SP possui duas das três áreas de Mata Atlântica onde onças-pintadas têm alguma chance

A quantidade de onças-pintadas (Panthera onca) que vivem livres no estado de São Paulo é desconhecida. Entretanto, é certo que a população da espécie é pequena, tendo chances de sobrevivência no longo prazo somente na região do Alto Paraná-Paranapanema, que no território paulista engloba o Parque Estadual Morro do Diabo, a Estação Ecológica Mico-Leão Preto e áreas do entorno, e a região do Contínuo de Paranapiacaba.

A bióloga especialista em áreas de soltura, Adriana Prestes, entrevistou a bióloga, pesquisadora de onças-pintadas e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Beatriz de Mello Beisiegel, sobre a situação das onças-pintadas no estado de São Paulo, as principais ameaças à espécie e os esforços para evitar a extinção do felino na região.

Beatriz é doutora em Etologia (comportamento animal) e pós-doutora em Ecologia. Em 1997, iniciou suas pesquisas no Parque Estadual Carlos Botelho, área protegida que faz parte do Contínuo de Paranapiacaba (conjunto de unidades de conservação de Mata Atlântica no sul paulista) e, desde então, tem se dedicado ao estudo de várias espécies de mamíferos carnívoros da unidade de conservação. Em 2008, começou a pesquisar as onças-pintadas de todas as unidades de conservação que compõem o Contínuo (parques estaduais Carlos Botelho, Intervales, do Alto Ribeira, Nascentes do Paranapanema, Estação Ecológica de Xitué e Área de Proteção Ambiental dos Quilombos do Médio Ribeira). Atualmente, coordena o projeto “Onças da região do Vale do Ribeira e do Alto Paranapanema”.

Segundo Beatriz, além da perda de hábitat, as onças-pintadas paulistas sofrem com as rodovias e a caça.

Adriana Prestes – Se fala muito sobre a onça-pintada. Por que a espécie é tão importante para a conservação da biodiversidade?
Beatriz de Mello Beisiegel – As onças-pintadas são os predadores de topo em grande parte do continente americano, ou seja, podem se alimentar de uma grande quantidade de espécies e não fazem parte da dieta de nenhuma espécie. Por isso, são responsáveis por todo o equilíbrio da cadeia alimentar, exercendo o que se chama de “regulação de cima para baixo” nas populações de presas e, em última análise, em todo o ambiente. Isso porque as onças-pintadas se alimentam principalmente de grandes herbívoros, como antas, queixadas, catetos e veados. Com isso, exercem uma dupla função sobre as populações dessas presas: mantêm as populações saudáveis, pois caçam principalmente os animais mais fracos e doentes, e mantêm as densidades populacionais dessas presas em um nível ótimo para o equilíbrio do hábitat.

Esses grandes herbívoros, por sua vez, são os jardineiros e engenheiros da floresta, dispersando e predando sementes de várias espécies importantes de árvores. Assim, na ausência das onças-pintadas, as populações de queixadas, por exemplo, podem aumentar tanto que a floresta não consegue produzir alimento suficiente para elas, fazendo com que esses animais comecem a utilizar as roças do entorno.

Além disso, genes que são prejudiciais à saúde dos animais, causando algum defeito que seria rapidamente eliminado da população por causarem maior vulnerabilidade à predação pelas onças-pintadas, podem se propagar pela população na ausência do predador. Ainda, grandes populações de grandes herbívoros podem causar desequilíbrio na dispersão e predação de sementes, no pisoteio da floresta, modificando, a longo prazo, toda a estrutura do hábitat.

Adriana Prestes – Ainda existem populações viáveis de onças-pintadas no estado de São Paulo? Qual a população e distribuição em território paulista? Onde tem mais onça no Estado?
Beatriz de Mello Beisiegel – Existem apenas três áreas em toda a Mata Atlântica onde as populações de onças-pintadas ainda têm chance de sobrevivência no longo prazo e duas delas estão, total ou parcialmente, inseridas no estado de São Paulo. São a região do Alto Paraná-Paranapanema, que no nosso estado engloba o Parque Estadual Morro do Diabo, a Estação Ecológica Mico-Leão Preto e áreas do entorno, e a região do Contínuo de Paranapiacaba. Essas são as principais populações de onças-pintadas em território paulista, mas ocorrem indivíduos também em outras áreas, na divisa com o Paraná, ao longo da Serra do Mar e há alguns registros eventuais na Serra da Mantiqueira e na região dos parques estaduais Rio do Peixe e Aguapeí.

Embora não haja uma estimativa da população de onças no Estado, pode-se afirmar com segurança que são poucas e, no Contínuo de Paranapiacaba, área em que estudo a população, elas estão diminuindo.

Adriana Prestes – Como é o dia a dia de quem trabalha com essa espécie?
Beatriz de Mello Beisiegel – Pergunta difícil de responder devido à grande quantidade de formas que o trabalho com a espécie pode assumir. Por exemplo, a pessoa pode trabalhar com prevenção e mitigação de conflitos, reprodução, captura e acompanhamento por telemetria, estimativa de densidade populacional, de ocupação, modelos matemáticos para tudo isso e armadilhamento fotográfico em campo para essas estimativas, elaboração de políticas públicas que promovam a conservação da espécie, etc.

Eu diria, entretanto, que algumas características comuns a todos nós são responder, diariamente, a mentiras sobre aparições e ataques de onças, tentando utilizar esses casos para informar e conscientizar as pessoas, e a preocupação com o que pode estar acontecendo nesse momento com os bichos que estudamos e amamos.

Adriana Prestes – Como é feito o trabalho de monitoramento desta espécie?
Beatriz de Mello Beisiegel – O monitoramento pode ser feito de várias formas. As duas principais são a telemetria, na qual um animal é capturado, anestesiado e equipado com um colar GPS que envia os dados para um satélite, de onde eles são enviados para os pesquisadores por internet, e o monitoramento fotográfico, no qual cada onça-pintada é reconhecida individualmente por suas rosetas (manchas) e diferentes arranjos espaço-temporais dos equipamentos são utilizados para as várias perguntas que se quer responder, como quais são as características ambientais preferidas por elas, quantas onças existem em dada área, etc.

Adriana Prestes – Quais as principais ameaças diretas e indiretas para a espécie em território paulista?
Beatriz de Mello Beisiegel – As onças-pintadas precisam de grandes áreas bem conservadas para sua sobrevivência, portanto o desmatamento e a consequência perda de hábitat são as maiores ameaças para a espécie em São Paulo. Porém, as onças pintadas não perdem habitat só por desmatamento. Rodovias podem dividir grandes blocos de floresta, dificultando ou impedindo o deslocamento dos animais e causando a perda de parte do hábitat delas.

A caça das presas das onças-pintadas, diminuindo a quantidade de alimento disponível para elas, faz com que precisem se deslocar mais para conseguir comer, causando perda de qualidade do hábitat. Ou seja, passa ser preciso mais floresta para abrigar a mesma quantidade de onças-pintadas.

Em populações pequenas, como as nossas, a caça de onças-pintadas é uma das principais ameaças. O risco de extinção no longo prazo dessas populações aumenta violentamente a cada vida de onça perdida fora de hora; de indivíduos ainda reprodutivamente ativos. Assim, para nossas populações temos que ter em mente sempre que cada onça faz a diferença. Mortes por caçadores, como ocorreu com a Soneca, em 2014, e com o Máscara, em 2021, e com um indivíduo adulto aqui em Juquiá, em 2017, não podem ser toleradas. Isso também vale para perdas por outros motivos, como os atropelamentos que ocorreram no Parque Estadual Morro do Diabo no começo deste ano.

É importante destacar que fatores sobre os quais não temos controle, como a urbanização e adensamento populacional no entorno de unidades de conservação, podem ter profundo impacto sobre as populações da espécie, já que as onças-pintadas evitam áreas impactadas por atividades humanas.

Adriana Prestes – Quais são os objetivos das ações de conservação das onças-pintadas em São Paulo? Ampliação de hábitat, medidas para aumento populacional em alguma região específica, ações para inibir caça, trabalhos na área de coexistência humano-fauna…?
Beatriz de Mello Beisiegel – Todas as medidas que você citou são importantes, com destaque para a criação e implementação de unidades de conservação e a conexão entre elas, a detecção dos locais onde ainda existem corredores que mantêm a conectividade entre as unidades de conservação e a implementação de medidas para evitar a perda dessa conectividade, e o combate a qualquer tipo de caça.

A coexistência humano-fauna precisa ser abordada de uma forma ampla, com a implementação de projetos de prevenção de conflitos e a adoção de medidas de reforço à “saúde única” em todo o Estado, mas principalmente no entorno e interior de áreas onde ainda existem onças-pintadas. É urgente também implementar políticas públicas de manejo populacional integrado das populações de cães e gatos e prevenção de zoonoses e de doenças que podem ser transmitidas por animais domésticos aos silvestres.

Adriana Prestes – As onças-pintadas do Vale do Ribeira tem alguma especificidade física ou comportamental que as diferencie de indivíduos de outros biomas ou até mesmo da própria Mata Atlântica, como da região do Iguaçu?
Beatriz de Mello Beisiegel – Todas as onças-pintadas pertencem a uma só espécie e não há subespécies. Porém, as onças da Mata Atlântica são bem menores do que as do Pantanal, por exemplo. As nossas fêmeas têm por volta de 50 quilos e os machos podem ter até o dobro desse tamanho, enquanto no Pantanal os animais podem pesar até cerca de 150 quilos.

Por outro lado, os filhotes das onças-pintadas permanecem com as mães por dois ou mais anos, aprendendo sobre seus ambientes. Assim, as onças daqui conhecerão os caminhos daqui pelas serras e vales e conhecerão os ambientes que cada uma das presas prefere e onde é mais fácil capturá-las. Esse tipo de comportamento aprendido pode se diferenciar mesmo entre áreas de Mata Atlântica, como aqui, Iguaçu e Morro do Diabo. Além disso, parte dos comportamentos da espécie varia com a densidade populacional e esses comportamentos, como a busca por fêmeas e mesmo a idade de dispersão de filhotes, também irá diferir bastante entre aqui, com uma baixa densidade populacional, e outras áreas de Mata Atlântica que tenham densidades maiores.

Adriana Prestes – O status de conservação da espécie é “vulnerável” na Amazônia e no Pantanal e “criticamente ameaçado” na Mata Atlântica e no Cerrado. Ainda são frequentes as notícias de caça ilegal, inclusive com animais abatidos com crueldade, como decapitações e outras mutilações. E você já salientou que essa prática pode ter efeito devastador para a espécie. O que precisa ser feito para que a legislação seja cumprida, uma vez que a caça de animais silvestres é proibida em nosso país?
Beatriz de Mello Beisiegel – São tantas ações, mas é fundamental combater os diversos projetos-de-lei que tentam liberar qualquer forma de caça; combater qualquer forma de caça, mesmo a que se chama de caça de “controle” de javalis e javaporcos e que não só não controla, como tem o efeito de recriar a cultura da caça e normalizar a crueldade envolvida nessa atividade.

Deve-se também aumentar o rigor e o cumprimento da legislação ambiental relacionada à caça, para que esse crime deixe de se encaixar entre os delitos de “menor potencial ofensivo”. Nunca se deve aceitar e nem ser complacente com crimes de caça. Temos de combater a noção errônea de que a caça “está no sangue”. É preciso substituir essa cultura que glorifica os atos de violência, covardia e crueldade envolvidos na caça, que os associa a virilidade, força, coragem e outras bobagens, por uma cultura de repúdio total à atividade, de forma que ela não seja mais socialmente aceita.

Adriana Prestes – Em 2021, uma filhote de onça-pintada foi apreendida com um traficante de animais no litoral sul de São Paulo, região que é próxima do Vale do Ribeira. Há captura de onças para o comércio ilegal de animais vivos na região ou esse foi um caso isolado?
Beatriz de Mello Beisiegel – Esse caso não foi isolado. Ainda existe essa captura em nossa região. Devido à baixíssima densidade populacional das onças-pintadas no Vale do Ribeira e no Alto Paranapanema e à natureza ilegal desse comércio, o que causa dificuldade na obtenção de informações, gerando subestimativa de casos, podemos apenas supor que eles não são muito frequentes. Ainda assim, causam alto impacto na população da espécie, já que provavelmente envolvem o assassinato da mãe do filhote capturado.

Adriana Prestes – Recentemente, foi publicada matéria apresentando o “Corredor da Onça”: um corredor ecológico ao longo das margens do rio Araguaia, com mais de três mil quilômetros de extensão, coordenado pelo Instituto Onça Pintada. Conhecendo a situação da espécie no estado de São Paulo, como você a possibilidade de implantação de uma experiência assim em território paulista?
Beatriz de Mello Beisiegel – Aqui em São Paulo as serras do Mar, Paranapiacaba e Mantiqueira já formam um corredor natural para as onças-pintadas. Deve ser feito um esforço para garantir a conectividade entre essas grandes manchas de floresta, com dois componentes: impedir a perda de conectividade onde ela existe e restaurar pontos de conectividade perdida. Nesse ponto é fundamental pensar os impactos de rodovias nas onças-pintadas e como reverter esse impacto.

Além disso, é importante reestabelecer as onças-pintadas, principalmente fêmeas, em áreas onde atualmente elas não utilizam ou não são registradas, como o Parque Estadual da Serra do Mar. Outro corredor fundamental seria o rio Paranapanema, conectando as duas principais populações do estado. Ambos os casos dependem de imensos esforços, sendo que para o que Paranapanema volte a ser um corredor ecológico é necessária uma restauração maciça da vegetação das suas margens.

Adriana Prestes – Será que algum dia veremos a reintrodução das onças pintadas em São Paulo?
Beatriz de Mello Beisiegel – Para que haja reintrodução de uma espécie, é necessário que os fatores que causaram seu declínio populacional ou extinção estejam controlados ou tenham sido eliminados. Em várias áreas do Estado seria interessante a reintrodução de fêmeas, promovendo a reocupação dessas áreas pelos machos e o revigoramento genético da população. Mas frente a tudo que já coloquei sobre as ameaças que precisam estar eliminadas ou controladas para que possa haver essa reintrodução… (Beatriz deixa o raciocínio implícito).

Reintrodução é sempre um processo extremamente caro e a conservação do que já está aqui é sempre preferível e mais barata. Porém, se localmente houver um empenho gigantesco em eliminar as ameaças que causaram o declínio populacional da onça-pintada, pelo menos para um nível suficiente para que possa ocorrer a reintrodução, a espécie só teria a ganhar.