Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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O Carnaval é a festa do povo, um espaço democrático de externação de anseios e sonhos. Como tal, na sociedade medieval e renascentista europeia, a festa era a chance única dos plebeus oprimidos se travestirem de suas elites, como uma válvula de escape às durezas da desigualdade social [1]. As manifestações carnavalescas anulavam quaisquer resquícios, simbólicos ou não, de poder, hierarquia e repressão. Essa ideologia das coisas ao avesso, segundo Bakhtin [2], inclui as diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões [1]. Os fãs de cultura pop devem estar lembrando da cena da animação Disney “O corcunda de Notre Dame” (1996), em que a sociedade parisiense medieval mostra, ao som da música “Às avessas”, a celebração popular em que pobres se travestem de ricos, feios ficam bonitos e tristes se tornam felizes.
Dentro dessa visão, nada mais adequado do que se falar de insetos, um grupamento numeroso, diversificado, plural e incômodo – tanto como o são as classes mais baixas da sociedade humana, ao menos aos olhos das camadas dominantes. Como o Carnaval humano está em suspensão, dentro das recomendações de isolamento físico, algo absolutamente necessário para se frear o avanço da pandemia de Covid-19, surge a chance de se lançar olhares para o mundo dos insetos e, dentro do princípio da exaltação do avesso, admirar sua beleza e realçar suas peculiaridades. Algo que deveria ser regra e não a exceção de um único período festivo – bem como os sonhos de igualdade entre classes deveriam perdurar o ano inteiro e não serem uma fantasia de Carnaval.
Muitos brasileiros estão sentindo falta dos bailes carnavalescos, repletos de luxo, fantasias e cores. Em um imaginário baile de salão do mundo dos insetos, poucos rivalizariam com o besouro-arlequim, Acrocinus longimanus (Linnaeus, 1758) (Cerambycidae), um grandão que a todos encanta por seu porte e suas cores chamativas. Os élitros (asas anteriores) têm o preto como cor de fundo, com padrões simétricos em amarelo-esverdeado a laranja-avermelhado, que lembram a fantasia de arlequim, comum em blocos de rua. Embora vistosa, sua coloração é adequada à camuflagem na casca dos troncos de árvores cobertos de líquens e fungos, onde se aninham [3]. Além das antenas muito longas, característica típica da família Cerambycidae, também chama atenção na espécie o tamanho das pernas anteriores, que medem até 15 centímetros de comprimento. Popularmente conhecido ainda pelos nomes de arlequim-da-mata, arlequim-de-caiena, besouro-da-figueira e broca-da-jaqueira, é integrante da ordem Coleoptera, o grupo dos besouros, tratando-se de um dos maiores insetos do mundo.
Os adultos são principalmente herbívoros, alimentando-se em árvores diversas, mas há registros de consumo de excrementos de animais. A espécie está amplamente distribuída pelas florestas da região neotropical, do sul do México ao norte da Argentina [4]. Verdadeira celebridade, ilustrou a capa de disco “O cair da tarde” (1997), do cantor Ney Matogrosso [5].
Cigarrinhas, pequenos insetos que se alimentam de seiva vegetal e estão classificados na família Cicadellidae (ordem Hemiptera, subordem Auchenorrhyncha), também fariam sucesso em bailes de fantasias. As cigarrinhas se destacariam por suas cores vivas, manchas e listras, em padronagens que desafiam a criatividade dos mais destacados carnavalescos. Algumas das espécies maiores e mais coloridas – e que, por isso mesmo, costumam chamar mais atenção – estão classificadas na subfamília Cicadellinae, sendo muito comuns em áreas urbanas.
Tão coloridas quanto e bem mais numerosas, porém muito menores, são as integrantes da subfamília Typhlocybinae. Essas mini cigarrinhas, que estão entre os mais vistosos da família, fariam muito sucesso nas matinês dos bailes carnavalescos. Cigarrinhas eventualmente podem causar danos significativos às plantas das quais se alimentam, não pela alimentação em si, mas pela transmissão de patógenos [6].
Nos desfiles de fantasias, as borboletas fariam sucesso absoluto. Dos poucos insetos que costumam ser admirados pelos humanos e com escamas que lhes garantem cores inimagináveis, essas integrantes do grupo Rhopalocera (ordem Lepidoptera) garantem o encantamento de todos que as veem desfilar – ou melhor, voar – nos dias de sol. Dentre as mais impressionantes borboletas, estão as do gênero Caligo Hübner, 1819 (família Nymphalidae, tribo Brassolini), popularmente chamadas como borboleta-coruja [7]. Isso devido às asas posteriores apresentarem, na face ventral, manchas que lembram muito os olhos de uma coruja; sem dúvida uma belíssima fantasia. Essas borboletas ganharam destaque recentemente por conta da minissérie “Cidade Invisível” (Netflix, 2021), cuja trama envolve personagens do folclore brasileiro – aliás, alguns causos de insetos no nosso rico folclore já foram abordados nesta coluna [8]. Na série, a bruxa Cuca se transforma frequentemente em borboletas-coruja, o que é bastante curioso, posto que os outros integrantes da ordem Lepidoptera, as mariposas, é que têm má fama, conforme comentado em outro artigo desta coluna [9].
A bela fantasia da borboleta-coruja ainda traz para o baile dos insetos a farsa, o engodo e o avesso, algo normalmente exaltado no Carnaval. Se, por um lado, nos festejos carnavalescos humanos da atualidade os freios da correção sociopolítica se fazem necessários, no mundo dos insetos está liberado se travestir daquilo que não se é. Além da inofensiva borboleta que parece coruja e, eventualmente, escapa de predadores por isso, muitos outros integrantes da ordem Lepidoptera se beneficiam de farsas semelhantes.
Diversas borboletas e mariposas, muitas vezes sem grande proximidade evolutiva entre si, apresentam manchas ocelares nas asas. Outras, saborosas ao paladar dos predadores, são muito semelhantes a modelos impalatáveis, compondo anéis miméticos interessantíssimos. Isso ocorre, por exemplo, com as borboletas do gênero Heliconius Kulk, 1780 (Nymphalidae) que, por sua impalatabilidade, são mimetizadas por outras espécies [10]. Outras interessantes imitações (usando um termo bem simplista mesmo) ocorrem em algumas mariposas da tribo Arctini, que são bastante assemelhadas a vespas. Por sinal, integrantes da ordem Hymenoptera, como formigas, abelhas e as próprias vespas, costumam servir de modelo para diversos insetos sem tantas defesas e que, assim, escapam de alguns predadores desavisados.
Um outro tipo de imitação, talvez um pouco mais inusitada aos olhos humanos, ocorre quando o inseto, para “botar seu bloco na rua”, veste uma “fantasia” pouco atraente. Algumas apetitosas lagartas de borboletas da família Papilionidae, por exemplo, se assemelham a excrementos de aves e o bicho-lixeiro, nome comum de determinadas larvas da ordem Neuroptera, carrega um emaranhado de fragmentos e dejetos – certamente isso tende a afastar alguns predadores mais sensíveis.
Esbeltos, longilíneos, elegantes e ágeis, os louva-a-deus, integrantes da ordem Mantodea, fazem lembrar os mestres-salas dos desfiles de escolas de samba, com a diferença que os primeiros são muito mais discretos em seus movimentos. Aliás, a discrição é uma das armas de sobrevivência do louva-a-deus que, ao não ser notado, pode exercer adequadamente suas atividades de captura de presas. Poucos insetos encarnam tanto o hábito predador quanto o louva-a-deus. Até recentemente, acreditava-se que, em condições naturais, os louva-a-deus se alimentassem exclusivamente de fontes animais, embora se saiba que, em cativeiro, alguns exemplares aceitem alimentos suplementares, como mel e até frutas. Não obstante, como os insetos são mestres em parecer aquilo que não são, uma descoberta recente mostrou que ainda é necessário estudá-los por muitos mais carnavais. Em uma observação de campo, a equipe do Projeto Mantis [11] registrou um exemplar de Stagmatoptera precaria (Linnaeus, 1758) (Mantidae) se alimentando de um material vegetal, o látex de mamoeiro [12].
Assim, nesta Quarta-Feira de Cinzas diferente, de um momento estranho e atípico, em meio a uma pandemia que a todos afeta, suture suas dores, dispa-se da normalidade e dê uma chance ao avesso. Permita-se admirar o estranho e observe um pouco as cores, formas e farsas dos insetos e de tantos outros animais inconspícuos, mas repletos de peculiaridades biológicas interessantes. E que, ao contrário do Carnaval, isso não acabe na quarta-feira.
Referências
[1] https://gediscursivos.wordpress.com/2015/10/29/as-avessas-a-carnavalizacao-bakhtiniana-representada-em-o-corcunda-de-notre-dame-da-disney
[2] Bakhtin, M.M. 1987. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec.[3] https://www.britannica.com/animal/harlequin-beetle
[4] Fuentes-Mario, José A. & Salcedo-Rivera, Gerson A. 2018. Registro de Acrocinus longimanus (Linnaeus, 1758) (Coleoptera: Cerambycidae) en Sucre, Caribe Colombiano. Revista Colombiana de Ciencia 10(1): 78-81.
[5] https://www.naturezaeconservacao.eco.br/2018/08/besouro-arlequim-encanta-pelo-seu.html
[6] Waquil, José M.; Viana, Paulo A.; Cruz, Ivan & Santos, Jamilton P. 1999. Aspectos da biologia da cigarrinha-do-milho, Dalbulus maidis (DeLong & Wolcott) (Hemiptera: Cicadellidae). Anais da Sociedade Entomológica do Brasil 28(3): 413-420.
[7] Penz, Carla M. 2007. Evaluating the monophyly and phylogenetic relationships of Brassolini genera (Lepidoptera, Nymphalidae). Systematic Entomology 32: 668-689.
[8] https://faunanews.com.br/2020/10/21/insetos-no-folclore-brasileiro-muitas-narrativas-refletindo-discriminacoes-e-padroes-de-comportamento
[9] https://faunanews.com.br/2020/05/20/verdades-e-lendas-da-mariposa-bruxa
[10] https://www.heliconius.org/biology/mimicry
[11] https://www.projetomantis.com
[12] Lanna, Leonardo M., Rocha; João F.H.; Cavalcante, Sávio; Godoy, Derek, & Teixeira, Maria Lucia F. 2021. First record of non-carnivore feeding behavior in a wild praying mantis (Mantodea: Mantidae). Entomological Communications 3: ec03003.
[13] https://www.facebook.com/groups/insetosdobrasil/permalink/3246879788745654
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