Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Em 2008, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em parceria com a Associação Amigos do Peixe-boi (Ampa) e com apoio da Petrobras Socioambiental, Universidade de Kyoto, Itochu, Aquário de São Paulo entre outros parceiros, iniciou o programa de soltura de peixes-bois órfãos reabilitados nos tanques do Centro Aquático Robin Best, no Bosque da Ciência-Inpa, em Manaus (AM), no âmbito do Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia.
O Inpa recebe anualmente cerca de 12 filhotes de peixes-bois, capturados acidentalmente em redes de pesca ou cujas mães foram mortas para o consumo da carne. Esses filhotes resgatados pelos órgãos ambientais (Ibama, Secretaria de Meio Ambiente do Amazonas, Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas – Ipaam e secretarias municipais de meio ambiente) são trazidos pelo Batalhão da Polícia Ambiental. Uma vez no Inpa, recebem todos os cuidados veterinários e passam a ser alimentados com uma dieta láctea, desenvolvida no Instituto, com base na fórmula do leite de peixe-boi.
Esses filhotes são amamentados por cerca de dois anos, quando passam gradativamente a uma dieta de vegetais cultivados e plantas aquáticas. Depois de desmamados, consomem por dia de 8% a 10% do seu peso corporal em plantas. Isso significa que um peixe-boi de 100 quilos precisa de oito a dez quilos de alimento diariamente.
A manutenção desses incríveis herbívoros aquáticos em cativeiro é cara e a sua devolução à natureza também. Mas, desde o início do Projeto Peixe-boi, na década de 1970, a intenção sempre foi a de reabilitar e devolver os animais aos rios da Amazônia, de onde nunca deveriam sair.
Nas duas últimas décadas, o número de filhotes resgatados aumentou bastante. Não sabemos se devido ao aumento do número de redes na água, se pela facilidade de comunicação e divulgação nas mídias sociais ou como consequência das atividades de educação ambiental junto às populações ribeirinhas que passaram a conhecer melhor a legislação referente a esses animais e reportam sua ocorrência em cativeiros inadequados ou provenientes de capturas acidentais em redes de pesca.
Entre 2008 e 2009, iniciamos as primeiras solturas, liberando quatro peixes-bois no rio Cuieiras, afluente do rio Negro. Esses animais, criados com mamadeiras, saíram diretamente dos tanques do Inpa para o ambiente natural. Os problemas de adaptação, como a dificuldade de encontrar alimento e de lidar com a variação do nível das águas nas enchentes e vazantes, ficaram evidentes. Tivemos então que mudar nosso protocolo de soltura, estabelecendo uma etapa de semicativeiro, na qual os animais passaram a ter um período em um lago com água do rio, turbidez e temperatura características do ambiente de várzea e a buscar seu próprio alimento. Nesse ambiente, são monitorados e convivem com outros animais aquáticos, como diversas espécies de peixes, pirarucus, tartarugas, entre outros. Também optamos por uma área de soltura com maior abundância de plantas aquáticas.
Em 2016, iniciamos a segunda etapa de soltura com quatro animais provenientes do lago de semicativeiro e monitorados com rádios transmissores do tipo VHF. Com o sucesso da adaptação, desde então, anualmente, liberamos peixes-bois reabilitados na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Piagaçu-Purus.
Estamos na quinta edição e até 2019, antes do início da pandemia da Covid-19, já havíamos liberado 31 peixes-bois reabilitados nos tanques do Inpa e com estágio em ambiente seminatural. Não foi possível fazermos a expedição no início de 2020 como planejado, mas agora, em julho de 2021, com os rios secando (vazante) e abundância de plantas aquáticas, transportamos 13 peixes-bois para a RDS-Piagaçu-Purus, onde foram liberados e passaram a ser monitorados.
O lago Araçá, na RDS-Piagaçu-Purus, fica a cerca de 230 quilômetros do Inpa, sediado em Manaus. A viagem é longa, quase 24 horas de barco, e os cuidados com os animais são intensos, obrigando o revezamento da equipe dia e noite.
A seleção dos peixes-bois candidatos ao semicativeiro para futura soltura considera a idade dos indivíduos, o tempo de cativeiro, o comportamento e a condição física. Depois dessa etapa, eles são submetidos a uma bateria de exames de saúde antes de serem transferidos para a área de semicativeiro, onde ficam por pelo menos 12 meses. Uma vez decidida a data da soltura, os animais passam por uma segunda bateria de exames, bem mais detalhada, para garantirmos que não levarão nenhuma doença que possam ter adquirido no cativeiro ou no semicativeiro às populações naturais.
Dessa vez, devido à enchente histórica dos rios amazônicos (“A cheia histórica dos rios amazônicos e o impacto na reintrodução de peixes-bois“, de 28 de maio de 2021) , os animais que haviam sido resgatados e trazidos novamente para os tanques no Inpa aguardavam pela soltura. Na véspera da viagem, a água nos tanques foi reduzida e, às 5h30 do dia 21 de julho, foram colocados sobre colchões de espuma na carroceria de um caminhão e transportados até o porto, onde um barco com piscinas de fibra com água os aguardava. Tivemos a ajuda do Batalhão da Polícia Ambiental e de batedores que auxiliaram no rápido deslocamento no intenso trânsito entre o Inpa e o porto da Panair. Foram necessárias duas viagens e às 10 h todos os 13 animais já estavam agrupados em três piscinas no convés do barco. Às 11h, iniciamos a última etapa do retorno desses peixes-bois ao seu destino.
Em função dos cuidados requeridos para evitarmos qualquer possibilidade de contaminação pelo coronavírus ou suas diferentes cepas, a equipe, formada por biólogos, veterinários e tratadores, foi bem reduzida este ano. Nos revezamos todo o tempo, cuidando para garantir o bem-estar dos animais.
O processo de soltura, instalação dos cintos com os transmissores no pedúnculo caudal, coleta de material biológico e biometria duraram dois dias. Cinco animais foram soltos com cintos transmissores e serão monitorados enquanto os demais foram simplesmente liberados.
Parte da equipe ficou em campo dando início as atividades de monitoramento, que pode durar até dois anos. Os monitores são ex-caçadores de peixes-bois treinados para coleta de dados. São os embaixadores do projeto junto às comunidades do rio Purus, que receberam o título de Comunidade Amiga dos Peixes-bois. Com uso dos transmissores-VHF será possível verificar a adaptação desses animais ao ambiente natural, o deslocamento diário, as áreas de maior permanência, a identificação dos habitat preferenciais, a alimentação e a interação com peixes-bois selvagens. Conhecendo a biologia e o comportamento dos peixes-bois, teremos informações para apoiar politicas públicas não só de conservação desses magníficos mamíferos da Amazônia ameaçados de extinção, mas da reserva e de outras áreas de proteção para essa e outras espécies Amazônicas.
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