O voo da mariposa aquática: um conto de esperança para o Rio Grande do Sul

O inseto é resultado da metamorfose da lagarta-cartucheira, que é considerada uma praga na produção agrícola de arroz.

Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural.
Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera e Lepidoptera, sendo que recentemente vem se dedicando ao estudo da presença simbólica de animais nas manifestações culturais, a chamada zoologia cultural. Com mais de cem artigos científicos publicados, cerca de 200 trabalhos apresentados em congressos científicos, nove livros editados e sete capítulos de livros, orientou dez dissertações de mestrado e três teses de doutorado. É idealizador e editor do periódico A Bruxa, uma revista de biologia cultural, e do fanzine sobre ciência Homem-Leoa. É também o criador e organizador do Colóquio de Zoologia Cultural e da Mostra de Biologia Cultural.

22 de maio de 2024

FAUNA NEWS O voo da mariposa aquática: um conto de esperança para o Rio Grande do Sul

“Muita gente diz que o Brasil é quente o ano inteiro. Assim, aqueles que não gostam muito do nosso calor tropical torcem ansiosamente pela chegada do outono, época em que costuma soprar uma agradável brisa de frescor.

Nas nem sempre tão quentes terras meridionais brasileiras, especificamente no estado extremo do Rio Grande do Sul, o outono é bem aguardado, pois representa o início da colheita do arroz em algumas fazendas. Em uma delas, no município de Camaquã, num campo alagadiço onde se planta esse componente tão fundamental do prato do povo brasileiro, no início de maio de 2024 uma pequena lagarta nadava entre as plantas aquáticas, balançando o corpo com movimentos em chicote e se desprendendo de seu antigo esqueleto externo. Conforme muitos de nós aprendemos na escola e nos documentários da televisão, a maioria dos insetos passa por uma metamorfose ao longo da vida, o que inclui o nascimento a partir do ovo, sob forma de larva, que passa por sucessivas trocas de exoesqueleto, possibilitando o crescimento corporal até chegar na fase de pupa, para finalmente emergir o inseto adulto. É o que acontece, por exemplo, com as borboletas, cujas larvas são chamadas de lagartas e a fase de pupa é em forma de crisálida, no mais famoso ciclo biológico dentre os insetos.

A lagarta desta narrativa é um pouco diferente das lagartas comuns. Começando pelo fato de, com uns 15 milímetros de comprimento quando plenamente desenvolvida, ser bem menor do que a da maioria das borboletas. Além disso, não é exatamente de borboleta, mas de uma mariposa. E, diferenciando ainda mais, é uma lagarta-aquática. Sim, ela vive mergulhada em ambientes alagados, retirando o oxigênio diretamente da água através de filamentos finos que funcionam como brânquias e se alimentando de plantas aquáticas. Nossa lagarta se alimenta da planta do arroz e é, por isso, considerada uma praga, não sendo muito querida entre os agricultores, que a chamam de lagarta-boiadeira.

O termo “praga” pode ter algumas conotações, quase todas elas negativas. Com ampla distribuição ao longo do planeta, essa espécie de lagarta-boiadeira provavelmente é originária do Sudeste Asiático. Ou seja, não é nativa do Brasil, sendo tipo um estrangeiro por aqui. Como também o é, diga-se de passagem, o arroz do qual se alimenta. Bem como o são os humanos que cultivam o arroz e que chamam as lagartas de praga, posto que a origem de nossa espécie é africana. Espécie que costuma combater quem ousa comer sua comida com pesticidas e defensivos agrícolas, venenos que talvez não façam tão bem assim para quem come o arroz.

Possivelmente as lagartas-boiadeiras apenas causem problemas às plantações de arroz, a ponto de serem chamadas de pragas, porque os humanos eliminaram as áreas naturais onde se refugiavam os predadores. Novamente na escola, todo mundo aprendeu o conceito de cadeia alimentar, um come-come danado que, de acordo com as leis da natureza, regula as populações. Sem predadores e com vastas plantações de arroz à disposição, parece que os humanos convidaram a lagarta-boiadeira não só para o almoço, mas também para café da manhã, lanche da tarde, janta e ceia. Colocamos a mesa e fizemos o convite. E a lagarta aceitou.

Retornando à nossa lagarta, já livre do exoesqueleto antigo ela nada e vai recolhendo pedaços de material vegetal, unindo-os com a seda que produz, até formar um tipo de cartucho. Esse representa um abrigo móvel, um casulo onde ela vai passar o final de seu ciclo biológico até formar a pequena mariposa. Esses cartuchos são responsáveis por um outro nome popular que o bichinho recebe: lagarta-cartucheira.

Naquela importante região produtora de arroz, não é muito comum o aparecimento de lagartas-cartucheiras no outono, pois a espécie é bem mais abundante em épocas quentes. A nossa lagarta não ter completado ainda o seu ciclo biológico talvez seja o indicativo de que algo está ficando diferente com as estações do ano no Brasil. E nem precisa ser uma lagarta para constatar isso. Os civilizados humanos também já perceberam que estamos vivenciando um dos mais quentes períodos de outono das últimas décadas, com temperaturas que rivalizam com as do verão. Não tem jeito, a gente sente no dia a dia os resultados de efeito estufa, aquecimento global, subida do nível de oceanos, processos de desertificação e outros termos que já há muito saíram do jargão científico e se mostraram presentes no cotidiano de todos.

Enquanto a lagarta-cartucheira nadava em meio às plantas, uma combinação terrível de fatores estava prestes a mudar bastante a sua rotina. Além de ter que lutar para escapar dos inimigos naturais que ainda lhe restam e sobreviver ao veneno dos humanos, o inseto foi varrido, junto com árvores, rochas, casas, carros, pessoas e outros animais, pela maior inundação que o estado do Rio Grande do Sul já viu, ao menos desde que passou a ter esse nome. Combinação de condições naturais específicas aliadas às maiores taxas de devastação ambiental que os humanos impõem ao planeta, tudo isso temperado com negacionismo à Ciência, descaso político, subserviência cega ao capital e desprezo ao social.

Enquanto era transportada pela força das águas para longe do local de nascimento e crescimento, sem controle do espaço físico, à lagarta restava o controle de seu tempo biológico. Nesse interim, empupou enclausurada no cartucho de folhas que lhe dá nome, protegida da chuva que insistia em lavar vidas e memórias. Após algumas semanas de dilúvio com força devastadora quase bíblica, a chuva parou. Até que, na superfície de um banhado que nem era alagado antes, perto da margem ampliada da Laguna dos Patos, um cartucho de folhas amassadas se rompeu e dali saiu uma pequena mariposa branca, que voou para logo pousar em um graveto próximo. Uma mariposa de origem estrangeira, mas tão gaúcha e brasileira quanto qualquer um, tinha agora os tímidos raios do sol da manhã impondo um brilho prateado às escamas das asas abertas em forma de cruz. Brilho esse que renova a esperança de dias melhores para o Rio Grande do Sul e para o planeta.”

Um inseto ligado ao arroz

A protagonista do miniconto autoral acima é uma lagarta-cartucheira da espécie Parapoynx stagnalis, integrante da família Crambidae e da ordem Lepidoptera, a das mariposas e borboletas. Em inglês, a espécie é conhecida como rice case bearer ou rice caseworm, nomes que já deixam clara a ligação com a planta Oryza sativa, o arroz (rice, em inglês), um dos mais destacados alimentos da humanidade. Amplamente distribuída ao longo do planeta, Parapoynx stagnalis está registrada em todos os continentes, exceto a Antártica, sempre associada aos cultivos de arroz. Considerada uma praga agrícola, costuma ser combatida pelo uso de pesticidas pesados e tidos como perigosos, como DDT, BHC e carbaril [1].

Como em muitos grupos de insetos, a taxonomia das mariposas-aquáticas está frequentemente sujeita a mudanças e rearranjos. Por exemplo, aqui mesmo no Brasil muitos estudos no campo da agronomia se referem à espécie Parapoynx stagnalis pelo nome de um de seus sinônimos, Nymphula depunctalis. O grupo em si é bastante desconhecido para o público leigo em Entomologia, que costuma sequer saber que existem mariposas cujas lagartas são verdadeiramente aquáticas. Com exceção, é claro, dos leitores assíduos deste espaço, que devem lembrar que as mariposas-aquáticas já foram tema por aqui [2].

Para o miniconto, a escolha de se contar as coisas dentro da perspectiva da lagarta-cartucheira foi calcada em alguns motivos. Em primeiro lugar, de modo óbvio, por ser completamente ligada aos campos inundados de cultivo de arroz, posto que o Rio Grande do Sul é o maior produtor do Brasil, sendo responsável por 70% da produção nacional do cereal [3]. Há significativa produção também nos arredores da Laguna dos Patos, inclusive no município de Camaquã [4].

Durante este período de chuvas fortes, o escoamento das águas em Camaquã, tem sido prejudicado por fatores naturais, como o fato de a região ser a convergência de algumas bacias hidrográficas [5], bem como por possíveis descasos diante da causa ambiental [6]. Tal cenário é mais ou menos o mesmo em todas as regiões do Estado. Ainda em relação à produção de arroz, há evidentemente prejuízo aos estoques destinados aos consumidores brasileiros [7], o que aponta para o acerto da rápida intervenção do governo federal, garantindo a pronta importação [8] e, possivelmente, evitando a alta do preço final.

A escolha da lagarta-cartucheira também foi devida ao fato delas serem consideradas pragas [9], classificação que, embora justificada por estudos agronômicos e enquadramentos consolidados na área, sempre me incomoda. Pois, na minha percepção, o termo praga se encaixa muito mais para definir as ações humanas do que as dos outros animais. Ainda com relação à Parapoynx stagnalis, vale repetir que é uma espécie introduzida, por si só algo problemático – e, não se pode deixar de enfatizar, também culpa do ser humano.

Muito se fala da tragédia humana consequente do desastre de imensas proporções que ora assola o Rio Grande do Sul. Pessoas perderam vidas, casas, bens, conexões, histórias. Uma parada que eu, à distância, sequer ouso dimensionar. Parece coisa de guerra. Assim como é impossível dimensionar o dano em relação aos animais mais próximos de nós, os ditos “de estimação”, mas que, na verdade, fazem parte da família. Ou os de criação, simbolizados no cavalo Caramelo, cujo resgate emocionou a todos e, particularmente no meu caso, me fez diminuir um pouco a descrença no ser humano [10].

Mais trágico ainda é o que ocorreu e ocorre com os bichos que a gente quase não consegue ver, que não fazem parte das nossas redes de afetos, talvez alguns que nem mesmo a Ciência conheça – e que foram varridos pela água. Mas posso garantir que, à semelhança da lagarta-cartucheira do miniconto, que virou mariposa e completou seu ciclo, a vida vai continuar encontrando um jeito de driblar as adversidades.

Enquanto isso, considere-se convocado a colaborar. Ajude. Basta procurar, há empresas, instituições públicas e iniciativas sérias recolhendo doações destinadas ao Rio Grande do Sul e sua gente. Nossa gente. Toda ajuda é bem-vinda, tanto para quem cuida das pessoas quanto para os dedicados à causa animal. Colabore. E viva o Rio Grande do Sul.

Referências

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Sobre o autor / Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural. Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera […]