Por Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Reportagem também publicada pela Agência Mongabay.
No Brasil, os mais de 1,7 milhão de quilômetros de rodovias e estradas são palco de massacres diários pelas colisões envolvendo animais e causam problemas que não chegam ao conhecimento da maioria das pessoas. Segundo pesquisadores, a retirada da vegetação seguida do tráfego de veículos geram impactos negativos para a fauna silvestre que vão além dos atropelamentos.
“As fatalidades [atropelamentos] são o impacto mais percebido, pois todo o usuário se enxerga como um potencial envolvido em colisões ou presencia carne e sangue frescos espalhados pelo asfalto”, destaca o coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NERF-UFRGS), Andreas Kindel.
Ainda que avesso às tentativas de estimar quantos animais morrem nas estradas e rodovias do Brasil, por considerar tais números pouco confiáveis, o pesquisador admite que esses dados ajudam a dar relevância ao problema por ter um grande potencial de mobilização da opinião pública.
O Centro Brasileiro de Ecologia de Estradas (CBEE) da Universidade Federal de Lavras (UFLA) tem uma estimativa de 2013 que escancara o problema: 475 milhões de vertebrados silvestres morrem por atropelamento todos os anos nas estradas e rodovias do Brasil. “Acredito que esse número seja bem maior, pois em poucas estradas temos monitoramento ou alguma informação”, afirma a bióloga e pesquisadora Cecília Bueno, da Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil).
Para o estado de São Paulo, a bióloga, pesquisadora do Smithsonian Institution e diretora da ViaFAUNA (empresa que atua com impactos dos meios de transporte nos animais silvestres), Fernanda Abra, estimou que 39.605 mamíferos de médio e grande porte, como onças-pardas, capivaras, cachorros-do-mato e lobos-guará, morrem em colisões com veículos por ano. O dado consta em artigo publicado ano passado pela revista científica Heliyon.
No Mato Grosso do Sul, por exemplo, 12.400 carcaças de animais silvestres vítimas de atropelamentos nas estradas e rodovias do Estado foram encontradas pelos pesquisadores do projeto Bandeiras e Rodovias, do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas). O problema tem mobilizado ONGs e o poder público local na tentativa de reduzir esse impacto sobre a fauna, conforme relatou recente reportagem da Mongabay/Fauna News.
“No caso dos atropelamentos, esse é um impacto crônico que perdura enquanto a rodovia estiver em operação. Existe uma retirada alta e consistente de indivíduos da natureza e não há direcionamento para espécies específicas. Estão sujeitos todos os indivíduos da fauna que cruzam as rodovias”, explica Fernanda.
Para os morcegos, uma armadilha
Essa ausência de especificidade de animais atropelados fica clara quando se deixa de olhar somente para onças, tamanduás, antas e outros tantos animais comumente avistados mortos nas estradas e rodovias brasileiras. Foi o que fez o biólogo e pesquisador da Universidade de Brasília, Daniel de Figueiredo Ramalho, ao trabalhar com morcegos do Cerrado. O bioma é o habitat de 118 espécies desses vertebrados alados, o que representa aproximadamente 50% dos mamíferos que nele vivem.
Em artigo publicado em 2021, Daniel e outros pesquisadores estimaram que 4.470 morcegos morreram por atropelamento durante cinco anos em 114 km de nove estradas e rodovias que margeiam áreas protegidas no Distrito Federal. A projeção foi feita a partir do encontro de 87 morcegos de várias espécies mortos. O maior número de casos foi registrado na estação chuvosa (outubro a março) e nas rodovias de quatro pistas.
Em outra pesquisa, realizada em 2017 e 2018, Daniel levantou a hipótese de os morcegos estarem utilizando as rodovias do Cerrado como corredores para seu deslocamento, um comportamento motivado pela retirada da vegetação para a construção da via. Ele monitorou os animais em nove pontos de estradas e rodovias do Distrito Federal próximos ao Parque Nacional de Brasília, à Estação Ecológica do Jardim Botânico de Brasília e à Estação Ecológica de Águas Emendadas.
“Avaliei o número de feeding buzzes, chamados que indicam alimentação. Em áreas próximas às estradas, ocorreu maior atividade de morcegos, mas não maior alimentação. Por esse motivo, trabalhei com a possibilidade de as rodovias estarem sendo usadas como corredores”, explicou o pesquisador.
Apesar da hipótese, Daniel não desconsidera a possibilidade de morcegos serem atraídos para as estradas e as rodovias por uma maior oferta de alimentos. De acordo com o pesquisador, os recursos são escassos em habitat seco e aberto, como o Cerrado, “portanto as margens das estradas podem fornecer mais oportunidades de alimentação para morcegos insetívoros, especialmente para espécies adaptadas ao forrageamento em áreas abertas.”
Alteração de habitat
Andreas, do NERF-UFRGS, afirma que os processos de alteração da qualidade do habitat da fauna gerados pela abertura de estradas e rodovias têm forte efeito negativo sobre os animais. É o que está ocorrendo com os morcegos pesquisados por Daniel, que estão mudando comportamentos por causa da presença das vias e se expondo aos atropelamentos.
Além da retirada da cobertura vegetal original e da mudança do uso do solo nas áreas adjacentes, a abertura de novas vias gera poluições química, sonora e luminosa e a introdução de espécies invasoras, que fazem com que as populações nativas declinem ou abandonem áreas próximas de estradas e rodovias.
O biólogo Guilherme Sementili, que desde 2014 desenvolve pesquisas com bioacústica, trabalhou em seu doutorado com os impactos de ruídos sobre a corruíra (Troglodytes musculus), espécie de ave já bastante ambientada em regiões urbanizadas do Brasil. Ele analisou indivíduos machos que vivem em Bauru (SP), em área próxima do ponto onde cruzam as rodovias SP-225 e SP-300, vias por onde passam mais de quatro mil veículos por dia. “O ruído das rodovias é uma somatória de sons que inclui motores, atrito de pneus no solo, o deslocamento do ar e buzinas, por exemplo”, explicou.
Guilherme comparou as vocalizações de dois grupos de aves, um vivendo a pelo menos 500 metros das rodovias e outro a, no mínimo, 1.500 metros. “As corruíras mais próximas das rodovias têm maior amplitude sonora, ou seja, vocalizam mais forte por causa do nível de ruído maior. Isso leva a um maior gasto de energia”, explicou. As vocalizações da espécie são complexas e têm bastante importância para a reprodução, com funções na atração de parceiros, na competição entre machos e no estabelecimento e defesa de território.
De acordo com a doutora em Ecologia pela Universidade de Brasília, Renata Alquezar, é impossível reduzir o ruído emitido por todas as rodovias brasileiras, mas o poder público poderia investir em ações nas vias que cortam ou estão próximas de unidades de conservação de proteção integral, como Parques Nacionais, Estações Ecológicas e Reservas Biológicas.
Barreiras acústicas, a construção de rodovias em nível mais baixo que o terreno, mudanças nos desenhos das ranhuras dos pneus, alterações na composição do asfalto, controle na intensidade do tráfego e até o fechamento temporário das vias são alternativas que podem ser aplicadas para reduzir a emissão de ruídos e, consequentemente, impactar menos os animais.
Apesar de estudos sobre os impactos da poluição sonora na fauna já estarem ocorrendo, tanto Guilherme quanto Renata afirmam que os processos de licenciamento ambiental de rodovias no Brasil ainda não contemplam esse problema. “Nessa área, a preocupação ainda está restrita aos humanos”, destacou Guilherme.
Efeito barreira
Ao se deparar com uma estrada ou rodovia, um animal pode ignorar sua existência e atravessá-la; ficar receoso e ainda assim seguir para o outro lado ou retornar. “Essas estruturas atuam como filtros, tanto dentro de uma população, com alguns indivíduos passando e outros não, quanto na comparação entre espécies, já que algumas são quase indiferentes enquanto outras as evitam por completo. Nesse caso extremo, são uma barreira”, explica Andreas, do NERF-UFRGS.
Fernanda Abra está realizando uma pesquisa de pós-doutorado pelo Smithsonian Institution que pretende instalar 30 passagens superiores para fauna arborícola, atendendo principalmente macacos, na rodovia BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR), no interior da Terra Indígena Waimiri-Atroari. A ideia é testar dois tipos de estruturas para recomendar os melhores modelos ao governo brasileiro para os novos empreendimentos rodoviários da Amazônia, ajudando assim a reduzir o impacto da presença da estrada para esses animais.
O efeito barreira já foi detectado entre as queixadas (Tayassu pecari), uma espécie de porco-do-mato classificada como Vulnerável no Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção. De acordo com pesquisa da bióloga Júlia Emi de Faria Oshima, que monitorou 30 desses animais com colares de GPS de 2013 a 2016 no Pantanal e no Cerrado do Mato Grosso do Sul, a rodovia MS-080 funcionou como uma barreira, em que nenhum dos animais se arriscou a atravessá-la. Entretanto, houve registro de queixadas cruzando estradas de terra que continham fragmentos de vegetação nativa conservada em suas margens.
Consequências como o isolamento populacional e problemas ligados ao empobrecimento genético demoram a serem sentidos, segundo Júlia. Isso acabaria por atrasar a implementação de soluções que visem a reconexão do habitat, como as passagens de fauna. Em reportagem de outubro de 2020, a Mongabay/Fauna News relatou a construção dos primeiros viadutos vegetados brasileiros, como o da BR-101, junto à Reserva Biológica de Poço das Antas (RJ), onde vive o mico-leão-dourado.
Para Andreas, a melhor oportunidade para diminuir ou eliminar os impacto negativos sobre a fauna é no momento do planejamento de uma nova rodovia através da escolha da rota menos impactante. “E estamos engatinhando em adotar abordagens robustas para isso”, concluiu.