Cristina Rappa
Jornalista com MBA Executivo de Administração e especialização em Comunicação Corporativa Internacional. Observadora de aves e escritora de livros infantojuvenis com temática voltada à conservação da fauna.
Pensem em uma ave linda, mas muito rara, já tendo sido, inclusive, considerada extinta, até ser novamente avistada, mas que conta com pouquíssimos exemplares na natureza. Estamos falando da saíra-apunhalada (Nemosia rourei), passeriforme ameaçado de extinção, classificado pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) como “criticamente em perigo”.
Pois uma das medidas para se tentar evitar sua extinção é o engajamento da comunidade local, por meio de programas de educação ambiental.
O curioso nome popular da ave – saíra-apunhalada – faz referência à mancha vermelha na altura da sua garganta, lembrando uma mancha de sangue, como se o animal tivesse sido “apunhalado” no peito por algum objeto perfurante.
Por mais de cem anos, a saíra-apunhalada permaneceu conhecida por um único exemplar, capturado em 1870, não sendo novamente avistada até 1941, quando oito aves da espécie foram observadas em Itarana (ES), até ser registrada em 1998 em florestas em Conceição do Castelo, também nesse Estado. Única ave endêmica do Espírito Santo, só sendo encontrada nos municípios de Castelo, Vargem Alta e Santa Teresa, é um animal extremamente raro e considerado uma das aves mais ameaçadas do mundo.
A saíra-apunhalada é historicamente uma ave rara, situação depois agravada com a perda de hábitat da nossa mata atlântica”, diz Valdívia Rocha, mobilizadora social no Programa de Conservação da Saíra-apunhalada (PCSA), coordenado pelo Instituto Marcos Daniel (IMD), uma associação privada sem fins lucrativos fundada em 2004 pelo médico capixaba Marcos Daniel Santos.
Valdívia conta que uma medida fundamental para ajudar a conservar a ave foi a criação da Reserva Kaetés, em 2021, pelo IMD. A reserva ocupa uma área de 677 hectares, dos quais 269 foram reconhecidos em abril de 2021, pelo ICMBio, como uma reserva particular do patrimônio natural (RPPN). Criada com recursos de parceiros internacionais, está localizada no limite dos municípios de Castelo e Vargem Alta – em área de mata atlântica de altitude (entre 800 metros e 1.250 metros), ambiente de preferência da ave. Sua missão é proteger não só a saíra- apunhalada como outras 22 espécies ameaçadas.
Para se ter ideia do grau de ameaça enfrentado pela espécie, na reserva foram registrados, no início do Programa, sete indivíduos e na Reserva Biológica Augusto Ruschi, em Santa Teresa, outros cinco. Além dessas dez, doze aves nasceram desde 2020, sob supervisão dos profissionais da Kaetés, que conta com uma equipe de dois biólogos e um coordenador de campo para atuar no monitoramento das aves, além de um educador ambiental e uma gestora ambiental atuando na mobilização social, simultaneamente.
Para apoiar essa equipe enxuta e ainda dar sensação de pertencimento, a comunidade foi envolvida em atividades de reflorestamento da reserva, com o cultivo de mudas de espécies nativas de mata atlântica, e no plantio de cinco milhões de sementes despolpadas de palmito-juçara.
A área de presença da saíra-apunhalada fica em uma região em que a agricultura familiar predomina. É ainda uma das principais regiões turísticas do Espírito Santo e a saíra pode ser um atrativo adicional para as atividades de ecoturismo, bom complemento de renda para essas famílias e cuja importância a equipe do Programa de Conservação da Saíra-apunhalada (PCSA) tem destacado à população.
“Temos trabalhado fortemente no engajamento comunitário e na mobilização social”, afirma Valdívia, que é formada em Gestão Ambiental e Recursos Humanos. Ela explica que a equipe busca conhecer e sensibilizar as lideranças não só dos produtores rurais, mas do governo local, comércio e escolas.
Assim nasceu, no início de 2020, o Passarinhar e Educar, um projeto voltado aos estudantes da região que usa a observação de aves como ferramenta de educação ambiental. O objetivo é sensibilizar e conscientizar as crianças – e, como consequência, toda a população – para a importância da conservação da biodiversidade e dos recursos naturais, com ênfase na proteção da avifauna local.
O projeto foi atropelado pela pandemia da Covid-19, tendo retornado em 2023, com o envolvimento das secretarias da Educação, Meio Ambiente e Agricultura, que foram “muito receptivas” às suas ideias, de acordo com Valdívia.
Neste ano, o Passarinhar e Educar envolveu doze escolas públicas de ensino fundamental da zona rural dos municípios da área de abrangência do PCSA, alcançando aproximadamente 300 estudantes.
Além disso, por meio da capacitação de educadores com efeito multiplicador, alcançou indiretamente mais de cinco mil estudantes, além de alunos do programa de educação de jovens e adultos (EJA) e em palestras no ensino médio. Sem falar na multiplicação de suas mensagens entre as famílias das crianças participantes. “Para 2025, o objetivo é ampliar a abrangência”, revela Valdivia.
O Passarinhar e Educas tem duração de dez horas, divididas em cinco dias, por turma. Ele começa com trabalhos nas salas de aula com palestras e o uso de uma cartilha, para depois ir a campo, com observação de aves em uma unidade de conservação, para, depois, aplicar novamente em sala de aula o que foi visto. Para a prática de observação de aves são usados 40 binóculos e perneiras.
Além da cartilha, uma revista de histórias em quadrinhos em que a saíra é protagonista foi desenvolvida. Os materiais contam com links em QRCode como ferramenta de inclusão digital. Falando em inclusão, a educadora é mulher e preta. O projeto contribui ainda para promover a cidadania, já que são desenvolvidas atividades de comunicação dos estudantes com governantes.
A prefeitura de Vargem Alta, um dos municípios onde fica a Kaetés, se mostrou uma grande parceira, tendo criado em 2022, junto com o PCSA e a Reserva Ambiental Águia Branca, RPPN vizinha e parceira, o programa de formação continuada de educadores ambientais da rede pública, batizado de Ser Mata Atlântica. Na cidade, a saíra-apunhalada está presente como símbolo em manifestações espontâneas, ilustra muros de escolas, comércios e residências e, em 2025, estará nos uniformes da rede municipal de ensino, além de ter se tornado, por meio de uma lei municipal, a espécie símbolo do município, que já carrega o título de cidade do Verde e das Águas.
No Estado, a importância da ave já é reconhecida e a espécie foi homenageada com uma data especial: o Dia Estadual da Saíra-apunhalada, comemorado em 28 de abril. Com essa crescente união de esforços e recursos em prol de sua conservação, esperemos que a população da saíra-apunhalada se multiplique e proporcione muitas alegrias não só aos capixabas como aos amantes da natureza de forma geral.