No fim de dezembro passado, um trecho de apenas cinco quilômetros da BR-101 através da Reserva Biológica (Rebio) de Sooretama, no Espírito Santo, ganhou sinalização e três radares buscando reduzir a velocidade de 80 km/h para 60 km/h. A ideia é conter os frequentes atropelamentos de fauna silvestre, quase sempre fatais, e os riscos às pessoas, que também podem ser feridas ou morrer durante colisões com animais ou tentando deles desviar.
“É a principal medida para proteger a fauna dentre as recomendadas por Ministério Público Federal e Ibama”, diz Áureo Banhos, doutor em Genética, Conservação e Biologia Evolutiva pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e professor na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Ele faz parte de um time de cientistas de instituições federais e estaduais que, desde 2010, monitora e sugere ações para frear prejuízos da via pavimentada à Rebio e sua “zona de amortecimento”, faixas que devem ajudar a conter impactos vindos de fora das unidades de conservação.
“Há muitos atropelamentos nas zonas de amortecimento de certas unidades de conservação”, lembra Helio Secco, um dos fundadores da Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil) e doutor em Ciências Ambientais e Conservação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A concessionária de quase 480 quilômetros da rodovia, a Eco101, afirma que outras dez placas no trecho dentro da Rebio informam sobre animais ameaçados de extinção que lá vivem, como onça-pintada, anta, mutum-preto, macaco-guigó e tatu-canastra.
“A região é de extrema importância para a fauna e vimos nesse trabalho uma maneira de reduzir, com objetivo sempre em mitigar completamente as ocorrências com animais silvestres”, afirma em nota da empresa sua analista de Sustentabilidade, Grazielli Pena.
Outras medidas para conter atropelamentos indicadas pelos órgãos públicos são passagens aéreas e subterrâneas e cercas para conduzir os animais até esses caminhos menos arriscados. “Tais medidas encontram-se sob análise dos órgãos ambientais”, diz a assessoria de imprensa da Eco101.
Mesmo com melhorias na sinalização e controles de velocidade, os motoristas devem redobrar o cuidado da tarde à noite, quando mais animais cruzam a rodovia, incluindo os de grande porte. Isso tudo é fundamental para proteger a vida selvagem, mas não só a Rebio.
Sooretama e outras reservas naturais, mantidas pelas empresas Suzano e Vale, somam cerca de 50 mil hectares contínuos de Mata Atlântica, cortados apenas pela BR-101. Tais áreas protegidas compõem igualmente o Mosaico da Foz do Rio Doce, mostra a plataforma Wikiparques.
Resgate histórico
A conservação das terras da atual Rebio é pesquisada e planejada desde os anos 1920. O governo estadual decretou sua proteção parcial em 1941. Dois anos depois, foi criada uma área federal vizinha. Os atuais limites da reserva foram definidos até 1982.
Ela foi cortada pela rodovia na década de 1970, depois de ações para conservar a região. Isso ocorreu durante a ditadura militar e atropelando a legislação florestal brasileira”, relata Áureo Banhos.
Na época, começou a matança de fauna silvestre. Essas quase seis décadas de atropelamentos levaram incontáveis vidas na “terra dos animais da floresta”, sooretama em língua Tupi.
As últimas estimativas de pesquisadores são de até 90 mortes diárias, ou quase 33 mil anuais. A contagem foi feita em 12 quilômetros da BR-101, incluindo o trecho cortando Sooretama, quando a velocidade permitida era de 80 km/h.
As vítimas desta “armadilha ecológica” incluem antas, onças-pintadas e pardas, harpias, preguiças, bugios e outros macacos. Todas são espécies ameaçadas de extinção.
Estamos perdendo esses bichos todos para a rodovia, mas os pequenos vertebrados são os mais afetados, como cobras, lagartos e sapos”, ressalta Áureo.
Ruído e poluição veiculares também prejudicam as áreas protegidas e seus moradores.
A região de Sooretama é a mais rica em morcegos da Mata Atlântica, mas das 70 espécies conhecidas, 50 são atropeladas. Como esses mamíferos devoram muitos insetos e polinizam plantas silvestres e comerciais, as perdas podem bagunçar a ecologia e economias do norte capixaba, grande produtor de mamão e café.
“A estrada escoa a produção e traz insumos, mas não precisaria ser uma via de alto fluxo, que ameaça a conservação da biodiversidade e de serviços ecossistêmicos regionais”, explica o doutor em Genética, Conservação e Biologia Evolutiva pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
A BR-101 é a principal ligação entre o Nordeste e o centro-sul do país, conforme o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Ela conecta o Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul percorrendo o litoral brasileiro.
Rotas cruzadas
Ao longo das décadas, foi proposto até o desvio da BR-101 para fora da Rebio Sooretama e de outros maciços conservados regionais, mas isso sempre foi engavetado por “questões econômicas”, por ser mais barato manter a rodovia onde está.
Planos de duplicação vieram junto com a concessão da rodovia ao setor privado, em 2013, e faziam vista grossa à Sooretama e outras áreas protegidas. “Órgãos ambientais rejeitaram a proposta para duplicar cerca de 100 quilômetros em trechos sensíveis no norte do Espírito Santo”, lembra Áureo.
Contudo, a obra não foi esquecida e segue nos escaninhos das autarquias ambientais, em Brasília (DF). Isso multiplicaria o fluxo de carros e caminhões e os riscos de morte para animais e pessoas.
Pressões similares ocorrem no Brasil todo, com rodovias e estradas cortando parques e outras unidades de conservação, de federais a municipais. Em 2018, essas interferências somavam quase 124 mil km, similares a três vezes a circunferência da Terra. A estimativa vem da dissertação de mestrado de Bianca Cruz Morais, aprovada em 2018 na Universidade Federal de Lavras (UFLA). Os efeitos mais críticos são “a redução da abundância de animais e o tráfico de fauna”, diz o trabalho. Não conseguimos contato com a autora.
Pesando o cenário nacional, Áureo avalia que a construção e a operação de rodovias deveriam ser repensadas para que deixem de ser grandes fontes de perda de biodiversidade e de fragmentação de paisagens naturais.
A velocidade deveria ser reduzida para 50 km/h em todas as áreas protegidas no Brasil, dando tempo para animais e motoristas desviarem”, recomenda. “É a medida mais simples e barata para proteger a biodiversidade”, ressalta.
Há exemplos de onde menor velocidade encolheu os números de animais atropelados, como no interior ou no entorno dos parques nacionais do Iguaçu (PR), da Chapada dos Veadeiros (GO) e Nacional de Brasília (DF).
Medidas como essa podem ser até educativas. “Rodando mais devagar, os motoristas verão os animais vivos, entenderão que é mais seguro para todos e que estão passando por uma unidade de conservação”, avalia Áureo.
Helio Secco (REET Brasil) lembra que isso poderia ganhar escala nacional com uma forcinha do Congresso, que ainda não aprovou o Projeto de Lei nº 466/2015, dos deputados Ricardo Izar (PSD/SP) e Célio Studart (PV/CE).
“O texto prevê medidas para conter atropelamentos de fauna silvestres especialmente em unidades de conservação. Ele poderia tornar nossas rodovias menos prejudiciais à biodiversidade”, ressalta.
À reportagem, a assessoria de imprensa da Eco 101 afirmou que seu Programa de Proteção à Fauna reduziu em 4,84% os atropelamentos em trechos concessionados, na comparação entre 2023 e 2024, e que tem equipes para resgatar a fauna. Informações sobre animais feridos ou mortos devem ser comunicadas pelo 0800 77 01 101.