O peixe-boi-amazônico é uma espécie difícil de se encontrar que habita as profundezas turvas dos rios e lagos da floresta amazônica. Esses animais, que foram capazes de suportar as altas temperaturas da seca histórica de 2023 que dizimou centenas de botos, agora estão enfrentando um novo perigo com o baixo nível das águas. Com menor quantidade de água e podendo chegar a meia tonelada, eles acabam ficando expostos a caçadores que têm como alvo a sua carne. No período de seca, o número de caçadores aumenta, o que representa uma crescente ameaça à conservação do animal.
A seca representa uma grande oportunidade para caçadores”, disse à Mongabay o veterinário do Laboratório de Mamíferos Aquáticos (LMA), que faz parte do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), Anselmo d’Affonseca. “A caça é e sempre foi um fator muito preocupante, pois provoca um grande impacto nos peixes-bois”.
A caça dos peixes-bois-amazônicos (Trichechus inunguis) foi proibida há aproximadamente 60 anos devido a um declínio significativo da população, vítima de cerca de quatro a sete mil mortes anuais entre 1934 e 1954. Embora as gerações mais novas de ribeirinhos tenham perdido o costume de consumir a carne do animal e, consequentemente, reduzido a demanda, a prática da caça, intensificada com a seca, continua sendo a maior ameaça à espécie, explica a analista de conservação do WWF-Brasil e coordenadora da South American River Dolphins Initiative, Mariana Paschoalini Frias.
Anselmo afirma que a carne do peixe-boi é “muito apreciada” em algumas regiões da floresta amazônica, fazendo da caça uma oportunidade de ganhar dinheiro. Um único indivíduo pode render dois terços de seu peso em carne. Apesar de a legislação ter restringido seu comércio em grandes cidades, o consumo da carne continua ocorrendo em municípios menores e afastados, onde a fiscalização é mais branda devido à menor quantidade de efetivo e há estigma social ao denunciar alguém da comunidade.
O número de animais caçados durante a seca ainda é desconhecido. Entretanto, os especialistas dizem que por volta de 300 indivíduos foram vítimas de caçadores na reserva Piagaçu-Purus, uma pequena área no estado do Amazonas, durante a seca do ano passado. Não há, porém, nenhum dado oficial ou estatística disponível sobre quantos peixes-bois restam.
“É quase impossível estimar o número da população desses animais na Amazônia. Os rios são muito extensos e as águas são escurecidas. Não há como contá-los”, explicou Anselmo. Por outro lado, o veterinário suspeita que a população está se recuperando, pois observou um aumento no número de filhotes resgatados entre as últimas duas e três décadas.
Os caçadores primeiro capturam os filhotes para atrair a mãe. Durante os primeiros dois anos da vida, o pequeno peixe-boi é totalmente dependente da sua mãe, tanto para amamentação quanto para respiração, pois precisa aprender a emergir. Forma-se um laço muito forte entre mãe e filhote. Quando ela tenta resgatá-lo, os caçadores a matam e deixam para trás o filhote.
“Largados à própria sorte, os filhotes têm pouca chance de sobreviver”, disse a bióloga Renata Emin, que é também presidente da ONG Bicho D’Água, a qual resgata e reabilita peixes-bois. Geralmente são os membros das comunidades que solicitam o auxílio de órgãos ambientais, os quais colaboram com organizações de resgate, para salvar os filhotes.
Resgatar esses órfãos tem um papel crucial na proteção da população da espécie e do seu ecossistema.
Salvando com resgate e educação
“[O peixe-boi amazônico] é uma espécie sentinela, pois é extremamente sensível a qualquer sinal de mudança ou interferência ambiental que possa ocorrer na região”, disse Mariana. “Quando uma espécie icônica da fauna amazônica é impactada, significa que há um colapso muito maior que afeta todo um ecossistema que está sofrendo uma forte pressão externa.”
Para proteger a população de ameaças futuras, os conservacionistas estão aplicando uma abordagem multifacetada que inclui resgate e soltura de filhotes órfãos, monitoramento da população e educação ambiental voltada para as comunidades locais, a fim de integrá-las na conservação da espécie.
No Pará, onde a caça ameaça a espécie, o Instituto Bicho D’Água está cuidando de dois filhotes em reabilitação. Um deles, resgatado em março, teve a nadadeira amputada, provavelmente por humanos. Após seu resgate, realizado pelo instituto e pelo Ibama, o peixe-boi atualmente se encontra no hospital veterinário da Universidade Federal do Pará. Em todo o Estado, existem um total de 50 indivíduos da espécie em reabilitação.
“É um número significativo”, disse Renata.
O resgate dos filhotes é geralmente mais simples, especialmente dos recém-nascidos, já que são menores e fáceis de capturar, pontua Anselmo. O desafio começa quando algumas pessoas, embora bem intencionadas, se enganam achando que os filhotes estão abandonados e tentam resgatá-los. Para lidar com isso, a Inpa e a Associação Amigos do Peixe-Boi (Ampa) deram início a uma campanha educativa, produzindo cartazes e livretos com informações sobre quando o resgate é ou não necessário.
Outro desafio é a preparação desses animais para o seu retorno à natureza. Antes do animal ser solto, ele passa um tempo em um recinto de aclimatação. Quanto mais tempo um peixe-boi permanece em cativeiro, mais complicada se torna sua libertação, pois ele fica habituado a seres humanos e desenvolve comportamentos que prejudicam sua sobrevivência na natureza. No momento, há apenas um recinto, localizado em Santarém (PA), mas Renata afirma que há planos para construir mais dois em Belém, capital do Estado.
“É muito importante que esses animais passem por essa etapa [de aclimatação]”, comenta Renata. “Os filhotes precisam compreender como funcionam marés e correntezas, além de saber que o fundo do rio é onde eles se alimentam. Os animais que foram soltos imediatamente após [a reabilitação] tiveram menos sucesso em se adaptarem.”
A Ampa, em parceria com a companhia de energia Eletrobras Eletronorte, o Inpa e o Centro de Preservação e Pesquisa de Mamíferos e Quelônios Aquáticos (CPPMQA), realizaram a soltura de cinco peixes-bois no rio Uatuma, localizado no estado do Amazonas, em maio. Por meio do seu programa, a Ampa e os demais já devolveram 44 indivíduos ao seu hábitat e há mais de 60 no processo de reintrodução, que conta também com a parceria da Fundação Sea World e outros colaboradores.
A educação ambiental para as comunidades locais é um ponto-chave do sucesso da reintrodução dos peixes-bois-amazônicos. Ela começa meses antes das solturas e inclui visitas em escolas da capital do Amazonas, Manaus, e também em comunidades ribeirinhas, promovendo a proteção da vida aquática e engajando a responsabilidade comunitária na conservação do meio ambiente. Essas ações estimulam o interesse das pessoas em conservar os peixes-bois da região.
A ONG Bicho D’Água também opera com as comunidades ao ensinar procedimentos de primeiros-socorros aos filhotes órfãos. Por conta da distância entre os locais e a dependência do transporte fluvial na região amazônica, esse treinamento pode significar uma questão de vida ou morte para esses animais antes da chegada do resgate.
“É fundamental poder contar com pessoas, associações e líderes comunitários que possam realizar os primeiros-socorros e informar nossa equipe para que possamos orientá-los, mesmo que à distância”, disse Renata.
Nós realmente acreditamos que a mobilização social e o engajamento comunitário podem contribuir significativamente na conservação da espécie”.
A educação ambiental é essencial e precisa ser auxiliada pelo apoio governamental, comentam os conservacionistas. Recentemente, a Ampa, junto com o Inpa e o LMA, se reuniram com os órgãos ambientais para planejarem estratégias capazes de lidar melhor com a previsão de baixos níveis de água para este ano. Um outro ponto importante para a proteção dos peixes-bois é a aplicação mais rígida da lei contra os caçadores, destaca Anselmo.
A tradição do consumo e tráfico da carne desses animais é uma realidade na Amazônia”, aponta, “A falta de punição acaba encorajando as pessoas a matar e vender sua carne”.