaio-verdadeiro, definimos um modelo de ninho que se aproxima das características dos ninhos utilizados pelas aves da espécie na região, ou seja, as palmeiras. Inicialmente, testamos ninhos confeccionados com PVC, seguindo o modelo utilizado para o papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis) no Paraná pela ONG Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), mistos de PVC e madeira. A confecção dos ninhos é realizada pelas equipes do projeto e do Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema, no estilo “faça com suas mãos”.

Para aquisição dos equipamentos e materiais para os ninhos, contamos com diferentes patrocínios de instituições, empresas privadas e pessoas físicas, a partir das campanhas “Adote um ninho” e “Seja amigo do louro”.

Depois de confeccionados, os ninhos são instalados pela equipe em locais seguros e previamente definidos, como unidades de conservação e propriedades rurais privadas e parceiras. Na sequência, são monitorados sistematicamente para registro de sua ocupação por papagaios-verdadeiros ou outras espécies, bem como o número de ovos, filhotes nascidos e jovens que voam.

De 2019 a 2023, foram confeccionados cerca de 450 ninhos artificiais, sendo que 350 estão disponíveis para os papagaios-verdadeiros na região e os demais utilizados para reposição dos ninhos danificados. Os ninhos estão sendo ocupados gradativamente pelos papagaios-verdadeiros e outras 14 espécies de aves para reproduzir, além de servir como abrigo para duas espécies de mamíferos. Em diversos momentos, registramos os papagaios-verdadeiros ocuparem os ninhos artificiais em menos de 24 horas após a instalação, confirmando a premente escassez de cavidades na região.

Desde então, a ocupação dos ninhos artificiais variou de 30% a 40% por papagaios-verdadeiros, de 40% a 45% por 14 espécies de aves e 4% a 5% por duas espécies de mamíferos. A ocupação por outras aves confirma que a falta de cavidades é uma limitação para todas as espécies que reproduzem em ocos de árvores. Assim, o projeto cumpre um importante papel para a manutenção das populações da biodiversidade local. Costumamos dizer “nem sempre é verde, mas sempre é vida”.

Fauna News – Nestes anos de dedicação ao projeto, você tem notado alguma diminuição no tráfico de animais? O que deve ser feito efetivamente para coibir o tráfico de papagaios-verdadeiros?
Gláucia Seixas – O tráfico de papagaios-verdadeiros em Mato Grosso do Sul ocorre há, no mínimo, 36 anos, o que coincide com a criação do Cras. Essa ilicitude não findou e a ampliação das ações de fiscalização é fundamental para coibi-la nas regiões mais afetadas. É importante que todas as ações sejam contínuas, ano após ano, no período de maior intensidade de reprodução da espécie, de agosto a novembro, em toda a extensão do Cerrado e Mata Atlântica do Estado. Assim, de forma contínua e eficaz, acreditamos que será possível ter resultados positivos, a médio e longo prazos.

Paralelamente, é fundamental que as ações de educação para conservação e combate ao tráfico sejam ampliadas e fortalecidas. Só assim será possível realizar a mudança comportamental tão importante, que inclui o não consumo dos animais nascidos na natureza.

Fauna News – Quais campanhas estão ativas atualmente para proteção do papagaio-verdadeiro?
Gláucia Seixas – Para 2024, as campanhas “Adote um ninho” e “Seja amigo do louro”, iniciadas em 2019, têm como meta a confecção e instalação de mais 200 ninhos artificiais. Para tanto, seguimos em busca da doação de recursos por parte de empresas e pessoas físicas, que escolhem o nome do ninho e recebem um certificado digital, informações, fotos e vídeos durante a estação reprodutiva dos papagaios. É possível adotar um ou mais ninhos ou mesmo ajudar o projeto com qualquer quantia. Paralelamente, temos uma campanha contínua de comunicação que visa a mobilização da sociedade para a importância de conservar a espécie na natureza e combater o tráfico dos papagaios-verdadeiros.

Nessa campanha, trabalhamos temas como: não compre papagaios que nasceram em vida livre, pois estará financiando o tráfico e contribuindo para extinção da espécie; denuncie às autoridades ambientais do seu Estado quem coleta, transporta ou vende os ovos e filhotes de papagaios-verdadeiros, pois assim será possível agir com eficácia; proteja ou plante árvores em seu quintal, áreas verdes e rurais para que os papagaios e tantas outras espécies da nossa fauna possam se alimentar, se abrigar e se reproduzir; e ajude os papagaios mudando os seus atos ou espalhando para amigos e parentes o quanto é importante vê-los voando na natureza.

Fauna News – Nesses 27 anos de trabalho com as populações de papagaios, quais são os principais desafios que você enfrenta?
Gláucia Seixas – Enquanto projeto, o maior desafio é conseguir recursos para manter a sustentabilidade das atividades, uma vez que os recursos para conservação são bastante escassos. Enquanto objetivo do projeto, o maior desafio é mudar a relação das pessoas com os papagaios-verdadeiros nascidos em vida livre, quanto ao desejo de ter estes animais independente do sofrimento e maus-tratos que isto pode gerar, no ato da captura, transporte e comercialização. Paralelamente, é mobilizar diferentes instituições para que o tráfico de animais silvestres não seja tratado como um crime de “relevância menor” no contexto ambiental, ampliando e fortalecendo todos os elos da cadeia da fiscalização e do cumprimento da legislação.

Fauna News – Quais são as instituições apoiadoras e parceiras do Projeto Papagaio-verdadeiro?
Gláucia Seixas – Atualmente. o Projeto Papagaio-verdadeiro é executado pela ONG Fundação Neotrópica do Brasil, que tem sede em Bonito (MS) e sou uma das fundadoras. Todos os anos, o Projeto Papagaio-verdadeiro conta com o apoio de diferentes instituições, empresas e pessoas físicas. Em 2024, contamos com o apoio financeiro da NuTropica®, da CCR MS Via, do Refúgio Ecológico Caiman, além de doações voluntárias de pessoas físicas denominadas “Amigos(as) do Louro”. Além desses, temos parcerias institucionais com o Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema e o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) do Imasul, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), 0 Ibama, as prefeituras dos municípios do vale do rio Ivinhema (Batayporã, Ivinhema, Jateí, Naviraí e Taquarussu) e propriedades rurais privadas onde atuamos.

Ajude o Projeto papagaio-verdadeiro

O rojeto realiza campanhas permanentemente. Se você se interessou e quer ajudar na conservação da espécie, se informe pelo Instagram do projeto.