Mauro Galetti: Antropoceno, crise da biodiversidade, Ciência e futuro

“O Antropoceno será a última era geológica que conheceremos se não restaurarmos a biodiversidade, reduzirmos as emissões de CO₂ e restabelecermos o balanço da natureza.”

Não se trata de uma especulação ou um presságio. É o futuro baseado em Ciência. Um futuro que pode ser diferente…

“O Antropoceno não precisa ser o fim do mundo, um apocalipse, mas um reencontro com as coisas que realmente importam para os seres humanos e para a vida na Terra.”

Essas duas considerações sobre o Antropoceno – “era geológica contemporânea, a partir da Revolução Industrial, na qual teria sido decisivo o impacto humano sobre o meio ambiente” (dicionário Houaiss)– são de autoria do cientista Mauro Galetti e estão em seu recente livro Um Naturalista no Antropoceno: um biólogo em busca do selvagem (versão digital gratuita). A primeira está no capítulo 1. A outra é o encerramento a obra, lá no capítulo 15.

A crise climática está sendo amplamente divulgada atualmente. Entretanto, a Terra vive outra crise de imensa importância: a da biodiversidade. Essa, ainda não tão popularizada. E Mauro Galetti conhece os riscos impostos ao planeta.

Natural de Campinas (SP), Mauro Galetti é biólogo e mestre em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em Biologia pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra. É professor titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp), diretor do Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças no Clima (CBioClima) da mesma instituição e autor de mais de 200 artigos científicos.

A bióloga Adriana Prestes, articulista da coluna Segunda Chance (sobre áreas de solturas) do Fauna News, conversou com o cientista sobre seu livro e questões como caça, javali, criação de animais silvestres como pets, comedouros para aves, o envolvimento da Ciência brasileira no combate às crises climática e da biodiversidade e o futuro da fauna paulista.

Adriana Prestes – Sobre Um naturalista no Antropoceno, a sua ideia era escrever um livro sobre o Antropoceno e sua biografia permitiu ilustrar as questões que envolvem o tema ou você começou a escrever sobre sua formação como cientista e o tema “Antropoceno” surgiu como uma possibilidade de ser um ponto em comum em todos os capítulos?
Mauro Galetti – Eu sempre estive interessado em estudar como os humanos afetam a biodiversidade e toda minha carreira foi permeada pelos impactos humanos. O Um naturalista no Antropoceno surgiu de uma vontade de ler boas histórias de biólogos brasileiros e como quase não existe esse tipo de livro, eu resolvi contar minha própria jornada. Para contar ela, eu necessariamente teria que explicar para o leitor o que é o Antropoceno.

Adriana Prestes – Com a obra pronta, lançada e repercutindo, qual a sua expectativa? O que você acha que ela pode deixar como lição para os leitores?
Mauro Galetti – Eu estou feliz que o livro está alcançando o Brasil todo, com mais de 2.500 leitores em três meses desde o lançamento. Fico feliz quando um guarda-parque no Piauí me escreve falando que o livro foi uma inspiração, ou quando um aluno de pós se sentiu motivado a continuar a escrever a tese, ou ainda quando um leitor não biólogo posta no Instagram que gostou do livro.

Existe uma enorme carência de livros de cientistas no Brasil, especialmente na área de Ecologia. A maioria dos livros de Ecologia são técnicos e cheia de jargões científicos. Tem muitos livros de Cosmologia e Neurociência, mas quase nada de Ecologia. Minha intenção em disponibilizar o e-book gratuito é criar leitores e estimular os cientistas a contarem suas histórias. O livro não é de autoajuda nem traz uma lição. Eu quero que o leitor reflita sobre a Era dos Humanos e como podemos sobreviver melhor neste planeta.

Adriana Prestes – “Para nosso engano e ingenuidade, descobrimos que a caça nunca acabou, mas estava, sim, escondida no armário da sociedade.” Este trecho está no capítulo “O vampiro e os três porquinhos”, em que você aborda o problema do javali no Brasil. Com controladores, que você afirma serem “caçadores disfarçados que estimulam o avanço do javali para que suas atividades possam ser legalizadas”, não resolveremos o problema dessa espécie. Qual o caminho devemos trilhar para solucionar essa questão?
Mauro Galetti – O controle do javali deve ser realizado pelo ICMBio, não pela população armada. Controladores hoje são caçadores disfarçados. Eles não querem e não vão resolver o problema do javali. O ICMBio deveria ter um grupo de controladores treinados a controlar o javali. O problema não vai ser solucionado. É impossível erradicar o javali em uma área tão grande como o Brasil, mas podemos controlá-lo.

Adriana Prestes – A questão dos javalis e dos javaporcos (animais híbridos de porcos domésticos e javalis), que é muito séria no estado de São Paulo, tem várias iniciativas públicas de órgãos paulistas como a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati) e a Fundação Florestal que, de forma séria e responsável,  atuam para a mitigação da presença desses animais. Eles causam prejuízos tanto em áreas rurais, impactando a produção agrícola, como em áreas de proteção ambiental, onde chegam a predar a fauna de espécies nativas.

Como você avalia esse problema em território paulista e quais são os caminhos para a solução no Estado?
Mauro Galetti – Os javalis representam hoje a maior biomassa de mamíferos nos fragmentos florestais em São Paulo. Minhas alunas Laís Rodrigues e Gabrielle Beca amostraram mais de 40 fragmentos e ficaram surpresas com as análises. Entre 50% a 80% da biomassa de mamíferos nos fragmentos florestais é de javalis. Se eles não forem controlados, irão levar várias espécies silvestres a extinção local e causarão um prejuízo econômico enorme. A dieta dos javalis em São Paulo é milho e cana, ou seja, ela tem uma fartura de alimento quase inesgotável. Existem diversas iniciativas de controle de javali, como o da Mão na Mata, em São Francisco Xavier, liderada pelo Dr. Felipe Pedrosa. Todos os órgãos ambientais e agronômicos devem criar métodos seguros para se controlar o javali, sem precisar dos tais “controladores” que falamos anteriormente.

Adriana Prestes – A caça tornou-se visível no Brasil por causa do javali. Mas como você alertou, sempre esteve presente. Como combater essa atividade que é pouco abordada pelo poder público?
Mauro Galetti – A caça é um problema crônico no país e somente o controle de armas pode atenuar a caça, mas existem muitas comunidades indígenas ou ribeirinhas que precisam da caça para se alimentarem. A fauna para essas populações é a única fonte de proteína, especialmente na estação chuvosa, quando é mais difícil de pegar peixes. Por isso, é fundamental separar o caçador “urbano”, que quer dar uns tiros e matar animais por prazer, e um caçador que precisa alimentar sua família.

Adriana Prestes – No capítulo “Bahamas: entre iguanas obesos e diabéticos”, você critica a construção de comedouros para aves. Essa prática tem se popularizado bastante e é muito incentivada por observadores de aves. Por que não devemos ter comedouros para animais silvestres?
Mauro Galetti – Nas cidades onde existe a baixa oferta de frutos, a alimentação artificial ajuda a manter as aves no ambiente. O problema é que elas podem deixar de fazer seus serviços ecológicos ou podem até mesmo parar de migrar. No Brasil, as aves que visitam comedouros não são migratórias, como no Hemisfério Norte, então não temos ainda nenhum estudo que avalie o impacto dos comedouros urbanos para as aves.

Nós vamos ter que decidir o que é melhor para as aves: alimentá-las ou deixar que a seleção natural controle suas populações. Talvez, se plantássemos mais áreas verdes, com vegetação com frutos que atraiam aves e beija-flores, não seria necessário alimentá-las em comedouros.

Adriana Prestes – Criar animais silvestres como bichos de estimação. Ainda que envolvendo espécimes nascidos em criadouros legalizados, qual a sua opinião? É um incentivo ao tráfico de animais?
Mauro Galetti – Animais silvestres devem estar na natureza e jamais devem ser pets. A cultura de se ter macacos, papagaios ou qualquer animal silvestre como pet deve ser proibida. Por outro lado, sabemos que algumas espécies que viraram pets, como chinchilas, estão bastante ameaçadas em seu estado natural.

Adriana Prestes – Citando um dos seus autores de referência, Paul Crutzen, em artigo publicado em 2000 sobre a definição de uma nova era geológica, definida a partir da ação humana no planeta:

“Without major catastrophes… mankind will remain a major geological force for many millennia, maybe millions of years to come. To develop a world-wide accepted strategy leading to sustainability of ecosystems against human induced stress will be one of the great future tasks of mankind…” (“Sem grandes catástrofes… a humanidade continuará a ser uma grande força geológica durante muitos milênios, talvez milhões de anos vindouros. Desenvolver uma estratégia mundialmente aceita que conduza à sustentabilidade dos ecossistemas contra o estresse induzido pelo homem será uma das grandes tarefas futuras da humanidade…” – tradução livre)

Como você vê a contribuição da Ciência do Brasil e da sociedade para o desafio do Antropoceno? Estamos realizando o debate público dessa questão com o devido amadurecimento para enfrentarmos esse desafio existencial? Se sim, quais as iniciativas brasileiras que você destacaria como enfrentamento das crises climáticas e da biodiversidade?
Mauro Galetti – O Brasil possui um grupo de excelência em estudos climáticos e ecológicos. Acabamos de criar, com apoio da Fapesp, o CBioClima, Centro em Biodiversidade e Mudanças no Clima na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro. Esse centro irá agregar cientistas e estudantes para buscar soluções práticas para reduzirmos e mitigarmos a perda de biodiversidade e as mudanças no clima. Além disso, na Amazônia temos muitos projetos inovadores que monitoram o papel do aumento do CO2 na floresta.

O ponto crítico é que as escolas ainda não discutem os efeitos das mudanças climáticas. Na verdade, a sociedade como um todo deve estar ciente da urgência desse tema. A discussão deve ser debatida nas igrejas, nas fábricas, na escola, na TV e não apenas em um seleto grupo de cientistas. A mídia dá mais visibilidade às questões negativas que os cientistas encontram do que às soluções.

Adriana Prestes – Recentemente, em 2020, você publicou com outros autores um artigo temático de revisão sobre a fauna paulista. Nesse trabalho, foram destacados a completa erradicação de seis espécies de animais silvestres pela caça e pela perda de hábitat e que cerca de 40 mil animais, distribuídos em 33 espécies, são atropelados todos os anos no estado. Ainda há esperança para a fauna silvestre em São Paulo?
Mauro Galetti – Sim, existem projetos e ações para mapear e reduzir esse “faunicídeo” que está ocorrendo em São Paulo. Minha colega, Fernanda Abra, possui um projeto de passagens de fauna, tanto por baixo da estrada como por cima, nas copas, para reduzir a mortalidade de fauna. Mas nossa malha rodoviária ainda é enorme e o desafio é enorme.

Adriana Prestes – Você coordena vários projetos, incluindo o “Defau-Biota: efeitos da defaunação no carbono do solo e na diversidade funcional de plantas da Mata Atlântica” e o “Consequências ecológicas da defaunação na Mata Atlântica” – esse último desde 2009, destacando a importância da fauna herbívora para o perfeito funcionamento ecológico das florestas. Será que vamos conseguir reverter a situação de declínio populacional de espécies criticamente ameaçadas, como é o caso da anta, que apesar de todos os esforços de proteção, continua sendo caçada e atropelada nos poucos locais onde ainda resiste?
Mauro Galetti – Sim, estamos compilando dados de várias espécies que estavam ameaçadas de extinção que retornaram a natureza. Existe diversos projetos de refaunação no Brasil. O projeto Refauna, no Rio de Janeiro, e o de trazer de volta bugios para a Ilha de Santa Catarina são exemplos de ótima Ciência utilizada para restaurar a fauna.

Adriana Prestes – Você é do interior paulista, onde há a tradição de contar histórias engraçadas ou interessantes. São os famosos “causos”. Em suas andanças pelo mundo, certamente você viveu alguns. Gostaria de dividir alguma dessas histórias com nossos leitores?
Mauro Galetti – Nossa, foram muitas! Desde conhecer antigos guerrilheiros do capitão Lamarca escondidos na serra de Paranapiacaba até encontrar pessoas tão pobres que não tinham nenhum móvel na casa, mas que foram gentis o suficiente para te servir um café e conversar. Isso caberia num outro livro. Causos do Antropoceno….