Natural da África, Ásia e Europa, o javali (Sus scrofa) botou os pés no Brasil há mais de 500 anos e se dispersa fortemente há cerca de seis décadas. O descontrole de suas populações catapulta prejuízos ambientais e econômicos. Cientistas avaliam que, com maior e melhor controle, seria possível erradicar a espécie exótica invasora do país.
Seus números nacionais são uma incógnita, mas órgãos federais, cientistas, ongs e caçadores fazem coro ao mostrar a tomada do Brasil pelo javali. A situação mundial não é diferente: a espécie está em todos os países. “Ela se adaptou dos desertos às baixas temperaturas da Rússia”, descreve Carla Zanin Hegel, cujo doutorado em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB) mergulhou na invasão histórica do Brasil pelo animal.
Ancestral do porco criado em pátios, sítios e fazendas, o Sus scrofa domesticus, o javali estreou no país vindo de carona como alimento nos navios de colonizadores europeus. Depois, foi deixado nesta terra brasilis para garantir uma carne conhecida a outros viajantes transatlânticos.
Séculos depois, o javali ganha mais e mais território desde os anos 1960, quando passou a ser multiplicado na Região Sul para produzir carne. Uma grande seca do rio Uruguai no fim dos anos 1980 e fazendeiros com terras em ambos os lados das fronteiras com Argentina e Uruguai engrossaram seus números no Brasil.
Já uma lei federal de incentivo à suinocultura, de meados dos anos 1990, estimulou o cruzamento de porcos domésticos com javalis, gerando o “javaporco”. A ideia era produzir animais com menos gordura e mais carne, mas isso potencializou o uso e dispersão da espécie exótica.
“A gente é péssimo para lidar com espécies exóticas invasoras. Várias invasões que temos hoje a gente assistiu. Documentamos desde o começo até a situação que tem hoje”, reconheceu Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, no lançamento de um relatório sobre impactos nacionais desses animais e plantas pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos.
Dispersão de javalis
Novos criadouros de javalis e híbridos são hoje proibidos e os ativos devem ser vigiados pelos órgãos ambientais, mas há troca e cruza de animais e até fazendas de caça clandestinas reproduzindo javalis, diz a cientista Carla Hegel. “Criadores irregulares os soltam para evitar multas antes da fiscalização. Tudo contribui para a dispersão desses animais”, agrega.
Mas há outros motores para o espalhamento dos javalis, registrados em 698 municípios, em 2017, e 2.010, em 2022, de todas as regiões. Um estudo publicado na revista OneHealth indica que adeptos das caçadas igualmente criam e liberam esses animais na natureza. Os crimes acompanham a malha rodoviária, mostra o trabalho.
Fundador e presidente da Associação Nacional de Caça e Conservação (ANCC), entidade com 4 mil controladores de javalis afiliados que defende a legalização da atividade, Daniel Terra questiona a pesquisa. “Se isso fosse verdade, as populações de outros animais que interessam à caça estariam aumentando”, pondera. “Nunca prenderam ou flagraram alguém soltando javalis”, diz.
Ao mesmo tempo, a falta de predadores naturais e uma grande capacidade de adaptação ambiental engrossam o avanço global do javali.
Onças-pintadas e pardas e outros carnívoros brasileiros até encaram filhotes, jovens e fêmeas menores da espécie, mas evitam embates com machos que podem chegar a 350 quilos. Em suas regiões naturais do outro lado do Atlântico, encolhem os números de seus predadores, como leões, ursos, crocodilos e lobos.
Prejuízos do javali
O porco exótico prefere comer frutos, raízes, brotos e outros vegetais, mas, quando a fome aperta, não perdoa lavouras e outros animais. “Ele come o que está disponível para sobreviver”, conta a bióloga Carla Hegel. Um vídeo compartilhado numa rede social mostra um javali devorando uma ovelha, no Pampa. Mas, essa é apenas parte dos danos da espécie ao país.
A marcha imparável do javali no Brasil afeta economias, ambientes e espécies naturais, ameaça rebanhos e a saúde pública. Sua disseminação impacta principalmente os pequenos agricultores, que tem menos recursos para evitar e arcar com prejuízos.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) estimou em até R$ 50 bilhões anuais os prejuízos se os rebanhos nacionais fossem contaminados por doenças transmitidas pelos javalis, como aftosa, peste suína, tuberculose, leptospirose e raiva. As mesmas enfermidades podem atingir animais silvestres como o cateto e a queixada, e até as pessoas.
A carne de javali não deve ser transportada ou vendida, mas enterrada para conter a dispersão de doenças. Contudo, caçadores costumam levar peças para consumo próprio ou de cachorros. “Tentamos um projeto para inspecionar a carne de javalis abatidos e doá-la a instituições que cuidam de animais abandonados, mas isso não avançou”, conta Daniel Terra, da ANCC.
Ademais, grupos de javalis buscando comida arrebentam com nascentes, banhados e beiras de rios, dentro e fora de fazendas, parques nacionais e outras unidades de conservação. Roem e derrubam árvores. “Também reduzem a variedade e quantidade de espécies nativas nas regiões invadidas”, revela a doutora em Ecologia Carla Hegel.
Difícil controle do javali
Muito bem adaptado à fartura dos ambientes brasileiros, o porco exótico se reproduz em taxas mais altas em relação às regiões de onde veio. Por aqui, até três ninhadas por ano geram em média de oito a dez crias, mas até 15 pequenos javalis podem vir a cada gestação. Uma verdadeira explosão populacional.
Sua infestação mundial tornou a erradicação quase impossível. “Ele nunca foi erradicado em nenhum local onde foi introduzido. É um problema com que nós teremos que conviver para sempre”, avalia Daniel Terra, presidente da Associação Nacional de Caça e Conservação (ANCC).
Caso raro, os animais teriam sido eliminados até hoje apenas de ilhas australianas. “Foi um trabalho árduo, caro, que envolveu muitas pessoas e demorou até cinco anos”, detalha Carla Hegel. Mas a doutora em Ecologia adiantou que uma pesquisa, ainda não publicada, traça caminhos para livrar o Brasil da espécie, em até cem anos. Segundo ela, ampliar entre 50% e 70% o abate de fêmeas conteria a dispersão e reduziria a variabilidade genética do javali. “Com esses fatores somados conseguiríamos ao longo do tempo reduzir e quem sabe erradicar o javali do Brasil”, diz a especialista.
Conforme Daniel Terra, da ANCC, o setor estimou em R$ 1,8 mil o abate de cada javali no Brasil. Os custos incluem armamento de grosso calibre a menor porte, combustível, dias de espera, alimento para pessoas e cachorros. “É o maior trabalho voluntário de controle e de sanidade animal do Brasil”, diz.
O controle do javali com venenos pode matar outras espécies selvagens e domésticas. Sua castração química depende de um exército de veterinários, produtos específicos e muito orçamento. Um estudo publicado no Journal of Applied Ecology mostra que diversificar cultivos reduz a presença do javali. “Proteger lavouras com cães treinados de algumas raças poderia funcionar”, avalia Clarissa da Rosa, pesquisadora no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Caça de javali
Ao mesmo tempo, a caça é a maior aposta de governos mundiais contra a disseminação da espécie, mesmo que criticada pela violência e pelo abate acidental ou intencional de animais nativos.
A relação de caçadores com órgãos ambientais melhora desde o plano nacional para controle do javali, de 2017, com grupos e indivíduos sendo acionados para abater grupos desses animais em fazendas e áreas protegidas, contam as fontes ouvidas por O Eco, mas a atividade e sua regulamentação precisam de ajustes.
As suspensões recorrentes das caçadas, como de 2010 a 2013, teriam engrossado a dispersão do porco exótico no país. “Essas ações favorecem o animal exótico”, avalia Daniel Terra, da ANCC. “A caça feita por controladores registrados abate 98% dos javalis no país”, assegura.
Já uma análise do Tribunal de Contas da União (TCU) mostrou que 10,37% dos caçadores registrados realmente caçaram entre de 2019 a 2022. Dos 574.661 registros no período, apenas 59.610 pediram ao Ibama para abater javalis. Isso indica que a caça foi usada como pretexto para a compra e transporte de armas, mostra uma reportagem do UOL.
Enquanto isso, o Ibama prepara novos planos para conter a dispersão do javali – sobretudo na Amazônia –, do coral-sol, do peixe-leão, do mexilhão-dourado e do cervo-axis – esse em grande número no Parque Estadual do Espinilho (RS). “Algumas coisas não adianta mais falar que vai controlar”, admitiu o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho.
Para evitar situações similares, Agostinho defende maior controle sobre a entrada e criação de espécies exóticas no país e o desenho de protocolos para contenção e eliminação rápida de animais e plantas invasoras. “Há 2 meses identificamos um mangue asiático muito agressivo em Cubatão (SP). Tem que agir, tirar, recolher, usar herbicida se precisar. A gente com todo um pudor assistindo uma invasão se estabelecer”, disse.
Nesse sentido, a doutora em Ecologia Carla Hegel acrescenta que o caso do javali precisa de “mente aberta” sobre os melhores meios de controle e ressalta que são urgentes mais investimentos em prevenção e pesquisa sobre as populações nacionais de espécies invasoras. “Isso evitará que outras espécies se tornem problemas para a economia e a conservação”, afirma.