De Eurico Santos a Ciminius platensis

Do percursor da Zoologia Cultural à cigarrinha-comum, que consegue sobrevier às ações humanas.

Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural.
Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera e Lepidoptera, sendo que recentemente vem se dedicando ao estudo da presença simbólica de animais nas manifestações culturais, a chamada zoologia cultural. Com mais de cem artigos científicos publicados, cerca de 200 trabalhos apresentados em congressos científicos, nove livros editados e sete capítulos de livros, orientou dez dissertações de mestrado e três teses de doutorado. É idealizador e editor do periódico A Bruxa, uma revista de biologia cultural, e do fanzine sobre ciência Homem-Leoa. É também o criador e organizador do Colóquio de Zoologia Cultural e da Mostra de Biologia Cultural.

18 de setembro de 2024

FAUNA NEWS De Eurico Santos a Ciminius platensis

Foi no distante ano de 1985 que ingressei na faculdade, no então curso básico de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em um cenário sem computadores pessoais, internet e Google, naqueles tempos era, obviamente, muito mais difícil obter informações que hoje em dia, fazendo com que cada mudança de etapa na progressão escolar fosse um passo rumo ao desconhecido.

Naquele novo mundo de descobertas que se abria para mim, o ensino superior, por diversas vezes escutei que a universidade pública estava equilibrada em três pilares básicos: o ensino, a pesquisa e a extensão. Cada qual, supostamente, com importância equivalente. Bom, a parte do ensino foi fácil entender, já a partir do momento em que pela primeira vez coloquei os pés na universidade, acomodei o traseiro em uma cadeira na sala de aula ou no laboratório de práticas e desandei a ter aulas e mais aulas – e foram muitas em quase cinco anos de curso. A parte de pesquisa igualmente foi fácil de entender, posto que praticamente todos os meus professores eram também pesquisadores em seus respectivos laboratórios de trabalho. Mas e a tal da extensão?

A real é que permaneci alheio a ela por toda a graduação, bem como no mestrado e no doutorado. Só bem tardiamente na minha posterior carreira docente é que pude, meio que fortuitamente, começar a compreender o que seria a extensão, vertente que aproxima demais a universidade com a sociedade na qual ela está inserida – ou, melhor dizendo, na qual todos nós estamos inseridos. Assim como comecei a entender as possibilidades poderosas que isso gera para se falar de Ciência.

Me faltava um dos pilares

Quando rememoro a graduação, me vem a sensação de que eu poderia ter aproveitado mais o curso de excelência que a mim foi oferecido. Acho até que quase todo mundo deve sentir um pouco isso. Também me bate uma certa tristeza pela universidade não ter mais explicitamente me explicado os três pilares básicos. Mas aí eu vejo que alguns contemporâneos meus (OK, poucos, é verdade) seguiram carreira trabalhando com divulgação científica em revistas tipo Ciência Hoje ou museus, e fica claro que a grande “falha” foi minha. Falha que tento compensar nos dias de hoje, dando o devido valor à necessária popularização da Ciência.

Voltando aos tempos de graduação, um dos programas favoritos de minha galera era a visita aos sebos, preciosos estabelecimentos de comercialização de livros usados. Tais livrarias eram comuns por toda a cidade, incomparavelmente mais do que agora, tempos em que sucumbiram, possivelmente vitimadas pelos PDFs da vida. Assim, a cada lugar que se ia, era comum fazer uma visitinha ao sebo mais próximo, em busca de preciosidades a preços mais em conta.

Naquela época, o pessoal com o qual eu andava era quase todo da área de Zoologia, paixão comum natural e compreensível de muitos que enveredam pelos caminhos das Ciências Biológicas. E, é claro, a gente ia nos sebos atrás de livros sobre bichos. Uma coleção era meio que figurinha fácil, a “Zoologia Brasílica”, composta por onze títulos falando sobre bichos brasileiros, cobrindo mamíferos, aves, répteis, anfíbios, peixes, artrópodes e alguns outros invertebrados. Escritos por Eurico Santos e republicados pela editora Itatiaia nos anos 1980, os livros da coleção, antes de qualquer coisa, exaltam as maravilhas da nossa fauna em linguagem que varia entre o comum e o quase poético. Assim, possivelmente sua maior vocação seja a de encantar, podendo ser destinada, basicamente, ao povo não versado em Zoologia. Muito embora, é bom que se deixe claro, haja nos livros muitas informações científicas de qualidade. Mas, realmente, são os causos a respeito de nossos bichos que saltam aos olhos. Assim, o caráter pioneiro de Eurico Santos em termos de divulgação da Zoologia ao público é notável, a ponto de ele já ter sido considerado como um David Attenborough do Brasil de meados do século 20 [1].

Hoje, olhando para trás, percebo que eu não tenho desculpa, pois se a universidade pode ter falhado um pouco ao não me apontar a necessidade e a importância de se fazer divulgação científica, eu tive, ao alcance de minhas mãos, nos sebos em que corriqueiramente frequentava, um naturalista que me mostrou isso. O problema é que eu não quis compreender. No meu meio universitário, cercado por jovens entomólogos em formação, nós, tomados pela característica marra da juventude, desprezávamos o texto de Eurico Santos. Víamos a escrita narrativa, cheia de lendas e crendices, como algo “inferior”, “menor”, destinado a leigos, não a acadêmicos. Nem a juventude serve de desculpa para tamanha tolice, vejo claramente agora.

Precursor da Zoologia Cultural?

Por uma dessas coincidências da vida, recentemente me deparei, na biblioteca pública de meu bairro, com um livro de Eurico Santos pertencente à outra coleção, a “Vis Mea in Labore”: História, lendas e folclore de nossos bichos [2]. Nele, com seu estilo literário peculiar, o autor reclama que os poetas não tratam bem a Zoologia e dá alguns exemplos que justificam tal ponto de vista. Aborrece-lhe, por exemplo, o tratamento dado por Esopo e La Fontaine às cigarras que, na famosa fábula “A cigarra e a formiga”, são tidas como pouco afeitas ao trabalho. Diz também que o poeta Olegário Mariano derrapou na biologia ao, no poema “Enterro da cigarra”, dizer que:

“Enquanto te chorava a natureza

Tuas irmãs e tua mãe cantavam”

Mestre Eurico Santos enfatiza que isso não poderia acontecer, posto que as cigarras nascem já órfãs de pai e mãe. Além de, acrescento eu, apenas os machos cantarem.

Assim, se na percepção de Eurico Santos, que se mostrou um tremendo precursor da Zoologia Cultural, poetas e escritores nem sempre escrevem bem, no sentido biológico, sobre os bichos, por que não um zoólogo se arriscar a fazer isso? Tenho visto, com felicidade, ótimas tentativas aqui e ali. Eu mesmo, sem qualquer traço de talento, tenho me arriscado em textos zoopoéticos, quase sempre seguindo a métrica do cordel, a meu ver super adequada à popularização. Aqui mesmo, no Fauna News, já expus alguns [3] [4] [5].

Minha mais recente incursão ao mundo das artes, o cordel intitulado “Ciminius platensis”, versa sobre a espécie de cigarrinha (ordem Hemiptera, família Cicadellidae) que tem esse nome. O poema logrou no V Prêmio Fanzine de Literatura [6] a terceira posição entre as poesias da região Sudeste, pelo voto popular. Ciminius platensis encarna exatamente o tipo de inseto que me interessa: comum, abundante, distribuído tanto em ambientes naturais quanto em áreas urbanas. Não é uma espécie tão vistosa quanto outras cigarrinhas já abordadas por aqui [7], é de pequeno porte, o que faz com que seja pouco vista, não é tão nociva assim, o que não desperta interesse econômico por seu extermínio. É muito comum na grama, mas ocorre também em citros, arroz, sorgo e muitas outras plantas. Atraída pela iluminação artificial, frequentemente adentra as nossas casas à noite, eventualmente dando umas bicadinhas na pele dos humanos, embora não tão efetivas como as descritas para indivíduos do gênero Balclutha, conforme descrito no podcast Silvestres [8].

Essa cigarrinha parece ser onipresente. No que se refere às áreas naturais e preservadas, em quase todas as localidades que já visitei no Rio de Janeiro e em São Paulo, Ciminius platensis está presente, costumeiramente na vegetação mais rasteira de borda de mata. E o quadro não muda de figura no que se refere a locais mais antropizados, como as margens do rio Paraíba do Sul, no Vale do Paraíba paulista, nos arredores da movimentadíssima via Dutra, entre Rio de Janeiro e São Paulo, em gramados urbanos da região dos Lagos, em ruínas de fazendas na Baixada Fluminense. Especificamente no município do Rio de Janeiro, já vi o pequeno guerreiro em canteiros de condomínios na zona oeste, em lustres e globos de luz de casas e apartamentos da zona norte, em praias bastante mexidas. Em um dos câmpus da universidade na qual trabalho, no bairro da Urca, zona sul da cidade, tais bichinhos são particularmente abundantes na grama perto do prédio do curso de Teatro, local com muita circulação de pessoas e alta taxa de pisoteio. A cada novo período, levo as turmas para as quais ministro aula ao local e faço uma atividade de coleta, mostrando aos estudantes a pujança de Ciminius platensis. A cada passada da rede de varredura, dezenas de indivíduos são capturados, exatamente no local onde, antes, durante e depois da atividade, tem sempre um monte de gente pisando.

Ao término dessa atividade demonstrativa semestral, ao soltar os bichinhos de volta à grama, confesso que sempre me vem uma sensação de alento. Especialmente agora, diante do que estamos fazendo com a natureza no Brasil e no mundo, é um alento saber que existem espécies que se mostram capazes de sobreviver a nós. Apesar de nós. Esses heróis da resistência merecem cada verso, cada rima, cada estrofe, cada cordel que lhes prestem homenagem.

Até mês que vem. Ah, quando for votar, lembre-se que nem todas as espécies são tão resistentes quanto Ciminius platensis – muito pelo contrário. Vote também por elas.

Referências

[1] https://oeco.org.br/colunas/26923-eurico-santos-divulgador-da-natureza-brasilica/
[2] Santos, Eurico. 1987. História, lendas e folclore de nossos bichos. Coleção Vis Mea in Labore, vol. 5. Editora Itatiaia.
[3] https://faunanews.com.br/retrospectiva-em-cordel/
[4] https://faunanews.com.br/o-voo-da-mariposa-aquatica-um-conto-de-esperanca-para-o-rio-grande-do-sul/
[5] https://faunanews.com.br/falando-de-insetos-no-inicio-do-outono/
[6] Silva, Lenilson (ed.) 2024. Antologia: V Prêmio Fanzine de Literatura. Era Uma Vez Poesias.
[7] https://faunanews.com.br/carnaval-dos-insetos-um-mundo-de-cores-formas-e-farsas/
[8] https://www.youtube.com/watch?v=8i185t_8y1Q&list=PLZUuZ0kJuIcKSpT4iigLfB0b_5QW-hUbH&index=15&t=651s

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Sobre o autor / Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural. Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera […]