Assistindo horas de filmagem registradas por uma armadilha fotográfica montada no Parque Estadual do Espinilho, no sudoeste do Rio Grande do Sul, em agosto de 2023, Fábio Mazim e sua equipe apostaram em possíveis avistamentos de lobos-guará ou cervos-do-pantanal e torciam para vislumbrar um gato-dos-pampas, um dos felinos mais ameaçados do mundo.
O que eles não esperavam ver era um animal há muito considerado extinto na região. Para surpresa de todos, o inconfundível focinho longo e a cauda peluda de um tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) foram entrando desajeitadamente na imagem.
“Quando vimos, eu e a equipe, a gente gritou muito e chorou bastante também”, disse à Mongabay o ecólogo do Instituto Pró-Carnívoros. “Até custamos alguns dias para entender, para cair na realidade da importância do registro. Jamais se esperava o registro de um tamanduá-bandeira.”
Vistos com vida pela última vez no sudoeste do Rio Grande do Sul em 1890, tamanduás-bandeira foram avistados 11 vezes na região desde agosto de 2023 – os cientistas não têm certeza se é o mesmo ou se são indivíduos diferentes. De qualquer forma, os avistamentos confirmam um fato inegável: o tamanduá-bandeira está de volta.
Essa é uma grande vitória para o meio ambiente. Os tamanduás-bandeira têm um papel importante em seus ecossistemas, ajudando a controlar o número de insetos, criando poços de água ao cavar e servindo de presas para grandes felinos, como onças.
O hábitat do tamanduá-bandeira se estende da América Central até o cone sul da América Latina. Seu estado de conservação é “vulnerável”, embora seja considerado extinto em vários países, incluindo El Salvador, Guatemala e Uruguai, bem como em regiões específicas, como os estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina e (até agora) Rio Grande do Sul.
No entanto, ver esses animais regressarem aos biomas brasileiros não é apenas um triunfo para os conservacionistas, mas também uma marca surpreendente de sucesso para um programa de reintrodução implementado a cerca de 150 quilômetros dali, na vizinha Argentina.
A reintrodução da fauna nos biomas argentinos
O Parque Nacional Iberá, na província de Corrientes, no nordeste da Argentina, tem 758 mil hectares de terras protegidas e inclui parte das zonas úmidas de Iberá, com suas áreas de pastagens, pântanos, lagoas e florestas. A região já abrigou um pequeno grupo de tamanduás-bandeira antes da perda de hábitat, a caça e os atropelamentos dizimarem a população.
Desde 2007, a ONG Rewilding Argentina, uma afiliada independente da organização sem fins lucrativos Tompkins Conservation, vem reintroduzindo a espécie na região, sendo que a maioria dos indivíduos é de filhotes órfãos resgatados de atropelamentos ou da caça ilegal. Até agora, eles reintroduziram 110 tamanduás-bandeira na natureza.
Várias gerações habitam o parque atualmente, transformando-o de “um lugar de muita defaunação em uma área de abundância”, disse Sebastián Di Martino, diretor de conservação da Rewilding Argentina, em comunicado oficial.
O projeto teve tanto êxito que os tamanduás-bandeira parecem estar se aventurando mais longe e se mudando para novos territórios além das fronteiras nacionais, como o Parque Estadual do Espinilho, no Rio Grande do Sul.
“É quase certo que esse animal (do Parque Estadual do Espinilho) se dispersou a partir da província de Corrientes, na Argentina, como parte da população reintroduzida nas zonas úmidas de Iberá”, disse, em um comunicado oficial, Flávia Miranda, presidente da ONG brasileira Instituto Tamanduá. “A proximidade geográfica e as características morfológicas que observamos no animal nos levam a essa conclusão.”
Segundo Mazim, não é incomum que mamíferos de grande porte andarem distâncias tão longas, mesmo os tamanduás-bandeira, cujos territórios não são particularmente grandes. Para verificar a origem desse tamanduá-bandeira que está no Rio Grande do Sul, Mazim e pesquisadores independentes – o veterinário Paulo Wagner e os biólogos Maurício Santos, Moisés Barp e Yan Rodrigues – irão capturá-lo cuidadosamente e fazer um inofensivo teste de genoma para verificar se ele pertence ao mesmo grupo.
Agora, os especialistas esperam que uma população de tamanduás-bandeira possa se restabelecer naturalmente no Parque Estadual do Espinilho, sem necessidade de intervenção humana.
Ter o tamanduá lá, voltando ao Rio Grande do Sul, mostra o sucesso do trabalho feito na Argentina e o quanto é viável, o quanto é possível, e o quanto é importante fazer trabalhos de refaunação,” disse Mazim.
“Ele também é um indicativo de que a gestão e o manejo das unidades de conservação e das áreas agrícolas dos ecossistemas estão dando certo”, acrescentou. “Porque se os animais estão vindo de uma região e se instalando em outra, é porque existe uma capacidade de suporte para eles, ainda mais um mamífero de grande porte. Então ele está indicando a saúde do ambiente.”
Protegendo as populações
A reintrodução é uma forma eficaz de aumentar as reduzidas populações de tamanduás-bandeira. A partir disso, a educação e o trabalho com as comunidades locais podem ajudar a manter esses números. É exatamente isso que está fazendo o Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas), que opera no Pantanal brasileiro.
A cerca de 1.400 quilômetros do Parque Estadual do Espinilho, conservacionistas do Mato Grosso do Sul estão trabalhando para proteger as populações atuais de tamanduá-bandeira no Pantanal e no Cerrado, estudando e melhorando a coexistência entre humanos e animais silvestres.
O Pantanal é vulnerável às mudanças climáticas, que podem provocar incêndios florestais prolongados na região. No Cerrado, metade do hábitat foi substituído por pastagens para gado e plantações de soja, além de ter sido fragmentado por uma rede de estradas que aumenta a mortalidade de grandes mamíferos como resultado de atropelamentos. A visão e a audição dos tamanduás-bandeira são deficientes, e eles têm dificuldades de escapar de veículos em alta velocidade.
Quando os atropelamentos se somam a outros problemas, como perda de hábitat, incêndios e conflitos com cães domésticos, eles se tornam um fator agravante”, disse Arnaud Desbiez, fundador do Icas, à Mongabay.
De acordo com dados coletados nas estradas do Mato Grosso do Sul, Desbiez e um colega pesquisador estimaram que aproximadamente 40 tamanduás-bandeira morrem atropelados por ano, a cada 100 quilômetros de estradas pavimentadas. As pessoas também sofrem os impactos: uma pesquisa da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira constatou que, entre meados de dezembro de 2023 e meados de janeiro de 2024, cinco pessoas morreram no Mato Grosso do Sul devido a colisões de veículos com antas, os maiores mamíferos da América do Sul.
“Essas estradas estão causando extinções locais”, disse Desbiez. “Nossos modelos mostram que elas reduzem as taxas de crescimento populacional [do tamanduá-bandeira] em mais de 50%.”
Pesquisas constataram que os motoristas de caminhão não atropelam intencionalmente, mas têm pouco tempo para frear, o que torna ineficazes os limites de velocidade e as placas avisando da presença de animais. Segundo Desbiez, “a técnica mais eficiente é tirar os animais das estradas” construindo cercas em trechos críticos para acidentes com animais silvestres.
Embora esteja havendo alguns avanços ao se incluírem barreiras de prevenção de colisões em estradas novas, a falta de vontade política e de financiamento torna o processo lento, dizem os especialistas.
Conversas com a comunidade local e iniciativas educacionais também são fundamentais para construir uma melhor convivência entre as pessoas e os tamanduás-bandeira. Em 2023, um estudo revelou como um conjunto de superstições existentes nas áreas rurais do Pantanal, relacionadas aos tamanduás-bandeira, contribuiu para os sentimentos negativos em relação a esse animal.
Das 259 pessoas entrevistadas pelos pesquisadores, quase 40% consideravam o tamanduá como um símbolo de azar e esperavam que algo negativo acontecesse depois de ver um deles, como não conseguir caçar e pescar ou ficar doente e ter problemas generalizados na vida. As repercussões desses sentimentos variavam desde evitar as pegadas até bater no animal, constatou a pesquisa, embora ninguém admita ter matado um deles. Depois de compreender essas crenças, os conservacionistas do Icas criaram materiais educativos para ajudar a dissipar mitos e construir melhores relações entre as pessoas e os tamanduás-bandeira.
“Quando falamos de ameaças, a percepção que as pessoas têm de uma espécie é absolutamente fundamental para a conservação”, disse Desbiez. “Elas estão menos interessadas em tentar proteger algo sobre o qual têm uma percepção negativa do que algo que veem de forma positiva.”
Esforços conjuntos para proteger as populações de tamanduás-bandeira são essenciais para que esse animal seja salvo, o que inclui a cooperação internacional, principalmente no Brasil e na Argentina, bem como no vizinho Uruguai, que fica perto do Parque Iberá e do Parque Estadual do Espinilho, e onde também pode haver tamanduás-bandeira que retornam da iniciativa de reintrodução de fauna de Iberá. “Não pode ser um projeto só de divisão nacional”, disse Mazim.
Mazim e sua equipe estão colaborando com o Instituto Tamanduá e a Rewilding Argentina para entender melhor a população do Rio Grande do Sul e ampliar as buscas por tamanduás no vizinho Uruguai, onde o tamanduá é considerado extinto.
“Não é um mundo fácil para os tamanduás-bandeira”, disse Desbiez. “São muitas as ameaças que esses animais têm de enfrentar.” Mas há uma ponta de esperança para a espécie com as recentes conquistas dos projetos de reintrodução, e os especialistas esperam que, com cooperação e educação, a população atual possa ser mantida e prosperar.