O “dente-de-sabre” dos rios neotropicais

Todo mundo que trabalha com Zoologia ou alguma outra área em que se estuda os animais tem os seus bichos de predileção. Aquele dos quais você gosta mais, os favoritos mesmo, e que muitas vezes não são relacionados aos respectivos temas de trabalho e especialização. Eu, por exemplo, mesmo não sendo um estudioso do grupo, acho os integrantes a ordem dos carnívoros (Carnivora) o máximo, especialmente os felídeos (Felidae), a família dos gatos. Dentre os felídeos, gosto demais da extinta subfamília Machairodontinae, a dos famosos tigres-dente-de-sabre. Aliás, não sou só eu que gosto desses gatões do passado, mas certamente muita gente, a julgar pela presença marcante deles em muitas manifestações da cultura pop.

Bom, diante do exposto, fica fácil entender o quão impactante para mim foi a notícia recente do achado de um filhote mumificado de felino dente-de-sabre, mais especificamente um gato-de-cimitarra da espécie Homotherium latidens. O gatinho, com idade estimada em apenas três semanas de vida, estava congelado no pergelissolo (permafrost) no rio Badyarikha, no nordeste de Yakutia, na Rússia. A amostra em que estava o exemplar foi datada como sendo, aproximadamente, de 31 mil a 32 mil anos atrás [1], o que abre uma excitante janela para o passado.

A magnitude da descoberta pode ser medida pelo fato de que, apenas algumas horas após a divulgação, as redes sociais já estavam tomadas por artes bem elaboradas atualizando os desenhos do gato-de-cimitarra, com base no aspecto do filhote descongelado e, especialmente, seu padrão de coloração. O filhote, praticamente em tempo recorde, já está bastante ilustrado e, é claro, há muita comoção por ele ter vivido apenas três semanas. Não tem jeito, filhote é um negócio que sempre emociona a gente – mas, diga-se de passagem, só no caso de bichos mais filogeneticamente próximos a nós, pois raramente vejo quem defenda as lagartas ou outros imaturos de insetos, por exemplo. Eu, como sou igual a todo mundo (ao contrário do que me dizia minha mãe: “Você não é todo mundo!”), também fiquei bem triste com o infortúnio do gatinho. Mas… vida que segue.

O gênero Homotherium tinha ampla distribuição, com registros conhecidos na Europa, Ásia, África e América [2]. Mas nem de longe é o mais famoso dentre os felinos dente-de-sabre, cargo que fica com o gênero Smilodon, ao qual pertence o único tigre-dente-de-sabre com ocorrência registrada no Brasil: Smilodon populator.

Novo gênero com maxila bem alongada

Neste momento, quem ainda está lendo deve estar se perguntando por que que diabos uma conversa sobre felinos do passado está em uma coluna a respeito de invertebrados. Além, por óbvio, de poder falar sobre esses bichos incríveis, o que eu quero é mostrar que todos os assuntos podem levar ao onipresente mundo dos insetos. Inclusive os dentes-de-sabre.

A pouco popular ordem Ephemeroptera, cujos integrantes recebem os nomes comuns de efêmera, efemérida, efemerídeo, borboleta-de-piracema, sarará e siriruia, dentre outros, já foi assunto deste espaço algumas vezes [3] [4] [5] [6], até mesmo por ter sido meu tema de estudo por muito tempo. A ordem dos efemerópteros é peculiar, dentre todos os insetos, por ter taxonomia baseada em grande parte nas formas imaturas, as ninfas ou náiades, que são aquáticas [3]. Para se identificar espécies, gêneros e até famílias, muitas vezes é necessário o minucioso exame das peças bucais das ninfas, sendo elas as mandíbulas, as maxilas e o lábio, bem como a estrutura que os protege anteriormente, o labro.

Devido a isso, o gênero foi batizado como Hydrosmilon, epíteto derivado da união do vocábulo grego hydro, que significa água, e Smilodon, nome do mais famoso dos dentes-de-sabre. No papel de fã de carteirinha do Smilodon e seus parentes, eu adoro esse nome, a ponto de tê-lo colocado na minha lista de 50 nomes mais legais de insetos brasileiros [8].

As ninfas de Hydrosmilodon habitam riachos com fundo formado por rochas expostas, em áreas de baixa a média altitude. Geralmente preferem ficar entre folhas e restos de madeira depositados em remansos ou mesmo sob pedras roladas submersas. No Brasil está registrada a ocorrência de duas espécies atualmente classificadas nesse gênero: Hydrosmilodon gilliesae (Roraima, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul) e Hydrosmilodon plagatus (Pernambuco e Espírito Santo) [9] [10] [11]. Porém, como há evidências de que o gênero seja polifilético, é possível que essas duas espécies brasileiras venham a ser futuramente remanejadas [10].

Independentemente das questões filogenéticas ou taxonômicas, não só os insetos, mas todos os habitantes dos ambientes de água doce dependem diretamente da conservação das áreas naturais. O que, a cada dia que passa, se mostra mais e mais difícil, deixando apreensivos aqueles que labutam pela causa ambiental. O próprio encontro do jovem gato-de-cimitarra, descongelado do pergelissolo, a camada de solo que deveria permanecer congelada o ano todo, é um indício de que as coisas não vão lá muito bem no planeta. Afinal, o aquecimento global, com todas as suas consequências, já está batendo às nossas portas. Até mês que vem.

Referências

• [1] https://www.nature.com/articles/s41598-024-79546-1
• [2] Turner, Alan & Antón, Mauricio. 1997. The big cats and their fossil relatives. Columbia University Press.
• [3] https://faunanews.com.br/as-aguas-de-marco-fechando-o-verao-sao-cheias-de-insetos/
• [4] https://faunanews.com.br/os-insetos-aquaticos-entre-herois-e-viloes/
• [5] https://faunanews.com.br/nas-tatuagens-libelulas-e-efemeras-a-flor-da-pele/
• [6] https://faunanews.com.br/o-mosquito-o-besouro-e-a-efemerida-que-vieram-da-africa/
• [7] https://www.ephemeroptera-galactica.com/pubs/pub_f/pubflowersr1992p655.pdf
• [8] https://faunanews.com.br/cinquenta-insetos-brasileiros-com-nomes-legais-na-minha-opiniao/
• [9] http://ephemeroptera.com.br/lista/hydrosmilodon/
• [10] https://locus.ufv.br/server/api/core/bitstreams/37888937-3325-43e4-97df-8d4b8f94461c/content9M
• [11] Lima, Lucas R.C. et al. 2012. New species and new records of Hermanella complex (Ephemeroptera: Leptophlebiidae) from Eastern Brazilian Coast. Annales de Limnologie – International Journal of Limnology 48: 201-213.

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