Por Daniel Nunes Gonçalves
Mongabay
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Observar o maior felino das Américas solto na natureza sempre foi uma experiência rara – e, por isso mesmo, marcante. No Pantanal brasileiro, maior planície continental inundável e um dos principais refúgios da onça-pintada no planeta, esse encontro tem se tornado cada vez mais frequente. No município de Miranda, no Mato Grosso do Sul, 95% dos hóspedes de uma fazenda aberta a turistas, a Caiman, passaram a observar ao menos uma onça a cada visita.
Em um entardecer avermelhado de agosto de 2021, tenho a oportunidade de ver minhas primeiras onças livres e de entender que esta não é apenas uma linda vivência de ecoturismo. A mãe-onça que avisto, do alto de um veículo 4×4 adaptado para safáris, devorando com seu filhote a carcaça recém abatida a 5 metros do carro, é especial. Fera, como foi apelidada a adulta, entrou para a história da Ciência por ter protagonizado, com a irmã Isa, o primeiro caso bem-sucedido no mundo de reintrodução na natureza de onças-pintadas vindas de cativeiro.
Primeiro safári brasileiro
Próxima de ser definida como ameaçada de extinção, a onça-pintada (Panthera onca) tem um aliado de peso na luta pela sobrevivência da espécie no Pantanal. Trata-se do projeto Onçafari, que em 2021 completa 10 anos de existência e já registrou o avistamento de mais de 200 indivíduos na fazenda Caiman. Isso se deve à união da experiência pioneira de observação de animais nos moldes dos safáris promovidos na África com um projeto conservacionista que desenvolve estudos científicos e reintroduz animais reabilitados de volta ao ambiente selvagem.
Desde que o ex-piloto de testes da Fórmula 1 e conservacionista Mario Haberfeld se uniu ao proprietário da fazenda, o empresário e ambientalista Roberto Klabin, para implementar na Caiman um projeto de habituação das onças locais aos veículos de safári, o território se tornou o melhor do Brasil para observar o felino. Em uma década, a ocupação de hóspedes triplicou. Nessa dinâmica, ganham os turistas, que passaram a ver com frequência a estrela dos Big 5 da região (lista à qual se somam a anta, o tamanduá-bandeira, o jacaré-do-Pantanal e o cervo-do-Pantanal), e ganham também as onças, que estão mais protegidas e com cada vez mais defensores da espécie.
Onça viva agora vale mais
Em um passado não tão distante, para a população local, onça boa era onça morta. Situado no topo da cadeia alimentar da região, a espécie representava um inimigo a ser abatido pelos pantaneiros quando se aproximava das fazendas em busca de sua presa mais fácil: o gado. Matar onça era parte da cultura nessa terra com 95% de seus 220 mil quilômetros quadrados ocupados por propriedades particulares e cerca de 3,8 milhões de cabeças de gado apenas do lado brasileiro do Pantanal.
“O desenvolvimento do turismo para ver onças tem mudado essa cultura”, explica Mario Haberfeld, que experimentou os melhores safáris do planeta para implementar o Onçafari na Caiman em 2011. “Com mais fazendas se dedicando ao ecoturismo, o pantaneiro passou a ter consciência de que a onça viva traz dinheiro e gera empregos”, diz. Um exemplo dessa transformação de consciências é outro Mario, Mario Nelson Cleto, meu guia de campo no safári, que vem de uma família de caçadores de onças. “Meu avô disse ter vergonha de mim quando aceitei este trabalho, mas hoje minha família entende por que protejo as onças”, diz Nelson.
Centro de reintrodução pioneiro
A sobrevivência da onça que avisto, a Fera, e de sua irmã Isa, é fruto dessa nova consciência de parte dos pantaneiros. Em junho de 2014, as duas irmãs eram filhotes quando foram vistas no alto de uma árvore com a mãe, à beira do rio Paraguai, no município de Corumbá (MS). Em vez de matá-las, os moradores do povoado, assustados, chamaram as autoridades para retirá-las de lá. Por um incidente no processo de sedação, a mãe acabou morrendo. As filhas órfãs foram removidas primeiramente para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) de Campo Grande (MS). Em julho de 2015, elas mudariam de vida ao irem para a Caiman.
Na fazenda, Isa e Fera estrearam o primeiro centro de reintrodução de grandes felinos do Brasil, um recinto de 10 mil metros quadrados, tamanho de um campo de futebol. Na ausência da mãe e sob os cuidados do Onçafari e de parceiros como o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap/ICMBio), as órfãs foram “treinadas”, sem contato com o ser humano, para aprender a caçar e abater animais vivos para comer. Onze meses depois, em junho de 2016, ao completarem pouco mais de dois anos de vida, receberam colares de monitoramento e ganharam liberdade para viver como selvagens.
O desafio da habituação
Conhecer a trajetória da onça Fera deixa mais emocionante meu safári em parte dos 53 mil hectares da Caiman. A observação acontece em silêncio, sem movimentos bruscos dos passageiros, para não assustar os animais. “O trabalho de habituação consiste em fazer a onça se acostumar com o veículo, mas não com o ser humano”, explica o biólogo Fábio Paschoal, guia da Caiman. Ele conta que o longo processo de acostumar as onças aos carros não pode ser confundido com domesticação dos animais, uma vez que os felinos precisam saber se proteger quando o homem representar uma ameaça. “Buscamos que a atitude dela seja de neutralidade quando o carro se aproxima.”
Um dos pontos altos desse ecoturismo praticado ao lado de cientistas é acompanhar as histórias e o trabalho dos guias. Mario Nélson, o filho e neto de caçadores, conta cheio de orgulho sobre o treinamento que recebeu no safári em Sabi Sands, na África do Sul. “Eles são referência em habituação de felinos e inspiração para o Onçafari”, diz. Em um dado momento, Mario avista os ossos de um garrote devorado pelas onças e salta do veículo para recolher o brinco que identifica o bovino. Anotado nas planilhas que identificam a dieta dos felinos, esse controle de predações ajuda a entender quanto de animais domésticos as onças caçam na propriedade – em uma dieta que inclui jacarés, queixadas e capivaras, entre outras presas.
Pecuária, ecoturismo e conservação
“A pecuária é o grande sustentáculo da economia do Pantanal e o ecoturismo tem que conviver em harmonia com ela”, defende Roberto Klabin, ambientalista e proprietário da Caiman, que contabiliza as perdas financeiras pelas vacas abatidas por onças no contrato com os arrendatários do seu gado. Descendente de uma abastada família ligada à indústria de celulose, foi ele quem decidiu, há 35 anos, transformar a fazenda dos Klabin em uma hospedaria. Incorporar a base do Onçafari, em parceria com o ex-piloto Mario Haberfeld, elevou sua propriedade a outro patamar no casamento de ecoturismo e conservação de espécies. O negócio tem dado tão certo que Klabin investiu 14 milhões de reais, em 2021, para reformar a fazenda e ampliar sua capacidade para 18 apartamentos.
Para os hóspedes, ainda que a fazenda tenha virado um hotel luxuoso e que existam ali mais projetos ecológicos interessantes, como o que protege a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus), o ponto alto dos safáris que acontecem de quinta a domingo no amanhecer e no entardecer é ver a onça-pintada. O encantamento vem da beleza e da imponência desse animal tão arisco e, em função dos estudos do Onçafari, das histórias que os guias trazem ao reconhecer cada bicho. Quando o animal encontrado é Isa e Fera, como no meu safári, a experiência ganha ainda um tempero da esperança.
As órfãs viraram avós
É que a reintrodução das irmãs órfãs à natureza selvagem do Pantanal mostrou-se um sucesso não apenas por elas comprovarem que aprenderam a se virar sozinhas, mesmo diante de ameaças como as queimadas frequentes. Graças à tecnologia da telemetria para seguir os sinais dos colares GPS colocados antes de serem soltas e da observação de imagens flagradas por câmeras espalhadas pela região, os especialistas confirmaram que elas aprenderam, sim, a caçar. E, o melhor de tudo, elas se reproduziram – como pude presenciar ao avistar a mãe Fera com a filha Turi. Em 2018, ambas tiveram os primeiros filhotes de onças livres vindas de cativeiro do mundo.
O ciclo ecológico virtuoso estava só começando. Durante a pandemia, entre 2020 e 2021, Isa e Fera viraram avós. “Está aí a comprovação do sucesso do nosso trabalho”, orgulha-se o biólogo Leonardo Sartorello, coordenador de reintrodução do Onçafari. “Para a Ciência, o resultado da devolução de uma espécie de cativeiro à natureza fica comprovado quando o animal tem uma segunda geração de descendentes”, explica. O episódio que poderia ter terminado com duas onças presas em cativeiro aumentou a população selvagem em ao menos nove onças livres, se computados os primeiros cinco filhotes e quatro netos de Isa e Fera.
Com o sucesso do aumento da população de onças-pintadas, o Onçafari expandiu sua atuação para outras partes do Brasil e passou a replicar a experiência de reintrodução também com lobos-guará no Cerrado. No Pantanal, iniciou os complexos processos de habituação das antas aos safáris e de reintrodução de onças-pardas. E adquiriu, com investidores, a Fazenda Santa Sofia, adjacente à Caiman, para criar outro centro de reintrodução de espécies – inclusive de aves – e ampliar o corredor ecológico pantaneiro para que as onças-pintadas sigam se multiplicando.