Por Eveline Teixeira Baptistella
Jornalista, mestra e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Mato Grosso. É professora do curso de Jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso, integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação, Cultura e Sociedade e coordenadora do Projeto de Pesquisa Estudos Animais e Mídia, ambos na mesma instituição
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Estamos vivendo um evento massivo de auto domesticação – provavelmente, o maior da História. A cada dia, mais e mais animais silvestres estão se tornando tolerantes à presença humana e se adaptando a ambientes antrópicos. Eles estão reformando suas culturas e comportamentos numa tentativa de sobreviver a um mundo francamente hostil a formas de vida não humanas. Desmatamento, expansão imobiliária, aterramento de nascentes, incêndios, secas… São muitos os fatores que empurram esses animais para as cidades e, consequentemente, para o convívio mais próximo de nós.
No início da década passada, quando comecei a investigar as relações entre espécies na sociedade contemporânea, encontrei animais que classifiquei como “silvestres urbanos”. Em meio ao concreto, avenidas e grandes prédios, descobri araras-canindé, capivaras, jacarés-do-Pantanal, jacarés-paguá, jiboias, tuiuiús, variedades de símios e até mesmo tamanduás. A despeito de alguns tratarem o fenômeno de maneira otimista, cunhando termos como “renascença da vida selvagem urbana”, esses animais podem muito bem ser classificados como refugiados ambientais. É um processo global e a mídia nos traz relatos frequentes dele. São ursos famintos se alimentando de lixo em cidades russas, onças-pardas trafegando em bairros residenciais do interior do Rio de Janeiro e veados que invadem casas nos Estados Unidos. Para além das notícias, temos os vídeos virais. As imagens de um tamanduá-bandeira tentando entrar na área de um grande shopping em Cuiabá, capital de Mato Grosso, por exemplo, correram o país inteiro. Assim como as cenas de um jacaré ou de capivaras cruzando as ruas na região do Centro Político-Administrativo da mesma cidade.
Seja na imprensa seja nas redes sociais, tais situações costumam ser tratadas como meras curiosidades. Analisando espaços como o Instagram e o Facebook, identifiquei a tendência de ostentar a convivência com as espécies silvestres nas áreas urbanas. A proximidade com esses animais é comumente tratada como uma relação harmônica. Sobre o sofrimento ao qual esses indivíduos estão submetidos, não se encontra quase nenhuma palavra. Provavelmente, um dos casos que mais me chamou atenção, enquanto escrevia o livro Animais e Fronteiras – Um estudo sobre as relações entre animais humanos e não humanos, foi justamente o do casal de tucanuçus que fez morada na caixa d´água de um prédio público. Durante as observações, constatei que o macho brigava constantemente com a própria imagem refletida nos vidros. Muitos passantes no local adoravam tirar fotos e fazer vídeos dos episódios. Eles se divertiam contemplando (e postando) a situação, que, claramente, era de sofrimento psíquico para a ave.
A vulnerabilidade desses animais também é inegável. Em agosto deste ano, um jacaré foi encontrado morto com a cabeça esmagada no Parque das Águas, em Cuiabá. No Instagram, o post da prefeitura sobre o caso traz a imagem de um jacaré com um halo dourado, em meio a nuvens, com a frase “vá em paz”. O texto que acompanha a arte menciona que os animais que vivem no local são simpáticos: “… sempre tirando fotos com os visitantes e se portando de forma pacífica”. Em outubro, foi a vez da imprensa divulgar imagens de um casal de capivaras mortas numa avenida de tráfego intenso na capital de Mato Grosso. A fêmea estava em trabalho de parto e as fotos mostravam metade do filhote para fora do corpo da mãe. Um levantamento sobre as reportagens acerca dos dois fatos mostrou que não há nenhuma consideração sobre os fatores que levaram os animais a viver em tal condição e muito menos sobre os riscos a que estão sujeitos cotidianamente.
Diante dos problemas ambientais que se avolumam no Brasil, é de se esperar que a presença de animais silvestres em zonas urbanizadas cresça cada vez mais. Pensar em cidades (e humanos) verdadeiramente aptos para esse convívio é um desafio premente. Apesar de o senso comum confinar as demais espécies no domínio das Ciências Naturais, essa reflexão também passa pelas Ciências Sociais. Mais do que transformações em estruturas físicas, esse cenário envolve mudanças culturais. Ao considerarmos os outros animais como indivíduos dotados de personalidade, direitos e interesse à vida, é preciso questionar também nossos rumos enquanto coletividade multiespécies. Se devemos algo a eles é o direito de expressarem seu comportamento natural, preferencialmente vivendo em seus habitat de origem. Mas enquanto a sociedade não decide dar uma guinada (se é que algum dia isso irá acontecer), é preciso pensar em estratégias para garantir um mínimo de dignidade para esses animais.
No curso de Jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso, o projeto Animais e Mídia se dedica a refletir sobre essa questão pela via da comunicação. Propomos a inserção dos animais não humanos na esfera ética da mídia, especialmente porque sabemos que os diferentes meios de comunicação jornalísticos detêm influência sobre a percepção pública acerca da realidade social. Em tempos de democratização da produção de conteúdo, a imprensa precisa se tornar um espaço para rebater os discursos que romantizam ou fazem piadas sobre a situação das espécies que estão fazendo morada em grandes cidades. Longe de ser uma curiosidade, essa condição é fruto de um desequilíbrio ecológico profundo, que precisa ser questionado em diferentes âmbitos da cobertura jornalística. Ao levar em conta também os interesses das outras espécies, notícias e reportagens podem contribuir para um futuro com mais justiça para os animais não humanos.
Estaríamos imersos em tal crise ecológica se, no passado, tivéssemos olhado para os outros animais em toda sua complexidade e não como objetos de dominação? A experiência da pioneira Rachel Carson nos sugere que muitos dos nossos problemas ambientais não teriam tal dimensão se tivéssemos prestado atenção naquilo que os animais não humanos vêm nos dizendo dia após dia. Por incrível que pareça, os humanos, sempre preocupados consigo, seriam os maiores beneficiados por um caminho de respeito entre espécies. Temos um futuro preocupante – com muito mais perguntas do que respostas à vista. Formular modos de convivência menos assimétricos é uma tarefa da qual devemos nos ocupar já. A consolidação de uma imprensa crítica e reflexiva, que ouça também a voz dos animais não humanos, pode ser o primeiro passo que precisamos.
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