Por Aldem Bourscheit
Mongabay
contato@faunanews.com.br
A última população conhecida do cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) no Rio Grande do Sul está isolada em reservas ambientais na Região Metropolitana da capital Porto Alegre, onde vivem 4,4 milhões de pessoas. Governo, cientistas e ONGs agem para salvá-la, inclusive recuperando e conectando áreas protegidas pressionadas por caçadores, cachorros e agrotóxicos.
Estendendo-se pelos municípios de Glorinha, Gravataí, Viamão e Santo Antônio da Patrulha, a Área de Proteção Ambiental (APA) do Banhado Grande e o Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos são a tábua de salvação dos últimos 30 cervos pantaneiros no estado mais meridional do país.
A área total protegida tem quase 140 mil hectares, similares à extensão da cidade de São Paulo, mas os animais se concentram nos 2,5 mil hectares do refúgio, onde a presença humana é mais restrita do que na APA. O grupo acabou isolado com a destruição de áreas úmidas pelo agronegócio, urbanização e obras de infraestrutura. Outras pressões assombram seu futuro.
“Cachorros atacam adultos e filhotes de cervos. As reservas sofrem com a caça de capivaras, jacarés e marrecos, drenagem para agricultura e agrotóxicos”, diz Alexandre Krob, coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca. A ONG lidera o Programa de Conservação do cervo-do-pantanal no Rio Grande do Sul (Procervo).
Segundo ele, os cervos tentam driblar as ameaças circulando mais sob as árvores, nos fins de tarde e à noite. Em áreas mais preservadas, como o Pantanal, a espécie é facilmente vista à luz do dia. “Também há uma aparente redução de sua estatura em relação a outras populações, mas isso ainda precisa ser comprovado”, destaca Krob.
O cervo-do-pantanal é o maior cervídeo da América Latina. Os machos da espécie podem alcançar 140 quilos e 1,90 de comprimento; ao contrário das fêmeas, eles têm pescoços mais robustos e chifres.
Diretor de Conservação da Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul (Sema), Diego Pereira conta que mais de 200 cachorros em loteamentos e fazendas ao redor das reservas foram cadastrados e castrados desde 2018. “Sobretudo animais que estejam passando fome invadem as reservas e atacam variadas espécies”, conta.
Assentamentos na região dos banhados têm produção agroecológica, enquanto outros imóveis pulverizam arrozais com agrotóxicos. Segundo Pereira, contudo, a deriva dos venenos não seria uma ameaça maior aos cervos e às áreas protegidas. “Seu uso foi limitado na região e aplicações devem ser informadas previamente às chefias das reservas”, afirma.
“Mas os venenos podem afetar filhotes de cervos e outras espécies mais sensíveis”, lembra Krob, do Curicaca. Os agrotóxicos também dessecam (queimam) a vegetação natural das áreas preservadas e contaminam a água dos banhados e rios que abastece a vida selvagem e populações humanas nas cidades e no campo.
Ao contrário de formações usualmente contínuas como florestas, campos e savanas, as várzeas, pântanos e matas paludosas (encharcadas) preferidas pelos cervos são naturalmente isoladas nos grandes cenários naturais. Assim, perpetuar a espécie depende da recuperação e da conexão dessas áreas úmidas.
Esforço para salvar a espécie
Para tanto, entidades públicas, privadas e civis do Procervo desenharam um corredor interligando as áreas mais favoráveis à espécie através das duas reservas ecológicas. A medida é associada à restauração de áreas degradadas no passado pela produção rural.
“O Refúgio de Vida Silvestre não pode ser uma ilha. A implantação do corredor será apoiada por uma portaria. Quando efetivado, ele proporcionará um território mais amplo para a circulação e conservação da espécie”, destaca Pereira, da Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul. “Perder um indivíduo apenas já é um grande prejuízo pelo tamanho e isolamento da população”, completa.
Além de proteger o cervo e espécies como as aves veste-amarela (Xanthopsar flavus) e noivinha-de-rabo-preto (Heteroxolmis dominicanus), a saúde das unidades de conservação melhora a água do Rio Gravataí. O manancial é um dos mais poluídos do Brasil conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobretudo pelo despejo de esgotos domésticos em seu trecho final, próximo à capital gaúcha.
Fora de seu grande abrigo sul-americano, o Pantanal, a situação dos cervos é alarmante. Pequenos grupos isolados e fragmentados ainda vivem na borda da Amazônia, no leste dos Andes e em banhados na Argentina, como os Esteros del Iberá. E ainda em áreas de São Paulo, Paraná, Goiás, Minas Gerais e Bahia.
As populações brasileiras podem sumir do mapa “em curto espaço de tempo”, reconhece o Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Cervídeos Ameaçados de Extinção, do ICMBio. A espécie já foi eliminada do Uruguai, Paraguai, Peru, sul dos estados do Piauí e do Maranhão, porções da Caatinga e outras antigas moradas.
“Sua área de ocorrência atual é de apenas 10% da original”, estima Alexandre Krob, do Instituto Curicaca. As populações do cervo na América do Sul estão vulneráveis e em declínio, alerta a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). A espécie é criticamente ameaçada de extinção em alguns estados brasileiros.
Perda de habitat
Segundo levantamento inédito realizado este ano, no qual pesquisadores mapearam as alterações de habitat de 145 espécies de mamíferos no mundo, o cervo-do-pantanal teria sido o que mais perdeu território na América do Sul – uma redução de 76%.
No continente sul-americano, o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) e a onça-pintada (Panthera onca) estão entre as espécies que mais tiveram sua distribuição reduzida — com 76% e 40% de perda de seu território, respectivamente.
Grupos de cervos também podem sumir junto com as várzeas que restam na Bacia do Rio Paraná, em parte de estados do Sudeste e do Centro-oeste. A Embrapa Pantanal estima que metade deles já foi eliminada do território. Os grandes vilões são o desmatamento e, novamente, a drenagem de várzeas e outras áreas úmidas pelo agronegócio.
No Brasil, a vegetação natural da Bacia do Paraná encolheu de 225 mil km2 para 182 mil km2 desde 1985, estima o projeto MapBiomas. Os 44 mil km2 perdidos equivalem às áreas do estado do Rio de Janeiro ou da Dinamarca. E a devastação avança nos países que dividem a bacia com o Brasil, a Argentina e o Paraguai, somando ao todo 150 mil km2 destruídos, revela uma reportagem do El País.