
Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena (SP)
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A constituição brasileira expressa no seu artigo 225° o direito de todos terem o meio ambiente ecologicamente equilibrado. É desnecessário dizer que esse direito só é respeitado quando todos os atores integrantes desse ambiente possam executar seus papéis na complexa teia ecológica.
Quando um animal é caçado, morto ou capturado, é retirado do seu ambiente e não pode cumprir seu papel ecológico. Mesmo que permaneça vivo, estará morto ambientalmente.
Contudo, sob os pontos de vista biológico e ambiental, devolvê-lo para a liberdade é uma maneira de reverter sua morte ecológica e, dessa forma, o devolvendo para a vida; para que possa cumprir seu script ecológico.
Essa questão pode suscitar discussões mais alongadas, mas da forma que apresentamos já é suficiente para ilustrar o quanto os Cetas e os Cras são importantes como ferramentas de conservação de fauna e o quanto se colocam como instrumentos úteis na garantia dos direitos da nossa sociedade.
E quando tratamos de uma espécie, um táxom básico, que traz em si escrito um genoma moldado pelo longo trabalho da evolução e que se esvai muitas vezes por nossa culpa como sociedade humana? Proteger espécies é sempre o trabalho de todas as pessoas. Dever moral e ético, além de legal, é também tarefa de ofício para o os órgão ambientais.
Das inúmeras espécies ameaçadas de extinção, citamos nesta nossa reflexão a do bicudo (Sporophila maximiliani Cabanis, 1851). Ave canora, territorialista, que tem sua ocorrência histórica em grande parte do território brasileiro. Contudo, infelizmente, foi levada a um declínio populacional alarmante e significativo principalmente pela prática de caça. O bicudo consta da lista oficial brasileira como "criticamente ameaçada" de extinção (portaria Ministério do Meio Ambiente n° 444/2014, anexo I). De fato, no Brasil é muito mais fácil encontrar aves dessa espécie em uma gaiola do que em vida livre.
O que pode ser feito, então, diante do risco de morte ambiental dessa espécie?
Uma parceria entre o Instituto Boitatá (instituição do terceiro setor de Goiás), o Cetas do Ibama de Goiás, a Universidade Federal de Goiás (UFG) e a Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) desenvolveu o Projeto: “Marcadores Genéticos como subsídio para a reintrodução de Sporophila maximiliani na região de Cerrado no estado de Goiás”, ou Projeto Bicudos do Cerrado, como uma tentativa de dar uma resposta a esta enorme contradição. O projeto foi submetido e teve apoio e financiamento da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.
Como um dos integrantes desse projeto, o Cetas do Ibama de Goiás desenvolve a corajosa proposta de estabelecer ações de manejo que permitirão ao bicudos serem colocados em liberdade em seus ambientes adequados. E, o mais importante, que poderão realizar aquele papel ecológico fundamental para a espécie, que é de deixarem descendentes com capacidade de ocuparem os territórios e reestabelecerem populações naturais viáveis em áreas historicamente ocupadas.
No início, a tarefa não tão difícil é encontrar os espécimes que farão parte do projeto. Como foi dito, muitos bicudos são mantidos em cativeiro de forma legal e ilegal. É natural que muitos sejam recebidos e tratados nos centros de triagem do país afora. Assim, foram reunidas as aves que estavam no Cetas do Ibama em Goiás, com o acréscimo inicial de espécimes cedidos por criadores amadoristas parceiros do projeto, formando um lote. Como pressuposto, é imprescindível avaliar a situação clínica, sanitária e comportamental dos animais.
Outro ponto importante a se considerar é a condição genética dos animais que compõem o lote. Esses espécimes são muito ou pouco aparentados geneticamente? A resposta a essa pergunta é de vital importância para a avaliação do sucesso do projeto, já que a similitude genética pode comprometer a viabilidade reprodutiva da descendência em vida livre.
Nesse ponto, a parceria com o Departamento de Genética da Universidade Federal de Goiás é extremamente importante. Essa instituição realiza testes genéticos capazes de avaliar o grau de similaridade genética entre os indivíduos do lote.
Em sequência, com os dados genéticos, clínicos e sanitários, já se pode estabelecer os próximos passos. Colocar esses animais saudáveis para que se preparem para a vida em liberdade, através de alimentação e ambientação corretas que aumentem suas chances de sobrevivência em vida livre. Também de vital importância, já que queremos que esses colonos bicudos floresçam em uma população mais saudável possível, é colocar machos e fêmeas o mais geneticamente diferentes para que naturalmente se pareiem ainda na fase de preparação para a soltura.
Finalmente, após essa etapa de reabilitação, basta escolher locais adequados à espécie, com segurança presumida contra recaptura. Isto feito, é preciso levar esses animais a esses locais e apresentá-los à liberdade através de técnicas de soltura branda.
Contudo, ainda faltará o monitoramento do sucesso da soltura, que trará dados de avaliação e possíveis, se necessárias, correções aos procedimentos técnicos.
Espera-se, no entanto, que o monitoramento ou a simples constatação informal, no futuro, nos apresente novamente essas magníficas aves em seus ambientes naturais, com sua liberdade respeitada para, em troca, contribuir conosco com o nosso direito a um meio ambiente saudável e equilibrado.