Na nossa conversa do mês passado [1], eu trouxe aqui a minha percepção de que falar sobre insetos é sempre muito necessário em quaisquer espaços, sejam eles os acadêmicos ou aqueles considerados leigos. Enfatizei que nesses últimos trazer os insetos ao papo é fundamental, ainda mais diante da notória representação social negativa desse importante grupo animal. É sempre bom lembrar que não teríamos este planeta Terra sem a participação dos insetos [2]. E, por uma questão de coerência pessoal, parti do discurso à prática, mostrando o início da minha participação no desafio literário proposto no Instagram pela Editora 3 Serpentes [3]: escrever diariamente, durante o mês de março, ao menos um micro conto de até 350 caracteres (sem contar espaços nem o título), obrigatoriamente baseados no tema do dia.
Bom, até aí nada tem a ver com insetos. Mas o pulo do gato (ou do gafanhoto) é que me impus o desafio de dar um jeito de incluir insetos na minha participação. Sem talento, com alguma criatividade e com gigantescas doses de cara de pau e falta de noção, consegui completar a empreitada, tendo dividido com vocês seis desses meus micro-contos no texto do mês passado. Vou completar a tortura com mais seis dessas minhas breves e mal traçadas linhas, acompanhadas da devida explicação entomológica.
Tema: VELA
CICLO
A mosca vela o cachorro moribundo, esperando o momento certo de nele botar ovos.
Espécies de algumas famílias da ordem Diptera, como as moscas de Muscidae e Calliphoridae, colocam ovos em tecidos animais. Ao eclodirem, as larvas se alimentam nesses tecidos, caracterizando a miíase, mais conhecida como bicheira. Trata-se de uma infecção parasitária comum em cães, gatos, bovinos, ovinos e outros animais [4].
Tema: BRASIL
DUPLO SENTIDO
O Brasil é o país dos insetos.
Realmente, nosso país é agraciado com uma mega diversidade de insetos. A brincadeira em duplo sentido é o possível uso do termo “inseto” como algo pejorativo, alusivo aos pouco comunitários comportamentos dos poderosos por aqui. Vale a ressalva de que esse uso negativo dos insetos deve ser evitado, algo também já tratado por aqui [5].
Tema: FIAR
FIM DE LINHA
A mosca caiu na teia que a aranha acabou de fiar.
Insetos ficam presos em teias de aranhas na mesma proporção que incautos caem em artimanhas de golpistas.
Tema: VENTO
ALELUIA
Hoje de tardinha choveu um pouco, mas nada que abalasse o calor do verão. Daqui a pouco, na noite sem vento, quando a Lua for escondida pelas luzes da cidade, vai começar a aleluia da realeza de cupins.
Em períodos mais quentes, costumeiramente após um dia de chuva, os cupins (da antiga ordem Isoptera, hoje incorporada à ordem Blattodea), popularmente chamados de bichinhos-de-luz, fazem revoadas conhecidas como aleluias. Essas revoadas incluem machos e fêmeas, que têm seu voo natural atrapalhado pelas luzes artificiais, pelas quais são atraídos. As fêmeas potencialmente são rainhas que irão fundar novas colônias. Os cupins e sua importância cultural também já foram tema nesta coluna [6].
Tema: ÁGUA
CAMPSURUS
Nem bem saiu da casca do ovo e, como seus cinco mil irmãos e irmãs, começou a lutar pela sobrevivência no duro ambiente aquático. Por um punhado de meses, sua vida foi comer, se esconder de predadores e trocar de pele para crescer. Até que a química dos feromônios mostrou que havia chegado o fim de tarde certo para deixar a água e ganhar os ares. Tem agora uma noite inteira para encontrar sua cara-metade. E, com ela, morrer ao amanhecer.
A ordem Ephemeroptera, cujos integrantes passam as fases imaturas como ninfas aquáticas e os adultos duram muito pouco, só mesmo o tempo necessário para a reprodução, também já foi tema deste espaço [7]. Campsurus (família Polymitarcyidae) é um gênero bastante comum no Brasil, sendo distribuído por todo o território nacional. Como curiosidade, os adultos de Campsurus possuem pernas atrofiadas, com exceção das anteriores do macho, o que faz com que eles sequer tenham a possibilidade de pousar. Basicamente, então, os adultos saem da água, onde viveram a maior parte da vida como ninfas, alçam voo e, voando, acasalam, em um enxameamento de grandes proporções. Após algumas horas de voo nupcial, caem e morrem. Caso as fêmeas caiam na água, têm o abdome rompido, o que proporciona a liberação de milhares de ovos.
Tema: TERRA
TERRA
Em algumas espécies de escaravelhos as futuras mamães rolam pelo chão pelotas de excremento que, enterradas, servirão de farto alimento para as crias. Ao verem esses insetos em ação, os antigos egípcios questionaram se o planeta Terra não seria uma grande esfera carregada por um besouro gigante pelo firmamento. Só isso já faz com que eles fossem muito mais esclarecidos e sensatos que os terraplanistas de hoje em dia…
Os besouros que apresentam essa interessante peculiaridade biológica são popularmente chamados de rola-bostas, sendo pertencentes à família Scarabaeidae.
Bom, vale informar que nenhum de meus “entomo-micro-contos” sequer passou das fases classificatórias do desafio. E está tudo bem, o que vale é que o recado foi passado. Porém, como se diz satiricamente nas redes sociais, “a vergonha eu já tenho, agora eu vou buscar a humilhação”, expondo outra tentativa minha de falar sobre insetos em mares poucas vezes dantes navegados. Como a poesia.
O sujeito dessa exposição é ninguém menos que a mariposa-bruxa, Ascalapha odorata (ordem Lepidoptera, família Erebidae), tema de meu primeiro texto por aqui [8]. Aquela que, além da destruição das áreas naturais, sofre com crendices extremamente danosas. Como a que diz que, caso uma mariposa-bruxa entre numa casa, a única forma de se evitar a morte de um dos moradores é matando o pobre do inseto.
Propondo um universo alternativo em que isso não acontecesse, arrisquei um poema em que os humanos trocam de lugar com os insetos e que foi publicado no zine 7 dias cortando as pontas dos dedos – Pátria a(r)mada assassina [9].
AS MARIPOSAS-BRUXA E O BICHO-HOMEM
Num universo alternativo
Bem diferente do nosso
Um bicho-homem entrou
Voando pela janela aberta
Na casa das mariposas-bruxas
Indo pousar na parede
Bem no alto, quase no teto
Vovó mariposa-bruxa
Ao ver o intruso medonho
Logo narrou a crendice
Que diz que é de mal agouro
Ter um bicho-homem em casa
E que quando isso acontece
Vai morrer alguém da casa
Pra não morrer alguém da família
Tem que matar o bicho-homem
Mas ali ninguém matou
Pois as mariposas-bruxas
Não acreditam em crendices
E em qualquer universo
São melhores que o bicho-homem
Possivelmente, para o planeta teria sido melhor que esse meu universo alternativo fosse real… De qualquer forma, fechando esta minha pouco convencional tentativa de falar sobre insetos, arrisquei versos em haicai, a objetiva e sintética poesia de origem japonesa, que, resumidamente, tem três versos, sendo o primeiro e o terceiro de cinco sílabas aproximadamente fonéticas e o segundo, de sete. Os três “entomohaicais” abaixo foram publicados no livro de resumos do VII Colóquio de Zoologia Cultural [10], publicado na revista A Bruxa. Os haicais são seguidos da explicação entomológica.
Na teia de seda
Tipo o Homem-Aranha
Verão embióptero
Os insetos da ordem Embioptera, pouco conhecidos do público em geral, mas bastante comuns até mesmo em ambientes urbanos, apresentam glândulas produtoras de seda nas pernas anteriores, de modo muito semelhante ao famoso super-herói da Marvel.
Tão encantadora
Borboleta oitenta e oito
Não sabe contar
Com marcações que lembram um “88” na face ventral das asas, essas borboletas são inconfundíveis. Uma das espécies mais comuns é Diaethria clymena (ordem Lepidoptera, família Nymphalidae).
Piolho-de-livro
Come letras que não lê
Sumo desperdício
Alguns insetos da ordem Psocoptera costumam ser encontrados em papel, eventualmente causando dados à documentação.
Finalizo reforçando o apelo aos que gostam de insetos: não hesitem em falar sobre esses seres tão incríveis e cheios de peculiaridades. Em prosa, verso, tela ou partitura. Eles merecem.
Referências
[1] https://faunanews.com.br/2023/03/22/falando-de-insetos-no-fim-do-verao/
[2] https://faunanews.com.br/2020/11/18/os-insetos-e-as-queimadas-no-brasil-um-prejuizo-para-todos/
[3] https://www.instagram.com/editora3serpentes/
[4] https://blog.agroline.com.br/bicheiras-causas-tratamento-e-produtos-indicados/
[5] https://faunanews.com.br/2023/01/18/nao-golpistas-nao-sao-insetos/
[6] https://faunanews.com.br/2022/08/17/insetos-no-folclore-brasileiro-parte-3-estorias-de-cupim/
[7] https://faunanews.com.br/2021/03/17/as-aguas-de-marco-fechando-o-verao-sao-cheias-de-insetos/
[8] https://faunanews.com.br/2020/05/20/verdades-e-lendas-da-mariposa-bruxa/
[9] https://pt.slideshare.net/rojeffersonmoraes/7-dias-cortando-as-pontas-dos-dedos-ptria-armada-assassina?fbclid=IwAR09fPXGdjdc306oCSE1dbnNJT7B2UYq3AZow_o7naS7vqkk9QopMQ
[10] https://www.revistaabruxa.com/_files/ugd/b05672_d9cf3b29a696437da1bc166abed5a4e0.pdf
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