Por Maristela Crispim
Agência Eco Nordeste
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O bioma Caatinga ocupa 850 mil quilômetros quadrados, cerca de 10% do território nacional, e engloba oito dos nove estados do Nordeste, com exceção do Maranhão: Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe ; e parte de Minas Gerais, já no Sudeste do País.
A palavra Caatinga tem origem indígena. Em tupi ka’a quer dizer “mata”; e tinga, “branca”. Mata branca refere-se à paisagem esbranquiçada apresentada pela vegetação durante o período de estiagem, quando a maioria das plantas perde as folhas e os troncos tornam-se esbranquiçados. Mas quem conhece a região sabe que basta sentir o cheirinho da chuva para tudo ficar verdinho a cada ano.
O Dia Nacional da Caatinga é celebrado em 28 de abril. A data foi criada para não apenas homenagear este bioma único, mas também conscientizar as pessoas sobre a importância da sua conservação. Foi oficializado, por meio de decreto, em 2003, em homenagem ao professor João de Vasconcelos Sobrinho (1908 – 1989).
Professor, engenheiro agrônomo e ecólogo, Vasconcelos Sobrinho é considerado pioneiro na área dos estudos ambientais no Brasil e uma das maiores autoridades em Ecologia da América Latina. Foi um dos fundadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), onde introduziu a disciplina Ecologia Conservacionista, a primeira do gênero ministrada no Brasil.
Em relação ao estudo da Caatinga, o professor Vasconcelos Sobrinho se destacou como pioneiro, já que antes dele o bioma era considerado sinônimo de miséria e escassez de recursos ambientais. Ele conseguiu provar que, além de ser muito rico, o patrimônio biológico da Caatinga é único no planeta por incluir inúmeras espécies que só são encontradas na região.
Aproveitando a data, nós convidamos dois especialistas, de diferentes áreas das Ciências Naturais, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), para comentar alguns aspectos do bioma predominante no Nordeste do Brasil.
Importância
“O Brasil é um dos países mais biodiversos do mundo. Possui seis biomas terrestres, cada um com as suas riquezas naturais: Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Pampa, Pantanal e Caatinga, que tem como características as secas, clima semiárido/semiúmido, com vegetação que perde as folhas na seca e fica verdinha com as chuvas. Há um mito de que há da baixa riqueza biológica”, alerta Carlos Roberto Fonseca, do Departamento de Ecologia da UFRN, lembrando que a universidade potiguar tem o mais antigo curso de graduação em Ecologia em uma federal brasileira.
Fauna e flora da Caatinga
– 3.150 espécies de plantas (702 endêmicas)
– 371 espécies de peixes (203 endêmicas)
– 98 espécies de anfíbios (20 endêmicas)
– 79 espécies de lagartos (49 endêmicas)
– 548 espécies de aves (67 endêmicas)
– 183 espécies de mamíferos (11 endêmicos)
Sobre essas espécies, nos períodos extremos de estiagem, o pesquisador destaca que há duas grandes estratégias: fugir ou ficar. “Os que ficam, enfrentam a seca. As plantas perdem as folhas para perderem menos água, fotossintetizam com os troncos, estocam recursos e água nas raízes. Os insetos entram em dormência, pupa. Sapos se enterram, peixes também. Mamíferos se mudam para locais mais úmidos, encosta de montanhas. A Caatinga não é homogênea e muitas espécies se deslocam para áreas menos secas. O ciclo anual de muda entre regiões. A arribaçã, por exemplo, se desloca de local em local seguindo áreas mais produtivas”, descreve.
Luiz Antonio Cestaro, ecólogo, doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professor do Departamento de Geografia da UFRN, assim resume a importância da Caatinga: “Está na adaptação às condições ambientais com um conjunto de adaptações bem particular, nas espécies endêmicas com um potencial de uso pelo ser humano que muitas vezes nem se conhece, nas plantas que podem ser usadas futuramente num cenário de mudanças climáticas. Manter é um caminho que pode levar à sustentabilidade“.
Adaptação
“É um grande ecossistema regional, formado por um conjunto de plantas, animais, microrganismos, bactérias, fungos, vírus, que vivem de uma forma relativamente equilibrada ao longo de milhares de anos, fruto de uma adaptação às condições do ambiente que permanecem relativamente inalteradas. De geração em geração, novas espécies vão surgindo e outras desaparecendo, numa dinâmica natural que mantém um equilíbrio com as condições de acordo com o tipo de solo e o clima. Geralmente, é o clima que vai determinar o tipo de ecossistema, animais e vegetais que vão viver nesse ambiente”, define Cestaro.
O professor destaca que a Caatinga é um bioma bem adaptado às condições de um clima bastante rigoroso em termos de estação seca, muito longa, que se estende por oito, dez meses ao longo do ano e com temperaturas elevadas o ano inteiro: “Para plantas e animais sobreviverem nessas condições, precisaram de uma série de adaptações. Para as plantas, perder as folhas, por exemplo, é uma adaptação para enfrentar longos períodos de seca. Isso não significa que vivam desfavoravelmente. É o normal delas. Ninguém quer fugir ou está insatisfeito se esses organismos vivem e estão adaptados”.
Para o pesquisador, nós, seres humanos, podemos entender e buscar estratégias para viver nesses ambientes de forma menos conflitiva: “O ser humano sempre viveu de uma forma conflitiva, sem entender essas condições naturais. Um dos problemas é querer enfrentar o ambiente semiárido, confrontar o bioma Caatinga, tentar alterar a sua forma de ser. Para sermos sustentáveis nesses lugares, precisamos nos adaptar, até porque é um dos biomas mais habitados do planeta. As cisternas, por exemplo, já deveriam estar embutidas em quem vive na Caatinga. A necessidade de um programa evidencia a nossa falta de preparo para viver nesse ambiente. Outra coisa é que a vegetação não se recupera rapidamente e muitas vezes as intervenções contínuas, cortando as plantas e fazendo pastoreio, impedem a recuperação da biodiversidade original e coloca em instabilidade esse ecossistema que já vive numa pressão muito grande em termos climáticos”.
Desafios
O professor Carlos Roberto Fonseca relaciona, entre os principais desafios da Caatinga, a alta densidade populacional, com pelo menos 30 milhões de pessoas demandando recursos; estradas com acesso para retirada de recursos; caça e perseguição de aves e mamíferos; desmatamento na procura por madeira que já levou ao desaparecimento de grandes árvores; pecuária com gado bovino mais perto do litoral, sem contar com 19 milhões de cabras e carneiros; desertificação; e ser uma das áreas mais suscetíveis do mundo à emergência climática.
Cestaro, por sua vez, reforça as limitações para exploração ampla: “a pecuária em larga escala tem contribuído para degradar o solo do bioma. Na exploração extensiva é incentivada a retirada da vegetação lenhosa, substituída pelas gramíneas para dar espaço ao gado, com a redução da diversidade das espécies, redução da cobertura do solo e pastoreio. A chuva encontra solo descoberto e provoca erosão. Uma erosão mais intensa vai arrastar material que vai se depositar no leito dos rios e dos açudes e reduz a capacidade de armazenamento de água, aumentando mais a vulnerabilidade nessas regiões”.
Para ele, a saída é tentar manter o solo nos locais mais altos com uma maior recuperação da cobertura vegetal: “um dos grandes desafios, além de conhecer, conviver com as condições climáticas, o ambiente, é reduzir a interferência na cobertura do solo. O fato é que, ao longo da nossa ocupação, trabalhamos numa pressão muito grande de sobre-exploração. Tanto que hoje não se consegue retirar da terra o que se retirava há algum tempo, tanto em termos de pecuária quanto de agricultura. Estamos nos concentrando em torno dos corpos d’água, como açudes, para poder sobreviver. Já chegamos ao ponto de exaustão em alguns lugares, com núcleos de desertificação, onde a própria natureza não consegue restabelecer o equilíbrio anterior”.
A concentração das pessoas nos ambientes urbanos pode reduzir essa pressão, na sua opinião. “Mas precisamos de estratégias de recuperação dessas áreas degradadas ou intensificaremos ainda mais o processo de aridificação ou ampliaremos os períodos secos. É um desafio grande que precisa ser atacado com uma educação ambiental mais intensa, educação cidadã com o ambiente natural onde as cidades estão inseridas. Isso passa pela valorização da cultura do morador do bioma. Desafios não só de conhecimento, mas de cultura”.
E prossegue: “A permanência dos nativos passa por um estímulo maior à permanência nas cidades. As cidades do interior estão se transformando em polos de migração reversa, reproduzindo o sistema de vida urbano. Mas a identidade com o ambiente natural está se perdendo. Uma forma de reduzir os impactos é uma educação que valorize os ambientes naturais. Isso passa também pelas áreas de preservação. As unidades de conservação são extremamente importantes para manter grandes áreas nas condições naturais de preservação. E desempenham também papel importante de educação para resgatar a identidade com os ambientes naturais, uma minimização do impacto da ocupação e degradação do ambiente”.
“Se tivermos mudanças climáticas acentuadas, é provável que as estratégias não poderão ser aplicadas de uma forma mais ampla. Nesse sentido, precisamos atuar com educação, passando pela educação ambiental e redução da pressão sobre os ambientes naturais. A exploração de uma forma abrangente, como no caso da pecuária extensiva, remoção de madeira para lenha e carvão, teria que ser estancada e reduzida”, resume.
Convivência
O professor Cestaro reforça os desafios relacionados à convivência: “Nós sempre tivemos uma estratégia de enfrentamento, sobretudo pelas políticas de Estado. A criação da Inspetoria que depois virou Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) é um paradoxo. Como vamos enfrentar a seca se ela é um fenômeno regional? Na verdade deveríamos ter outra ótica, de convivência com a seca. Aí entra a particularidade da cisterna, uma coisa tão óbvia que deveria ter sido feita desde o início da ocupação do território. É claro que sempre existiu, mas não na abundância que a gente só vai ver na virada do século 20”.
Ele reforça a necessidade de uma redução na dependência da exploração dos recursos naturais, “sobretudo da cobertura vegetal, da fauna local, tipos de exploração pouco nobres e que degradam ainda mais o ambiente; uma redução dessas ações que vem ocorrendo naturalmente em função da exaustão. Não se consegue manter um grande número de cabeças se alimentando da vegetação natural cada vez mais escassa. O caminho é reverter essa pressão, diminuir a velocidade de expansão dos núcleos de degradação, já que não vão ter como retornar”.
Academia
O professor Cestaro também destaca a importância de pesquisas voltadas à recuperação de áreas degradadas, contenção da erosão e da movimentação de sedimentos em direção aos rios e açudes: “Estudando é melhor para enfrentar”.
Sobre o papel da academia, o professor Carlos Roberto informa que o conhecimento sobre o bioma aumentou consideravelmente, sobretudo na última década, com descrição de espécies e mapas de suas distribuições; lista de espécies endêmicas ameaçadas; estudos para criação de áreas prioritárias para conservação, unidades de conservação, áreas prioritárias para restauração; técnicas de restauração e técnicas de manejo.
Em relação às pessoas que vivem nessas regiões, além da educação ambiental, ele destaca a importância de se estimular a valorização da Caatinga e da sua biodiversidade, o manejo adequado dos recursos florestais, o manejo adequado da pecuária, evitando o sobre pastoreio; que os proprietários de terras sigam o Código Florestal, respeitem reservas legais e plantem árvores para garantir o consumo futuro; não cacemos animais para permitir que as populações cresçam novamente e sugere investimento em ecoturismo.