Pantanal em chamas: “os animais estão chorando e não há morfina que amenize a dor que estão sentindo”

As mudanças climáticas estão alterando importantes ciclos naturais no Pantanal. Seca severa, incêndios ocorrendo cada vez mais cedo do que o previsto, temperaturas batendo recordes. Eventos extremos, que aconteceriam a cada 160 anos em um cenário sem a intensificação do aquecimento global, tendem a se repetir a cada 35 anos.

Essas previsões são da World Weather Attribution (WWA), organização internacional que reúne cientistas renomados para estudar os eventos extremos, em que o Laboratório de Análise de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ) faz parte.

O Pantanal vem enfrentando condições de extrema seca desde 2018, quando ocorreu a última grande cheia do bioma. E o problema da escassez de chuvas acaba se relacionando com a questão dos incêndios naturais e criminosos registrados na região. 2024 já supera qualquer outro período da série histórica quando observados os números de área queimada. Até o momento, já são mais de dois milhões de hectares consumidos pelo fogo.

Os impactos na biodiversidade são inúmeros e já eram previstos pelos pesquisadores: falta de água, falta de alimentos, perda de hábitat, muitos animais mortos e feridos pelo fogo. A necessidade de cuidados aos animais que precisam se recuperar é grande.

O Fauna News entrevistou a veterinária e presidente do Instituto Tamanduá, Flávia Miranda, que realiza pesquisas no Pantanal desde 2006 com mamíferos chamados Xenarthras. Esse grupo é um dos mamíferos mais antigos do mundo, datando de 65 milhões de anos, e engloba tamanduás, bichos-preguiça e tatus.

Flávia foi responsável pela descrição de três novas espécies de tamanduaís, de uma espécie de bicho-preguiça e da sinonimização de três espécies (quando uma espécie recebe mais de um nome científico e é necessário determinar a prevalência de um somente). Ela está trabalhando no processo de descrição de mais um bicho-preguiça. Segundo ela, “se perdemos animais dessas espécies, estamos perdendo história evolutiva”.

A ocorrência de incêndios fora das épocas previstas – este ano, começaram em julho, quando o normal é setembro – são motivo de preocupação, principalmente após 2020, em que morreram mais de 17 milhões de vertebrados em consequência do fogo. Naquele ano, Flávia e a equipe do Instituto Tamanduá, por causa dos diversos tamanduás-bandeiras filhotes e órfãos, criaram o projeto Órfãos do Fogo. Muitos dos animais resgatados nesta época já estavam sendo reintroduzidos na natureza.

Em agosto, um grande incêndio atingiu uma das principais áreas de pesquisa do Instituto Tamanduá no Pantanal: a fazenda Caiman. Cerca de 80% da área da propriedade foi consumida pelo fogo. A equipe está em campo realizando a busca ativa e os primeiros socorros aos animais que são vitimados pelo fogo.

Fauna News  – Quais são os principais riscos que os Xenarthra correm atualmente?
Flávia Miranda – Os Xenarthra são os mamíferos que mais correm risco por questões relacionadas às mudanças climáticas. Quem assistiu ao filme “A era do gelo” pode ter uma boa noção, pois aquilo que se passa na animação foi real. Havia vários gêneros de Xenarthra que foram extintos por conta da mudança climática, do resfriamento. E agora esses animais estão passando por esse processo também, sem dúvida alguma. Os Xenarthra têm uma temperatura corpórea muito baixa e qualquer aquecimento ou resfriamento é sentido. Fora isso, existem as pressões como incêndios, atropelamentos, saúde da fauna…

Fauna News – Os incêndios no Pantanal afetaram uma área importante de estudos do Instituto, que é a fazenda Caiman, além de destruir importantes remanescentes do bioma, hábitat de diversas espécies. Quais são as principais estratégias que você tem traçadas com a equipe do Instituto para atender, principalmente, os tamanduás-bandeira vítimas do fogo?
Flávia Miranda – Os incêndios estão atingindo áreas importantes não só de pesquisa, mas de conservação dessas espécies. A Caiman é um refúgio não só para o tamanduá-bandeira, mas para várias espécies, inclusive ameaçadas de extinção. Acabamos de resgatar dois tamanduás que estão sob nossos cuidados e que devem retornar à vida livre em breve. O fogo, atingindo essa área, traz um prejuízo ambiental que ainda não conseguimos mensurar. Uma outra área de pesquisa importante do Instituto é a pousada Aguapé, em Aquidauana (MS), que não foi acometida pelo fogo, mas está sofrendo com os resquícios e consequências da proximidade com áreas que sofreram com incêndios.

Nessa área estão os principais recintos de reabilitação dos tamanduás do projeto Órfãos do Fogo. Precisamos resgatar os animais que já estavam soltos e sendo monitorados pela equipe para que eles também não sofressem com os incêndios. Fora a dimensão do trabalho que é a reintrodução de um indivíduo à vida livre. Esses animais são órfãos dos incêndios de 2019 e 2020. Quando existe essa necessidade de retorná-los aos recintos, na tentativa de salvá-los do fogo, é todo um trabalho perdido, que retorna à estaca zero. O indivíduo volta a ter contato com o ser humano, são necessárias baterias de exames clínicos para acompanhar o estado de saúde do animal, a adaptação de filhotes desde o leite para a alimentação mais seca até chegar aos cupins e formigas, a dessensibilização para o uso do radiocolar, o custo que envolve todas estas etapas, enfim… É muito complexo e talvez as pessoas não tenham noção da dimensão do impacto.

Fauna News – Você vem trazendo, em suas redes sociais, imagens da realidade que os animais enfrentam por conta da degradação ambiental. São imagens chocantes. Qual sua intenção?
Flávia Miranda – Por muito tempo, tentamos não ser sensacionalistas. Tentamos minimizar e, na verdade, colocar até panos quentes em termos do que estava acontecendo, para que a sociedade não se chocasse tanto. Mas este ano, a gente fez diferente. Na verdade, não estamos sendo sensacionalistas, mas sim realistas. Nem sensacionalista, nem pessimista. Sempre falo à minha equipe que o otimismo é ruim e o pessimismo também. Mas o realismo é fundamental. Nada das imagens postadas foram montadas ou forjadas. Todas fazem parte do nosso dia-a-dia de atendimento às vítimas do fogo.

Estamos cansados de não mostrar a realidade. A sociedade precisa ter contato com essa realidade para entender, até mesmo, onde ela está inserida nisso tudo. A fauna é da União, então é responsabilidade de todos nós. Não é responsabilidade só do terceiro setor, do segundo setor. Temos que seguir juntos para que, efetivamente, alguma coisa mude.

Cuidando das patas queimadas de um tamanduá-bandeira – Vídeo: Instituto Tamanduá

Fauna News – A perda de uma quantidade grande de animais dessas espécies pode levar a um processo de extinção local?
Flávia Miranda – A perda desses espécimes queimados, atropelados ou por outras vias é uma grande perda para a biodiversidade. Vamos falar de diversidade genética. O Pantanal, tanto norte quanto sul, tem unidades evolutivas de tamanduá-bandeira únicas. Estamos perdendo indivíduos que vão fazer, sim, a diferença para esse bioma, para a manutenção desse hábitat. Não conseguimos mensurar quantos indivíduos foram perdidos, nem a porcentagem de população que foi dizimada com o fogo, muito menos mensurar a perda de diversidade genética para manter essas populações ainda viáveis.

Eu acho que uma das pautas que não estão sendo discutidas no Pantanal é esse tempo de não-retorno do Pantanal. Eu vejo isso muito na Amazônia. Participei de algumas reuniões em que se falava muito sobre esse ponto de não-retorno na Amazônia, mas para o Pantanal não se fala. Para mim, já ultrapassamos a linha. O Pantanal agora é outro bioma, com espécies diferenciadas, com suas características já mais adaptadas ao fogo e à seca. Hoje, já não existe mais uma planície alagada; isso o Pantanal já foi. A partir de agora, devemos ver como o Pantanal vai reagir ou o que ele vai se tornar sendo uma planície seca, desertificada.

Fauna News – Quais os impactos para os ecossistemas do Pantanal quando se afetam populações desses animais?
Flávia Miranda- Ainda não sei responder. Esse é um dos nossos grandes erros: não saber dimensionar essa perda. Ainda estamos apagando incêndio, no duplo sentido da frase, mas o impacto é gigantesco. Estamos falando, atualmente, dos “big five” (as cinco grandes espécies emblemáticas de mamíferos que ocorrem no Pantanal), de grandes mamíferos sendo atingidos pelos incêndios. Estamos olhando para a anta, a onça, o tamanduá, mas não estamos vendo o impacto nos fungos, bactérias, na alteração da microbiota do Pantanal. Isso também terá uma resposta ambiental no futuro. Pra se ter uma ideia, estamos vendo esse impacto nos tamanduás, que estão contraindo doenças nunca antes vistas na espécie. Está muito claro que essa microbiota está se transformando. E os impactos dessa transformação, quais serão?

Fauna News – Após o período de incêndios, haverá o problema da falta de alimento para esses e tantos outros animais. Vocês têm alguma estratégia para reduzir esse impacto?
Flávia Miranda – As pessoas se sensibilizam muito com as fotos dos animais queimados. Muitas vezes, elas não imaginam que estas fotos tem cheiro… Só quem já resgatou animal queimado imagina como seja esse cheiro. Essas fotos tem som… Os animais estão chorando e não há morfina que amenize a dor que estão sentindo.

Mas, pra mim, pior do que ver esses animais queimados, é ver o impacto da fome cinzenta, que é a que vem após a queimada para os que sobrevivem. A cadeia trófica muda completamente. Animais que predavam certas espécies passam a predar o que encontram pela frente. Começamos a ver bichos magros, cambaleando pelo caminho de cinzas. E pior ainda é para os Xenarthra, que se alimentam de formigueiros e cupinzeiros. Ainda não temos uma estratégia específica para conseguir amenizar a fome cinzenta para eles.

Uma das coisas que eu acredito, mas não tenho nada comprovado, apenas meu “achômetro” de pesquisadora, é que eles preferem formiga que tem menos defesa química, consequentemente mais defesa física, que constroem formigueiros mais duros, com menos concentração de ácido fórmico. Mas, até hoje, não tenho essa informação baseada em evidências. Pode ser que haja algumas espécies de formigas que sejam mais acometidas pelo fogo e, consequentemente, faltará como alimento para os tamanduás.

Fauna News – Essa sequência de incêndios ocorridos nos últimos anos é consequência de ações criminosas, alterações climáticas e ausência do poder público. Como resolver isso?
Flávia Miranda – É uma ótima pergunta. Eu não sei como resolver. Passo noites sem dormir por isso; por não saber como resolver. Vi uma reportagem com o pesquisador Carlos Nobre em que ele levanta a hipótese de as queimadas em São Paulo, Amazônia e Pantanal estarem ligadas ao crime organizado. Uma retaliação à fiscalização. Se realmente for isso, pra nós, ambientalistas, acabou. O buraco é muito mais embaixo. Afirmo isso porque trabalhei bastante tempo na Colômbia e vivi a experiência do que era trabalhar na Amazônia em uma época em que aconteceu a dominação pelas Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Não tinha vez para ninguém. Seria uma questão de mudança de paradigmas para a conservação.

O cheiro e o choro dos animais queimados são marcantes – Vídeo: Instituto Tamanduá