Por Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Reportagem também publicada pela Agência Mongabay.
As colisões de aeronaves com animais chamam a atenção pelo risco que esses eventos significam para a segurança dos voos. Somente no Brasil, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) registra mais de 2 mil casos por ano. Entretanto, esse e outros impactos negativos do tráfego de aviões sobre a fauna silvestre são pouco estudados com enfoque na conservação e bem-estar dos animais por cientistas e gestores desse meio de transporte no país.
“Vejo que as pesquisas são bem mais voltadas para a segurança das operações. Poucas citam o impacto sobre a fauna ou citam apenas marginalmente”, afirma a bióloga e diretora World Birdstrike Association (WBA), Mariane Biz. Sócia da ProHabitat (empresa que atua em aeroportos na gestão de questões envolvendo animais) e diretora na Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil), ela explicou à Mongabay que, no Brasil, prevalece a ideia de que as espécies atingidas em colisões com aviões não são de “relevante interesse ecológico” por serem consideradas “comuns”.
Entretanto, Biz destaca que esse discurso prevalente pode não corresponder à realidade. Entre os motivos estão a subnotificação de colisões com animais e o fato de 47% dos registros no Sistema de Gerenciamento de Risco Aviário (Sigra) do Cenipa não apontarem a identificação da espécie do animal envolvido. “Será que na situação atual do mundo, à beira do precipício em relação aos seus limites planetários, podemos ignorar as chamadas ‘espécies comuns’?”, reflete Biz.
O Sigra é um banco de dados gerenciado pelo Cenipa (órgão do Comando da Aeronáutica) que é abastecido por informações técnicas sobre avistamentos de fauna, quase colisões e colisões entre aeronaves e animais fornecidas por qualquer pessoa. O material é analisado por especialistas e serve para a gestão de segurança de voos.
O último Anuário de Risco de Fauna, publicado em 2021 com dados do Sigra, indicou que em 2020 foram reportadas 2.145 colisões entre aeronaves e animais no Brasil. No ano anterior, o número foi maior (2.851) porque não houve o efeito da pandemia. De acordo com Biz, como o índice de morte da fauna é altíssimo nesses casos, pode-se considerar que para cada evento registrado há um espécime morto. Deve-se novamente levar em consideração o fator de subnotificação, já que nem todas as colisões são presenciadas ou têm dados enviados ao sistema.
O histórico de dados do Sigra indica um expressivo aumento de colisões. Em 1996, data da primeira contagem divulgada no Anuário, registrou-se 127 colisões com animais para uma frota nacional de 9.768 aeronaves. A maior quantidade já registrada foi justamente a de 2019 (2.851 casos) para uma frota de 16.554 veículos. De acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), além do crescimento do número de aeronaves, a maior quantidade de colisões com animais pode ser explicada pela ampliação do movimento nos aeroportos, pela evolução tecnológica dos aviões, que são mais velozes e silenciosos, e pela melhora na cultura de notificação de casos.
A preocupação é financeira
Biz é categórica ao afirmar que os números de mortes no modal aeroviário, apesar de bem menores quando comparados aos de atropelamentos em estradas – estimativa de 2013, do Centro Brasileiro de Ecologia de Estradas (CBEE) da Universidade Federal de Lavras (UFLA), indica que 475 milhões de animais silvestres morrem por atropelamento em estradas e rodovias do Brasil todos os anos –, não são inexpressivos. “Infelizmente, o setor se preocupa com esses casos principalmente por causa da segurança de voo e dos prejuízos financeiros que causam”, destaca.
E os prejuízos não são pequenos. No Brasil, de acordo com o Anuário de Risco de Fauna, os custos diretos gerados pelas colisões de aeronaves com animais, como reparos de danos em partes do veículo ou substituição de peças, e os indiretos, como cancelamentos e atrasos de voos e despesas com passageiros, foram de mais de US$ 76 milhões no período 2011-2020.
A Anac informou à Mongabay que o Regulamento Brasileiro da Aviação Civil – RBAC 153 possui uma parte específica que trata da questão de colisões entre aeronaves e animais, chamada Gerenciamento do Risco da Fauna. O documento lista uma série de medidas para reduzir a possibilidade de acidentes envolvendo animais silvestres, visando, primariamente, a segurança das operações aéreas e deixando claro que a fauna é o elemento gerador de risco.
Animais mais atingidos
De acordo com os dados do Sigra, entre 2011 e 2020, mais de 90% das espécies identificadas e com registro no envolvimento em colisões são aves. As mais comuns são o quero-quero (Vanellus chilensis, com 32,5% dos casos), o carcará (Caracara plancus, com 13%) e os urubus (família Cathartidae, com 6,4%), sendo que nenhuma corre risco de extinção no país.
Biz afirma que no Brasil as pesquisas acadêmicas sobre esse tema ainda estão começando, não existindo qualquer núcleo em universidades voltado exclusivamente para o problema das colisões entre fauna e aeronaves. “Sempre que posso, tenho colocado em evidência essa escassez de pesquisadores. Acredito que, por não ter o apelo de conservação da biodiversidade, como ocorre com as rodovias, e pelas dificuldades de enfrentar as regras de aeroportos, muitos profissionais não são estimulados a atuar nesse assunto”, explicou a bióloga.
Poluição sonora
Um dos principais impactos negativos promovidos pela aviação sobre os animais silvestres é a poluição sonora. O alto nível de emissão de ruídos emitido pelos aviões gera consequências nas aves que vivem perto de aeroportos.
A bióloga e pesquisadora Renata Alquezar concluiu em 2018, na Universidade de Brasília, seu doutorado em que trabalhou com os efeitos da poluição sonora no canto e na fisiologia das aves que vivem próximas dos aeroportos internacionais Presidente Juscelino Kubitschek, em Brasília (DF); Viracopos, em Campinas (SP); e Deputado Luís Eduardo Magalhães, em Salvador (BA). “São aeroportos bastante movimentados e que possuem ambientes naturais no entorno de suas pistas”, explicou.
Para realizar sua pesquisa, Alquezar fez comparações entre aves que vivem nos aeroportos (ambientes perturbados) e as que habitam áreas com ecossistemas conservados a distâncias de 8 a 17 quilômetros (ambientes não perturbados) da movimentação das aeronaves. Os trabalhos de campo foram realizados em períodos de 2014, 2015 e 2016 e incluíram a caracterização dos locais (vegetação e níveis de ruído e luz), bem como registros das aves.
No total, incluindo aeroportos e áreas não perturbadas, foram registradas por capturas em redes de neblina e gravações de vocalizações 154 espécies de aves. As áreas perturbadas e as conservadas compartilham entre 57% e 61% das espécies.
Como previsto, constatou-se maior diversidade e quantidade de animais nos locais distantes do movimento das aeronaves. “Nossos dados mostraram perdas de diversidade nos locais afetados pelos aeroportos, embora não possamos discriminar entre as contribuições relativas de fragmentação, degradação e dos ruídos para esses padrões”, explica Alquezar em sua tese.
Outra alteração constatada por Alquezar envolveu o canto de cinco espécies de pássaros. A pesquisadora analisou a vocalização de 15 espécies e descobriu que duas (a cigarra-do-campo – Neothraupis fasciata – e o pássaro chibum – Elaenia chiriquensis) anteciparam o início do coro do amanhecer em aeroportos e três atrasaram (o risadinha — Camptostoma obsoletum —, a corruíra — Troglodytes musculus – e o tico-tico — Zonotrichia capensis). “Além disso, as populações que anteciparam o horário apresentaram refrões de músicas mais longos durante a manhã”, relata a bióloga, que considera essa característica como outra adaptação das espécies ao ambiente ruidoso dos aeroportos.
O canto para as aves tem diversas funções, como atrair parceiros para reprodução, defesa de território e comunicação entre pais e filhos. O chamado “coro da madrugada” geralmente começa entre 30 e 60 minutos antes no nascer do sol e são mais complexos e intensos do que as vocalizações realizadas no restante do dia.
Por fim, Alquezar também analisou a quantidade do hormônio corticosterona nas asas de 821 aves de 19 espécies que vivem na região dos três aeroportos. A concentração dessa substância serve para verificar o nível de estresse em aves.
Em quatro das espécies trabalhadas na pesquisa houve alterações. O pitiguari (Cyclarhis gujanensis) e o sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris) apresentaram níveis aumentados do hormônio, enquanto a corruíra (Troglodytes musculus) e o tico-tico-rei (Coryphospingus cucullatus) tiveram reduções.
O aumento do nível de corticosterona pode gerar uma facilitação na ocorrência de infecções parasitárias e na diminuição do tempo de vida na natureza. Já a redução do hormônio pode levar a problemas reprodutivos. Em ambos os casos, os animais estão expostos a estresse crônico.
Aeroportos e unidades de conservação
“O Brasil não tem nada na legislação que seja específico sobre ruído, fauna e aeroportos (relativo à conservação). Seria muito necessário estabelecer esses valores, como níveis de ruído aceitáveis para unidades de conservação, por exemplo”, afirma Alquezar.
Em artigo publicado em 2019, a pesquisadora aborda o aeroporto de Brasília, que se encontra dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) Gama e Cabeça-de-Veado e está cercado por três áreas de relevante interesse ecológico (ARIEs), a Capetinga-Taquara, a Granja do Ipê e a Riacho Fundo, além da Estação Ecológica do Jardim Botânico. Na região, ainda existe a Reserva Biológica do IBGE e duas áreas de proteção especial (Jardim Botânico de Brasília e Jardim Zoológico de Brasília).
Nessas áreas, há a presença de animais de espécies de médio e grande porte, como a onça-parda (Puma concolor), a jaguatirica (Leopardus pardalis), a anta (Tapirus terrestris), o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), o tatu-canastra (Priodontes maximus), o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactila), o bugio (Alouatta caraya) e o veado-catingueiro (Mazama gouazoupira).
Alquezar analisou as rotas e as altitudes de voos acima da Estação Ecológica do Jardim Botânico e constatou que há aeronaves realizando curvas a altitudes de aproximadamente 500 metros, gerando altos níveis de ruído. O impacto dessa polução sonora nesses animais é desconhecido. A pesquisadora acredita ser necessário ter limites de ruído para cada tipo de unidade de conservação, mudanças operacionais nas rotas e na altitude de pousos e decolagens e uma atualização dos planos de uso do solo nas imediações dos aeroportos.