Projeto com pontes sobre rodovias para espécies arborícolas está em expansão

Rodovias e estradas são o principal sistema logístico no Brasil, país que possui a quarta maior malha rodoviária do mundo, com aproximadamente 1,7 milhão de quilômetros, e em constante ampliação. Apesar dos benefícios socioeconômicos, como facilitar o deslocamento de pessoas e o escoamento de produção, inúmeros animais são vítimas de atropelamento.

Colisões veiculares contra a fauna são um problema crônico das rodovias, sendo necessária aplicação de medidas para reduzir ou evitar tais acidentes.

Observando o comportamento de espécies que são mais impactadas pela implantação de uma estrada, a bióloga Fernanda Abra, que atua com Ecologia de Estradas há mais de 15 anos, verificou que animais arborícolas, ou seja, que vivem majoritariamente nas copas das árvores, sofriam muito com o efeito barreira criado pela construção de uma estrada.

Pensando em reduzir esse impacto, Fernanda idealizou o projeto Reconecta. A iniciativa inicialmente se consistiu na instalação de 30 passagens de dossel na BR-174, rodovia federal que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR), em plena Amazônia, com o intuito de minimizar o efeito barreira, restaurando a conectividade da floresta cortada pela rodovia – confira detalhes em reportagem publicada em 2022. Atualmente, a iniciativa também acontece em Alta Floresta (MT) e no Suriname.

O Fauna News entrevistou Fernanda, que contou sobre os resultados obtidos até o momento.

Fauna News – Como surgiu o Reconecta?

Fernanda Abra – A ideia surgiu, mais ou menos, em 2019, quando ganhei o prêmio do Future for Nature, na Holanda. Com o recurso do prêmio, implementei o projeto de mitigação totalmente aplicado, nada teórico, para salvar o maior número de indivíduos possível dos atropelamentos. Na mesma época, percebi que, no Brasil, a exemplo de outros países do mundo, nos preocupamos muito mais com fauna terrestre do que fauna arborícola, especialmente porque somos mais expostos a ver o impacto para fauna terrestre do que para fauna arborícola. Além do que, é um problema mensurável, crônico, contabilizado.

Para a fauna arborícola também existe o impacto, porém diferente. O efeito barreira de uma estrada para a fauna arborícola, muitas vezes, se dá com o animal perdendo o interesse ou não tendo condições de atravessar a infraestrutura linear, gerando um problema de conectividade, levando a um isolamento, sendo um grande prejuízo para a conservação de espécies. Então, a iniciativa surgiu dessa ânsia de realizar um projeto de mitigação com pontes artificiais de dossel em escala.

No Brasil, já existiam algumas iniciativas mais tímidas, em pequena escala, com pontes simples, muitas vezes não obedecendo a especificação técnica de materiais para ambiente rodoviário. Inicialmente, estamos trabalhando com pontes artificiais industriais com modelo de baixo custo e vamos evoluindo. Esperamos que esse modelo seja altamente replicado em diversas rodovias do país, principalmente por termos como parceiro o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).

Fauna News – O projeto Reconecta tem foco em alguma espécie em específico?

Fernanda Abra – Inicialmente, nosso foco é em espécies arborícolas, principalmente mamíferos como o ouriço-cacheiro, marsupiais, roedores, tamanduás, bicho-preguiça, primatas, inclusive irara que já registramos utilizando a ponte. O projeto acaba destacando um pouco mais os primatas, que são extremamente ameaçados no Brasil. Pelo menos 40% de todas as espécies de primatas estão com algum grau de ameaça de extinção.

Fauna News – Em 2022, quando o Fauna News publicou uma reportagem sobre um estudo que mapeou áreas com estradas e ferrovias de maior risco para primatas, e o Brasil apareceu no topo do ranking e você estava começando a trabalhar na rodovia BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR), no interior da Terra Indígena Waimiri-Atroari. Era o primeiro passo do Reconecta. Quais foram os resultados desse esforço?

Fernanda Abra – Em 2022, estávamos começando a implementar as pontes de dossel juntamente com a comunidade indígena Waimiri-Atroari, iniciando também a parceria com o DNIT e, mais tarde, a parceria com o Ibama. A comunidade indígena Waimiri-Atroari permanece extremamente engajada no projeto e foi daí que nasceu a ideia de construção das pontes industriais que fossem replicáveis.

Atualmente estou escrevendo o guia técnico de pontes de dossel usado no Reconecta, que passa a ser o modelo-base do DNIT, para ser replicado em rodovias federais pelo país. Estou muito feliz, porque acredito que estamos fazendo um bom trabalho, desde a seleção dos melhores materiais, escolha dos designs, o quão adaptadas são nossas pontes para diferentes tipos de anatomia de d=locomoção dos animais. Além da facilidade de serem pontes de baixo custo, portanto, uma solução replicável. Em termos de monitoramento, as 32 pontes de dossel já registraram mais de 800 travessias seguras da fauna arborícola regional, com destaque ao domínio de travessias do sauim-de-mão-dourada (Saguinus midas), que é um primata de alto valor cultural e espiritual para a comunidade indígena Waimiri-Atroari.

Fauna News – Com este trabalho na Amazônia você ganhou o prêmio Whitley, da organização britânica Whitley Fund for Nature (WFN). Esse reconhecimento e as 50 mil libras esterlinas recebidas estão lhe permitindo expandir o Reconecta? Seria o caso de Alta Floresta (MT) e do Suriname?

Fernanda Abra – O recurso do Suriname vem de um fundo internacional da Holanda, em parceria com uma organização do Suriname. Já o recurso da Whitley está sendo aplicado em Alta Floresta. Já foram instaladas sete pontes em Alta Floresta e, agora em 2025, vamos instalar mais seis. A ideia é ampliar o projeto para outros municípios do Mato Grosso, para uma rodovia federal do Mato Grosso do Sul, expandindo para o Pantanal e, se tudo correr bem, chegaremos na Mata Atlântica.

Fauna News – Como está o desenvolvimento dos trabalhos em cada um destes locais?

Fernanda Abra – Na BR-174, finalizamos a etapa de monitoramento de fauna atropelada e obtivemos dados riquíssimos sobre esse estudo lá, inclusive fazendo análise genética de 900 indivíduos diferentes para conformação de espécies. Seguimos o monitoramento das pontes artificiais de dossel, fizemos o monitoramento de mais de 20 pontos naturais de dossel, além de todo o desenvolvimento de atividades com o engajamento dos Waimiri-Atroari, realizamos também teste de remoção de carcaça. Desse projeto surgiu, então, esse guia técnico de pontes de dossel que está sendo produzido.

Em Alta Floresta está acontecendo a instalação de pontes de dossel junto com a comunidade. Participamos, também, de um circuito de educação ambiental no município junto com a Prefeitura e diversos parceiros. Estamos inseridos em uma iniciativa municipal, a “Alta Floresta não atropela”, em que alcançamos mais de 1.200 crianças. Já realizamos, também, o monitoramento de alguns pontos e, em breve, vamos começar com a parte genética.

Já no Suriname, fizemos pela primeira vez o diagnóstico de fauna atropelada nas três rodovias que existem no país. A ideia é, com os resultados desse diagnóstico, desenvolver um plano de mitigação para as três rodovias e, em uma segunda etapa, implementar essas medidas, especialmente com as pontes artificiais de dossel.

Fauna News – Os modelos de pontes testados na Terra Indígena Waimiri-Atroari acabaram gerando um padrão ou padrões a serem aplicados em outros trabalhos ou sempre há a necessidade de adaptações para as realidades e as espécies locais?

Fernanda Abra – Isso mesmo, nossas pontes na BR-174 foram um experimento para saber qual era a preferência de diferentes espécies, baseado no tipo locomotor de cada uma em relação às pontes que estávamos oferecendo. Foi uma ciência básica que resultou em informações muito interessantes para nós. A partir da instalação na BR-174, criamos nosso modelo padrão de pontes, que é o novo modelo que está sendo instalado no Reconecta Alta Floresta. Claro que espero que consigamos aperfeiçoá-lo e criar novos modelos.

 Fauna News – Qual o futuro do projeto Reconecta?

Fernanda Abra – Nosso sonho é continuar fazendo esse trabalho, especialmente com as pontes de dossel, e expandir o quanto a gente puder para outras rodovias federais e estaduais ou até mesmo para viários urbanos, como é o caso de Alta Floresta. Temos um horizonte muito bacana de começar a trabalhar em outros biomas do Brasil. Lembrando que a gente tem exportado até algum conhecimento para outros países, apoiando outros especialistas do Suriname e do Nepal. Compartilhamos também muitas informações com o pessoal da Costa Rica. Em breve, teremos algumas publicações técnicas e científicas com esses dados do Reconecta que temos coletado e que são muito ricos.