
Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena (SP)
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Dentre as definições ou categorizações formais dos centros de triagem de animais silvestres, os Cetas), destaco a que está presente na Instrução Normativa n° 23/2014 do Ibama. Nela, os Cetas do Ibama são unidades responsáveis pelo manejo de fauna silvestre com finalidade de prestar serviço de: recepção, identificação, marcação, triagem, avaliação, recuperação, reabilitação e destinação de animais silvestres provenientes de ação fiscalizatória, resgates ou entrega voluntária de particulares; e que poderá realizar e subsidiar pesquisas científicas, ensino e extensão. (art. 2°, inciso V da IN nº 23/14 Ibama).
Essa definição enxuta, com foco no serviço desempenhado, por si só já seria suficiente para apresentar todos os Cetas. Contudo, gostaria de fazer uma reflexão um pouco mais aprofundada das funções exercidas por estas instituições.
No cotidiano dos técnicos dos Cetas, o principal material de trabalho, os desafios e as dificuldades são os conflitos. Os animais recebidos pelos Cetas sempre trazem nos seus corpos e existência, seja em seus ferimentos, comportamentos alterados, condição fisiológica ou simplesmente no fato de terem genes inadequados ou a pertencerem à espécie errada, os conflitos que os levaram para lá. Eles são os frutos de ações e situações conflituosas que desembocam nos Cetas.
O fato é que, em uma situação ideal, os animais atendidos por essas instituições não deveriam estar nos centros de triagem. Evidentemente deviam estar em seu habitat natural cumprindo seu papel ecológico. Ou, mesmo aqueles que inaptos para tal, deveriam estar sob os cuidados de instituições legalizadas de cativeiro. São os crimes de cativeiro ilegal, de tráfico de animais silvestres, os eventos de perda de habitat; são as situações de contato humano próximo e danoso com a fauna silvestre os causadores de lesões, ferimentos, atropelamentos, etc.
São essas situações que fazem com que os animais silvestres sejam levados para os Cetas. Todos esses eventos são frutos da relação conflituosa que nós, como sociedade, estabelecemos com tudo mais que nos cerca, o que costumeiramente chamamos de ambientes naturais ou simplesmente de natureza.
Cada animal recebido, tratado, reabilitado e corretamente destinado, além do óbvio benefício trazido para o indivíduo em questão, reduz os danos que esses conflitos trazem para a sociedade. Em se tratando da conflituosa relação entre homem e animais silvestres, com os animais sempre figurando como a parte mais fraca, os Cetas têm a grande pretensão de serem um dos pontos de alívio de tensão, as válvulas de equilíbrio ou os amortecedores dos conflitos.
Assim, como é o caso de outras iniciativas de nossa sociedade, os Cetas tentam amenizar ou nos reequilibrar diante de tudo que nos cerca. Os Cetas passam então a ter uma importância técnica, ética e legal. Uma necessidade diante da avassaladora capacidade do ser humano de causar grandes alterações nos ambientes que o cerca.
Evidentemente os Cetas não surgiram ou foram projetados tendo essa intenção superior como ponto de partida. Os Cetas foram surgindo e se estruturando diante da necessidade, da demanda angustiosa de milhares de animais que acabam sendo encontrados nos caminhos de nossas práticas como sociedade. São um daqueles efeitos colaterais originados pelos conflitos provocados por nós e que as exigências éticas e legais nos impelem a tentar resolver.
Em casos práticos, quando a sociedade, nas formas de sua organização, tenta coibir o cativeiro ilegal e o tráfico de animais, se depara com as maiores vítimas do tráfico. Ou quando a expansão de uso dos habitats, através das nossas práticas, naquela borda de convívio, sempre gera animais feridos, doentes, atropelados, queimados ou simplesmente existindo no lugar que não deveriam existir (segundo os nossos conceitos). Por fim, também há os que, por nosso interesse, foram colocados compulsoriamente na nossa convivência e mantidos assim sob a força das grades, do cativeiro.
Em resumo, todos esses animais impactados se tornam um incômodo, já que são legalmente protegidos e não podem ser simplesmente abandonados. E a pergunta inevitável: o que faremos com eles? Quem cuida e com que alimento? Como se faz isso? E o mais importante: e depois de alimentado e tratado, o que vai ser feito dele?
Diante destes problemas e questionamentos, os Cetas surgem. Não como simples depósitos de animais silvestres, pois existe uma presunção de transitoriedade da dependência desses animais em relação a nós. Os centros de triagem também não são como simples transportadores ou manejadores de um local para outro, pois também é muito comum que tais animais requeiram certos cuidados após entrarem em conflito conosco. Então, os Cetas são instituições de manejo e proteção de fauna, sempre tentando ficar nesse meio termo, operando na busca pelo cuidado correto, necessário e dado na medida certa. E ainda na procura pela destinação mais correta e célere daqueles animais, para que possam continuar dando a sua contribuição para a teia de relações ecológicas.
Mas qual é o tamanho e a dimensão dos problemas ocasionados por estes conflitos? São os Cetas totalmente suficientes para cumprirem sua função em minimizá-los?
Como ponto de reflexão desses questionamentos, lembremo-nos das estimativas do tráfico de animais silvestres, da crescente perda de habitat causada pelos usos destrutivos dos ambientes naturais (solo, água, floresta, etc.) e da imensa motivação cultural que mantém muitos animais em cativeiro ilegal. Todos esses são fatores geradores de aporte de animais para os Cetas.
E, além de serem muitos, também devemos nos lembrar dos enormes desafios encontrados na definição dos caminhos mais adequados na prática de tratar, reabilitar e destinar esses animais. Infelizmente, muitas vezes nos deparamos com danos irreparáveis nos indivíduos, baixas dessa guerra.
Sob o ponto de vista quantitativo, é lógico e indiscutível que os Cetas são poucos diante da totalidade do problema.
Contudo, os Cetas são os ambientes mais adequados e privilegiados para a realização de ações qualitativamente eficazes tanto na proteção e recuperação de indivíduos, quanto na proteção das espécies, especialmente aquelas mais impactadas por nós seres humanos. Assim, como nos ambientes hospitalares, locais onde as batalhas pela vida são travadas e muitos dos avanços médicos conquistados, nos Cetas podemos desenvolver práticas e técnicas eficazes de manejo de fauna com resultados positivos de proteção de espécies ameaçadas, já que estamos literalmente com a obrigação da resolução dos problemas e conflitos a nós apresentados.
De qualquer forma, essas instituições cuja função primordial é receber animais silvestres, tratá-los e destiná-los, comumente designados de Cetas, Cras ou por outros nomes ou siglas, se tornam instituições obrigatórias e imprescindíveis, pois esta é a forma mais adequada de relaxamentos das tensões e amortecimento de danos à fauna silvestre.
E os Cetas já vem cumprindo este papel. Só os administrados pelo Ibama no Brasil receberam, em 2018, aproximadamente 65 mil animais. Todos esses animais e muito outros, já que existem aquelas instituições privadas, municipais e estaduais, foram livres do tráfico ou tiveram a chance de receberem tratamento minimamente adequado e tiveram a chance de voltarem ao local de onde nunca deveriam ter saído, das matas, campos e ambiente naturais do nosso país.