Luta pelos direitos das mulheres ganha força na Ciência

Muito se fala sobre o feminismo e sobre a presença da mulher em determinados espaços. E nas áreas de pesquisa e ciências não poderia ser diferente. O machismo estrutural e a discriminação de gênero ainda estão presentes nos ambientes acadêmicos, incluindo as ciências ambientais. Para discutir sobre o tema, no Dia Internacional da Mulher, o Fauna News traz uma entrevista com a bióloga e pesquisadora Daniella França, que integra movimentos pela igualdade das mulheres no meio científico.

Daniella é bióloga licenciada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás, mestra em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais pela Universidade Federal do Acre e doutora em Zoologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Leciona na Universidade Santo Amaro e é pesquisadora nas áreas de Educação Ambiental, Herpetologia, Ornitologia e sobre questões de gênero na Ciência. É co-fundadora e coordenadora de Educação para Conservação da iniciativa Chalana Esperança, que atua em ações de conservação do Pantanal. É mãe da Paulinha e do Ernesto.

É também uma das fundadoras dos coletivos Herpetologia Segundo as Herpetólogas e rede OrnitoMulheres, que promovem o protagonismo feminino nas áreas científicas da Herpetologia (estudo dos répteis e anfíbios) e Ornitologia (estudo das aves).

Fauna News – Como surgiram as iniciativas para criação dos movimentos “Herpetologia segundo as herpetólogas” e “OrnitoMulheres”?
Daniella França – O Herpetologia Segundo as Herpetólogas ou H2H surgiu quando eu e algumas colegas de laboratório do Museu de Zoologia da USP, todas herpetólogas, começamos a compartilhar sobre os desafios que nós, pesquisadoras, enfrentávamos dentro da herpetologia brasileira. Questões relacionadas ao machismo em congressos da área, em publicações científicas, em laboratórios… A partir da observação e discussão sobre esses acontecimentos e, inspirada por outros movimentos que já estavam tomando forma, como o Mulheres na Ciência, começamos a nos unir.

A ideia foi começar a divulgar o trabalho e as pesquisas conduzidas por mulheres na Herpetologia, a mostrar que há mulheres desenvolvendo trabalhos primorosos e pesquisa de qualidade; nos tornando conhecidas na área para sermos lembradas como referência quando alguém estivesse à procura de palestrantes ou referências para pesquisas, por exemplo.

A rede OrnitoMulheres seguiu a mesma linha. Começaram a surgir movimentos na herpetologia, na mastozoologia, na ictiologia, mas ainda não havia nada na Ornitologia, que é uma área ainda com presença majoritariamente masculina. Já havia o Passariminas, grupo de mulheres ornitólogas, mas ainda não era um grupo abrangente, com representantes de todo o Brasil. Certo dia, a Shirliane Araújo, docente da Universidade Estadual do Ceará (UECE) me procurou e tivemos essa conversa. Compartilhávamos do anseio de criar uma rede abrangente o suficiente para ser uma rede de apoio, não apenas com pesquisadoras da área, mas que contasse com observadoras de aves. E a rede se formou e hoje conta com mais de 400 mulheres (e quase 400 no grupo de WhatsApp), que todos os dias compartilham suas experiências, tanto positivas quanto negativas.

Fauna News – De que maneira você começou a encontrar outras mulheres que tivessem esses mesmos anseios em falar da presença da mulher na Ciência e nas áreas de trabalho específicas com fauna?
Daniella França – De 2015 para cá, esses movimentos feministas começaram a ganhar força nas áreas ligadas à Biologia e à Ciência como um todo. Na época, vim para São Paulo por conta do meu doutorado e comecei a ter esse contato com outras mulheres, criando referências de mulheres cientistas e profissionais, algo que até então não era comum para mim enquanto profissional na consultoria ambiental. Passei a frequentar mais espaços, como congressos, e a presenciar mulheres protestando contra atitudes machistas naqueles ambientes.

Fauna News – Quais foram suas principais motivações pessoais e profissionais para que a presença da mulher na Ciência começasse a ser discutida?
Daniella França – Primeiramente, foi minha experiência de vida. Eu sei o quanto foi difícil ocupar o espaço onde estou hoje. Tenho uma carreira consolidada, sou reconhecida como pesquisadora, como bióloga, como profissional de qualidade. Tenho consciência do quanto o caminho até aqui foi difícil, principalmente por eu ser mulher; uma mulher que não saiu de um local privilegiado, que saiu de uma família pobre, que teve que trabalhar muito, sofrer bastante para conseguir terminar a universidade, fazer mestrado, doutorado; como mãe.

Inclusive fiz mestrado e o início do doutorado com uma criança pequena no colo. Enquanto passava por esses desafios, eu sabia que precisava usar esse espaço de fala para poder abrir portas para outras meninas e mulheres que estavam chegando. Um dos motivos que me move é este: poder mostrar que é possível atravessar todo o machismo estrutural que assola nossa sociedade e chegar a um lugar de destaque. Nós não podemos perder mulheres cientistas para esses problemas.

Fauna News – Você acredita no potencial que esses movimentos tem de influenciar diretamente universidades, grupos de pesquisa e o mercado de trabalho?
Daniella França – Acredito e enxergo este potencial de transformação. Esses movimentos já estão afetando diretamente toda essa estrutura. A gente começou a fazer muito barulho; começamos a dar evidência a esses problemas que enfrentamos todos os dias, seja no ambiente acadêmico, seja no mercado de trabalho. A exposição dessas questões e a oportunidade de discuti-las é muito importante, pois vamos dando voz a quem precisa e essas pessoas vão tendo consciência de que elas não estão sozinhas.

É gratificante ver, principalmente quando vou dar palestra sobre esse tema, quantas meninas e mulheres que estavam pensando em desistir do curso ou estavam inibidas de concorrer a um mestrado ou doutorado voltam atrás por se sentirem seguras, sabendo da existência desses grupos, dessa rede de apoio a qual elas podem recorrer. Estamos afetando positivamente universidades e centros de pesquisa e temos relatado que está acontecendo, inclusive, uma diminuição do número de assédios, uma diminuição do impacto do machismo na carreira das mulheres.

Fauna News – Quais são as discriminações de gênero mais comuns encontradas no meio científico, tanto no ambiente acadêmico quanto no mercado de trabalho?
Daniella França – O descrédito em nosso conhecimento específico é o principal ponto. Muitas vezes, mulheres não conseguem assumir cargos de liderança dentro de laboratórios ou centros de pesquisa e são menos chamadas para bancas de avaliação de titulação. Assim como nos trabalhos de campo, em que o esforço físico e o trabalho braçal são, em certas situações, parte da atividade, como armar redes de captura de aves ou instalar de armadilhas pitfall, em que é necessário cavar buracos no chão.

Além disso, nossa capacidade intelectual é colocada à prova diversas vezes, caracterizando essa discriminação mais velada, que acaba prejudicando tanto o psicológico quanto a autoestima das mulheres.

 Fauna News – Quais foram as dificuldades que você enfrentou ligadas ao viés de gênero ao longo dos anos como profissional?
Daniella França – Eu fui muito prejudicada principalmente por ter sido taxada como “menina”, pois me formei muito nova, com 21 anos. Quando falava que trabalhava com cobras e sapos, eu era completamente descredibilizada.

Fauna News – De que formas a sociedade pode agir para dar força a esses movimentos das mulheres?
Daniella França – Primeiramente, a sociedade deve reconhecer que existem algumas pessoas que têm mais privilégio do que outras. Por exemplo, nós, mulheres brancas, temos que reconhecer que o nosso feminismo é um feminismo diferente do feminismo negro ou das mulheres trans. Elas vão enfrentar dificuldades que nós não temos ideia de quais são, que muitas vezes elas têm de lutar pela vida enquanto a gente está lutando por direitos de trabalho e direitos um pouco mais aplicados. Então, esse é o primeiro passo.

Os homens, especificamente, precisam reconhecer que eles têm privilégios. A partir desse reconhecimento, é possível eles enxergarem que existe uma desigualdade para podermos fazer com que a sociedade seja um pouco mais justa; de que é possível participar desses debates e compreender que há essa diferença; de que é possível trazê-los para lutar conosco.