Proibição do comércio internacional: uma das saídas pelo fim da escravização de animais silvestres

O tema que abordarei é muito complexo, por isso este artigo deve ser um pouco mais longo que o normal. Sugiro, assim, que dividam sua leitura em duas ou três partes.

A escravização de animais silvestres continua a ser um grande desafio para as autoridades e governos de vários países pelo mundo, para não dizer todos. A empatia é a capacidade de se identificar no lugar de outra pessoa ou outro ser.

Imagine que você é um tucano-de-papo-branco (Ramphastos tucanus), vivendo livre na floresta, voando grandes distâncias entre lindas árvores, convivendo com outros de sua espécie, comendo frutas frescas e pequenos animais. Isto é, você é um animal feliz, que está tendo seu direto de viver livre respeitado.

Agora, imagine que outro ser vivo, de uma espécie diferente da sua, no caso o ser humano, o capture em seu hábitat, retirando seu direito de ser livre e o privando de tudo o que você fazia na natureza. Além disso, o confinam em um local com um poleiro, como o da foto abaixo:

Depois de ficar dias, meses ou até anos nessa gaiola de arame, você é transportado para um ambiente ainda menor, escuro, empilhado com outros de sua espécie e enviado para outro continente. Lá apenas o “Ser de Energia Maior” sabe qual destino que você terá nas mãos de quem o adquiriu.

A situação descrita acima é uma descrição do que é a exportação/ importação de animais silvestres com fins comerciais, em que o animal, seus direitos e suas liberdades são os fatores que menos importam para pessoais cruéis chamadas de “comerciantes”.

Esse esquema de crueldade e tráfico, disfarçado de comércio contra animais silvestres, não funciona sem a participação oficial dos “biólogos e veterinários de ferramentas”, pois documentos e autorizações passam por eles. Atentem-se, pois, aqui estou falando de um “comércio” de importação/exportação que supostamente é realizado de maneira legal e permitida, em que leis de países permitem que animais sejam covardemente retirados de sua própria natureza e o próprio governo emite a autorização de saída ou entrada desses animais.

Como a legislação funciona no Brasil

No Brasil é proibida a retirada de qualquer animal da natureza para fins comerciais. É crime. Considero esse um ponto bastante positivo de nosso país, pois demonstra que queremos conservar nossa natureza e não queremos desrespeitar nossos animais – apesar do crescente lobby dos “ferramenteiros” de animais silvestres para tentar mudar esse panorama.

Tempos atrás, um “ferramenteiro” desses aí, insatisfeito com minhas posições e opiniões pessoais colocadas nos artigos que escrevo, que estão baseadas no conhecimento prático e teórico que adquiri pela experiência de 17 anos dentro da Polícia Federal combatendo a crueldade e o tráfico de fauna, veio querer contestar uma fala minha de que aves em gaiola representam uma visão atrasada e que o confinamento desses animais é maus-tratos.

Então, o desafiei a ficar um mês em um elevador fazendo suas necessidades ali e comendo a mesma comida todo dia. Até hoje ele não aceitou passar por essa experiência. Tem algum criador de animal silvestre, passarinheiro ou “ferramenteiro”, aí disposto a fazer essa experiência? As portas estão abertas… Venham sentir na própria pele o que vocês acham normal.

Importação e exportação de animais silvestres: onde está o problema

Voltando a falar da importação e exportação, a situação exemplificada no início do artigo seria um caso autorizado legalmente. Mas o que acontece na prática é que a maioria absoluta dessas transações de animais silvestres entre países possui alguma ilegalidade, seja no país de origem, seja no país de destino.

As ilegalidades vão desde a origem real dos animais, passando por documentos manipulados (ou na origem ou no destino), com omissão ou falsidade de informações, corrupção de servidores aduaneiros, tudo contando com a participação de atravessadores extremamente experientes. Com grande conhecimento técnico da logística, essas pessoas exploram brechas ou falhas de fiscalização para envio/recebimento de animais, exploram a falta de preparo das autoridades para lidar com esse tipo de carga, tornando a fiscalização ineficiente e frágil, favorecendo o trânsito desses animais através dos terminais de cargas.

Passemos, agora, a uma situação real, em que os registros aqui colocados estão disponíveis na internet: reportagens aos montes, redes sociais e situações de conhecimento público notório.

Neste último fim de semana, saíram diversas reportagens sobre o casamento de Anant Ambani, filho mais novo do homem mais rico da Ásia, Mukesh Ambani, dono de um conglomerado de empresas do setor de energia chamado Relience Industries.

No texto veiculado na coluna “Glamour”, de O Globo, em 05 de julho, Ambani é colocado como a décima pessoa mais rica do mundo e teria uma fortuna estimada em US$ 116 bilhões. Seu casamento, na Índia, deverá ter a participação do cantor Justin Bieber, contratado para se apresentar a um preço de R$ 56 milhões.

O que mais chamou mais atenção sobre a cobertura do casamento foi este trecho de uma  reportagem: “Anant se preocupa com o bem-estar animal desde a infância. Recentemente, ele lançou seu projeto de paixão, o Vantara, um abrigo de animais de três mil acres (1.200 hectares), que foi visitado por convidados VIP vestidos com trajes temáticos para a selva durante a festa de pré-casamento em Jamnagar”.

Anant Ambani também está construindo aquele que será o maior zoológico do mundo, chamado Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom (GZRRC), localizado ao lado do Vantara.

Analisando todo o contexto, tenho convicção que os empreendimentos de Ambani não são “abrigos de animais”, mas sim locais onde o bilionário mantém sua coleção particular de fauna silvestre para satisfazer, por trás de seu gigante poder econômico e seu ego extravagante. Ele irá expor os animais que vêm adquirindo desde o final da década passada e poderá dizer que é o maior colecionador de animais do mundo.

Como cheguei a essa conclusão?

Os leitores aqui já devem saber sobre o caso das 26 ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii) que foram mandadas de um criador alemão para o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom, do senhor Ambani, pela Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP), da Alemanha, e também, a Pairi Daiza Foundation, na Bélgica.

Essa espécie é endêmica do Brasil e estava extinta na natureza por ser uma ave extremamente cobiçada por colecionadores/receptadores europeus. Esses, por sua vez, vendo o desaparecimento do animal no meio natural, se mobilizaram para reunir todas as aves ilegais traficadas e que estavam fora do Brasil com o objetivo de juntá-las em um projeto e reproduzi-las, para, a princípio, devolvê-las livres na natureza brasileira. Louvável, admirável e que bela atitude. Mas não é bem assim…

Millôr Fernandes disse: “desconfio de todo o idealista que lucra com seu ideal”. Martin Guth, que seria o principal responsável pela ACTP, em parceria com o governo brasileiro e seus órgãos ambientais, repatriou para o Brasil 52 ararinhas-azuis para que fossem reintroduzidas na natureza. Em 2022, alguns indivíduos foram soltos.

Não podemos fechar os olhos para essa grande atitude, é verdade. Mas também não podemos fechar os olhos para quem manda/comercializa 26 ararinhas-azuis para um zoológico na Índia, sem o conhecimento do Brasil – que é e vai continuar sendo o dono de todos esses animais. Os órgãos responsáveis brasileiros não foram consultados ou informados e, pelo que sei, ninguém sabe exatamente onde estão essas aves na Índia, em quais condições e quem está cuidando delas.

Martin Guth dá apenas explicações genéricas. Onde estão os registros da alocação dessas aves? Onde estão os comprovantes financeiros das transações? Por que o Brasil não foi consultado previamente? Cadê o programa de conservação da Índia para essa espécie? Por que autoridades da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção (Cites) na Alemanha não detalham as tratativas? Será que essa exportação/importação está realmente dentro da legalidade?

Essas pessoas, de uma forma ou de outra, vão precisar entender uma coisa: todos esses animais silvestres brasileiros traficados para o exterior nunca vão perder seu caráter ilegal e todos eles, comercializados legalmente ou traficados, sempre serão patrimônio do Brasil. E podem ter certeza que as autoridades brasileiras de todas as esferas e instâncias vão defender os animais brasileiros em qualquer lugar, mesmo que isso leve tempo. Podem ter certeza que os bons brasileiros e os bons cidadãos do mundo querem seus animais na terra onde pertencem.

A extravagância econômica que fomenta a crueldade contra os animais sempre será combatida, apesar de muita gente falar que aqui no Brasil é bagunça; que aqui pode tudo. Mas isso não é verdade. Existem muitas falhas, é verdade, mas aqui também temos consciência de quem somos e de nossas capacidades, e queremos respeito, gostem vocês, traficantes de animais, ou não.

A importação e a exportação de fauna em outros países

Consultando uma fonte que tem bastante conhecimento das leis e permissões de entrada e saída de animais silvestres de muitos países, me foi dito é que na Índia é proibida a compra ou venda de animais silvestres, sendo proibido qualquer tipo de transação comercial neste sentido.

Segundo essa fonte, só existiria uma forma da entrada das ararinhas no país: sob o argumento de resgate para “serem cuidados”. Esse é o argumento que estaria sendo falsamente utilizado pelos empreendimentos de Ambani para captar os diversos animais selvagens que vêm sendo colocados em sua coleção particular no Zoológico Vantara e no GZRRC.

Além disso, pairam suspeitas da real origem do dinheiro envolvido que financiou a ida das 26 ararinhas-azuis para a Índia.

Analisando os fatos expostos na internet

Visitei também o perfil do Vantara no Instagram para ver o conteúdo publicado e quais animais são mostrados para tentar entender todo o contexto – e não apenas o caso das ararinhas-azuis e o sr. Martin Guth.

Fiz algumas capturas de tela que achei interessantes e gostaria de saber mais da origem dos animais lá colocados.

Se este primata está lá, temos que fazer alguns questionamentos. Como esse animal, que ocorre majoritariamente no território brasileiro, foi parar no Vantara, na Índia? Será que o Vantara está com o espécime para “cuidados”? De onde ele foi resgatado? Ele foi doado por quem aqui na América do Sul? Esse animal nasceu em qual criadouro na América do Sul? Ou foi retirado da natureza?

O Vantara vai saber dizer quem, como e quando levou este primata para lá? Que país autorizou a saída do animal e quem lá da Índia permitiu sua entrada? Podem mostrar os documentos da origem e do transporte?

Esses questionamentos são bastante pertinentes, não acham? O amante dos animais desde a infância vai fazer questão de responder isso – pelo menos é o que eu espero. Vamos aos próximos…

À direita, um saimiri ou macaco-de-cheiro, que vive em florestas tropicais das Américas do Sul e Central. Nessa postagem, podemos perceber que existem outros indivíduos no local. Não vou repetir as mesmas perguntas. Qual o motivo desse macaco ter ido para a Índia receber “cuidados”? Será que houve alguma transação comercial envolvendo esse bicho?

À esquerda, um bugio-ruivo, aparentando ser bastante jovem. Animal do Brasil alocado no Vantara. No perfil, podemos ver outros registros que parecem ser do mesmo indivíduo.

Essa última imagem, como o próprio texto diz, é de uma anta-brasileira (Tapirus terrestris). Como e por que esse animal foi parar lá? Quem conseguiu levá-lo para lá? É um animal ameaçado de extinção, na categoria “vulnerável”. Não posso dar certeza absoluta, mas necessitaria de uma autorização Cites para ser exportada de qualquer país de sua ocorrência. Será que este documento existe?

Coloquei esses exemplos para seu conhecimento. Você, leitor, pode acessar o perfil do Vantara e conferir o cardápio de animais lá existentes. Há diversos outros aqui da América do Sul, além de grandes felinos africanos, fauna da Ásia… Será que todos esses animais têm origem legal ou o poder econômico e o desejo egocêntrico de ter uma coleção de animais silvestres está prevalecendo?

Há outras postagens também contra a crueldade envolvendo fauna, como fotos de leões em jaulas com crítica às situações dos animais – o que realmente é válido. Mas isso não deve esconder o todo. São centenas de animais que estão sendo comprados de todos os cantos do mundo e enviados para lá.

Existe a influência e a participação de muitos atravessadores de vida selvagem. São pessoas que transitam por todo o mundo e se comunicam para conseguir comprar os animais e mandá-los para essa coleção.

Espécies exóticas alocadas em zoológicos

O Green Zoological (GZRRC) possui um setor chamado Exotic Island (“ilha exótica”, em tradução livre), além de uma lista de animais que serão “abrigados” nesse setor. A lista é extensa. Copio, na imagem a seguir, um trecho, para que você veja algumas das espécies que ali ficarão.

Na coluna à direita da lista está o número de animais de cada espécie. Se não errei a conta, serão 257 animais silvestres: seis capivaras, seis gorilas, 20 girafas, seis jaguarundis (felino também conhecido como gato-mourisco, nativo do sul da América do Norte, e de boa parte da América Central e América do Sul, passando por quase todo o Brasil até o norte da Argentina), onça-pintada, rinocerontes-brancos, orangotangos…

Realmente é espantosa a quantidade de espécimes. É espantoso que o sr. Ambani se preocupe tanto com o bem-estar dos animais e esteja fomentando o tráfico através da aquisição nebulosa desses bichos.

Não duvidem que devam aparecer micos-leões-dourados e araras-azuis-de-lear. Se isso acontecer, todos os animais certamente serão ilegais, com documentos falsos ou manipulados e sem o conhecimento das autoridades brasileiras.

Realmente, eu não posso dizer quais são as reais intenções do sr. Ambani, mas afirmo, por todas as características, que muitos animais de sua coleção são de origem ilegal. Além disso, é certo que a maioria absoluta desses espécimes não estava necessitando de “cuidados”, mas foram parte de uma negociação financeira comercial – o que seria ilegal na Índia.

Devemos permanecer em alerta

Me encaminho para o final, retornando ao assunto inicial do artigo. Trago tudo isso para dar ciência a todos do que está acontecendo com as importações/exportações de animais silvestres. Pessoalmente, defendo que devam ser proibidas, a não ser em casos realmente de conservação, para projetos sérios, com controle rígido dos animais e com o principal objetivo: repovoar hábitats e manter um número de segurança de animais ex-situ (em cativeiro).

No zoológico Vantara, informações dão conta de que existem um grande número de aves nativas do Brasil: tucanos-toco, araçaris, araras-azuis, araras-canindé, macaus, vermelhas… Mas ninguém sabe ao certo.

Os chineses detêm um controle rígido sobre a população de pandas. E esse animal não vi na lista ou não identifiquei.

Devemos continuar vigilantes quanto à origem dos animais e, cada vez mais, nos aprofundarmos nos conhecimentos das fraudes. Quando alguém fala que se preocupa com o bem-estar animal ou que é conservacionista, desconfie, pois esses são os argumentos usados pelos piores traficantes de animais. Conservacionismo se faz com ações, não apenas com palavras ou títulos acadêmicos.

Talvez um dia o bilionário sr. Ambani reveja suas posições. Talvez um dia, ele veja que ter gastado R$ 56 milhões com o Justin Bieber, para fazer um “esquenta” de uma ou duas horas de sua pomposa festa de casamento, foi mais que uma futilidade. Foi uma inutilidade, já que toda essa grana poderia ajudar – e muito! – na repatriação dos animais retirados da natureza que seu estabelecimento tem receptado de traficantes e caçadores cruéis.

Desejo felicidade aos noivos.

Um grande abraço a você e até a próxima.

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