Animais silvestres estão morrendo afogados em canais de irrigação no oeste da Bahia. Desmate e seca tornam essas fontes de água uma armadilha mortal para várias espécies, inclusive em risco de extinção. Impactos podem ser ainda maiores e fontes pedem medidas urgentes para conter as perdas.
O cenário do oeste baiano é dominado por lavouras a perder de vista. Soja e outros grãos avançam sobre o Cerrado, um dos biomas mais devastados do país. As safras dessa crescente fronteira agrícola dependem da irrigação, cujos prejuízos à vida selvagem começam a ganhar luz.
De junho a agosto morreram afogados três lobos-guarás – uma fêmea adulta e dois de seus três filhotes juvenis. Eles representam de 30% a 40% da população da espécie naquela área. Também já foram encontrados sem vida um tatu-peba, um gato-palheiro, inúmeros roedores e uma coruja.
“Os lobos foram encontrados porque eram monitorados com rádio-colares. Imaginem quantos outros animais estão morrendo sem que saibamos”, alerta Rogério Cunha de Paula, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), do ICMBio.
Fontes regionais, que pediram para não ser identificadas, contam que lotes de carcaças são recolhidos semanalmente de canais de irrigação, de variadas espécies de animais silvestres. No território, também há grandes piscinões, reservatórios de água para as lavouras, que igualmente podem atrair a fauna.
Armadilhas fatais
Uma membrana plástica que forra o leito dos canais dificulta a saída de animais. Lobos-guarás e outras espécies tentam escalar as paredes escorregadias. Exaustos, agonizam até a morte. Submergem de vez nas águas cristalinas que abastecem o agronegócio.
Cada canal de irrigação pode ter dezenas de quilômetros, como se fossem “rios artificiais”. Quando instaladas, cercas baixas, danificadas ou frágeis, até de plástico são encontradas, não impedem o acesso dos animais.
Ainda não sabemos se, para economizar dinheiro, cercas não são implantadas ou são muito precárias. A legislação estadual não especifica o tipo de cercas a serem instaladas e fiscalizadas”, destaca Rogério Cunha de Paula, do Cenap.
Lobos-guará podem percorrer até 40 quilômetros diários por rotas definidas, dentro de grandes áreas naturais e até desmatadas ou convertidas em lavouras. Quando topam com os canais, caem ao tentar cruzá-los, como fariam diante de uma estrada ou rodovia.
“Os animais também estão buscando água numa região naturalmente seca e onde o recurso é cada vez mais usado pelo agronegócio”, diz César Victor do Espírito Santo, coordenador de projetos da Fundação Pró-Natureza (Funatura), ONG com quase 40 anos de atuação.
Severas perdas
Maior canídeo sul-americano, o lobo-guará é uma espécie vulnerável à extinção no Brasil cujas populações encolheram um terço nas últimas duas décadas. As principais causas são o desmate, a caça, os atropelamentos rodoviários e doenças passadas por animais domésticos.
Sua principal morada no país é o Cerrado, onde vivem nove em cada dez desses parentes dos cachorros, raposas e outros lobos. Ao comer frutas e espalhar suas sementes pelas fezes, a espécie multiplica árvores e outras plantas nativas.
Por esses e outros quesitos as perdas nos canais de irrigação são tão graves. Cada lobo importa para o equilíbrio ecológico. As mortes fragilizaram a população local pelas perdas de uma fêmea e dois jovens e prejudicaram pesquisas sobre os hábitos da espécie.
Se num curto prazo foram identificados tantos animais mortos numa área isolada, ainda estamos longe de saber a dimensão real do problema [causado por canais de irrigação, no oeste baiano e no país]”, ressalta Rogério Cunha de Paula, do Cenap.
A área onde os lobos-guarás e outros animais morrem afogados fica ao norte do Parque Nacional Grande Sertão Veredas (PNGSV) e de uma fazenda privada. Seus 264 mil ha somados de Cerrado preservado são um grande abrigo para espécies nativas.
O parque integra o Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu, um bloco de quase 1,8 milhão de ha com unidades de conservação, comunidades tradicionais e a Terra Indígena Xakriabá. O território foi imortalizado nos escritos de João Guimarães Rosa, como Grande Sertão: Veredas e Sagarana.
César Victor, da Funatura, conta que mortes semelhantes ocorreram ao menos num imenso projeto implantado desde 1975 nos municípios mineiros de Jaíba, Matias Cardoso e Verdelândia, no Médio rio São Francisco. No local, há 548 quilômetros de canais de irrigação.
“A expansão de cultivos no Cerrado ocorre com desmate, queima, isolamento de áreas protegidas e grandes danos à biodiversidade, mas o agro não muda de atitude”, diz. No bioma, a legislação federal permite o desmate de até 80% da vegetação nativa em fazendas.
Dados analisados por entidades civis revelam que, de 2007 a 2021, o governo da Bahia autorizou o desmate de quase 993 mil ha, 80% (795 mil hectares) no oeste do estado. A área é similar a 32 vezes o território continental de Salvador (BA) ou a 6,5 vezes a superfície da cidade de São Paulo (SP).
Alertas para desmate divulgados esta semana pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) indicam que 494 mil ha foram eliminados de janeiro a agosto na fronteira agropecuária entre o Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Isso representa 75% das perdas deste ano no Cerrado, de 658 mil hectares.
Na Bahia, foram desmatados em agosto 8,7 mil hectares, 5,3% a mais do que no mesmo mês do ano passado. No oeste do Estado, municípios como São Desidério, Correntina e Jaborandi figuram desde o início do ano entre os líderes na eliminação do Cerrado, detalha a análise da ong.
Vidas secas
Há 8,5 milhões de ha de cultivos irrigados no Brasil, sobretudo em regiões mais secas. A área é similar a duas vezes o território do estado do Rio de Janeiro ou à metade da superfície do Uruguai. Para o governo federal, há potencial para irrigar mais 55 milhões de ha.
Um balanço de ongs contou 835 outorgas de água para irrigação emitidas ao oeste baiano pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), entre 2007 e 2022. Elas somam 17 bilhões de litros diários, retirados do subsolo ou de rios.
Esse volume de água abasteceria diariamente sete vezes a população de toda a Bahia, de pouco mais de 15 milhões de pessoas, ou nove vezes a população da cidade de São Paulo (SP), de aproximadamente 12 milhões de habitantes,
Conforme as entidades civis, essa liberação massiva e sem rigor de licenças para desmate e de outorgas, e o desmonte da legislação ambiental, estão na base de políticas de eliminação do Cerrado e de apropriação privada de recursos hídricos mantidas pelo governo Jerônimo Rodrigues (PT).
Diante desse cenário, especialistas pedem um mapeamento urgente dos impactos na fauna gerados por canais de irrigação, mudanças legislativas e nas regras de licenciamento para conter as perdas de biodiversidade, no Cerrado e demais biomas.
Um primeiro passo é melhorar imediatamente as barreiras ao longo dos canais. Instalar cercas onde não existem, reforçar e consertar onde foram implantadas. Adiante, será necessário cruzar passagens sobre os cursos d’água para evitar o isolamento da fauna em grandes territórios.
“Precisaremos ter uma visão geral do que está acontecendo para tomar as melhores decisões, inclusive em benefício do agronegócio. Grandes acionistas e compradores estão olhando hoje para esses impactos”, pontua Rogério Cunha de Paula, do Cenap.
A exportação agrícola baiana somou US$ 6,37 bilhões em 2022, quase R$ 32 bilhões, com um crescimento de 27,53% sobre o ano anterior, aponta a Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária, Irrigação, Pesca e Aquicultura. As vendas chegam sobretudo a Estados Unidos, União Europeia e Mercosul.
A mesma fonte indica que a soja – largamente cultivada no oeste baiano – somou 53,62% das exportações estaduais do agronegócio, ou US$ 3,42 bilhões. A Bahia responde por cerca de 4% das exportações brasileiras do setor, que somaram US$ 159 bilhões no ano passado.
Por cifras como estas, fontes esperam mais responsabilidade do setor, tido como a maior fonte de desmate, de morte e de sofrimento de animais silvestres no país.
Quantos animais ainda precisam morrer enquanto o agro mantém discursos de sustentabilidade?”, indaga César Victor, da Funatura.
Para o especialista, as mortes de fauna silvestre que começam a ser registradas em canais de irrigação impõem um debate nacional sobre os custos reais da produção agropecuária e da exportação de commodities. “Do jeito que está não dá para continuar”, ressalta.
“Não há sustentabilidade real do agronegócio. Vivemos numa fantasia televisionada para facilitar sua aceitação pelo público brasileiro e por compradores internacionais”, ressalta o Engenheiro Florestal pela Universidade de Brasília (UnB).
Advogada especializada em Direito Ambiental e Agronegócio, Monique Fonseca reforça que esses impactos acabam convertendo externalidades positivas, como o meio ambiente equilibrado, em externalidades negativas, como a poluição e as mortes de animais.
“Devem ser construídas melhores políticas de comando e controle e também de mercado, com incentivos ou penalidades, para que ocorra uma mudança real de comportamento das pessoas e das empresas”, avalia a especialista associada à Laclima, uma rede de advogados climáticos da América Latina.
Procurados por ((o))eco, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) e o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia silenciaram sobre os impactos e medidas que poderiam ser adotadas para quantificar e conter as mortes de animais silvestres no oeste do estado.