Por Igor Morais
Biólogo e mestre em Zoologia. Desde 2007, trabalha com zoológicos brasileiros. É gerente de Projetos Educacionais do Zoológico de Brasília
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Alguns dos melhores e piores momentos da minha vida aconteceram em zoológicos. Por exemplo, foi no Cincinnati Zoo, nos Estados Unidos, onde tive a sorte de interagir com um rinoceronte-de-Sumatra, o grande mamífero terrestre mais ameaçado da Terra, e foi no Zoo Frankfurt, na Alemanha, onde senti a textura das penas de um kiwi, uma ave que não voa e é endêmica da Nova Zelândia. Ou seja, não é encontrada em nenhum outro lugar do mundo. Mas foi também em um zoológico que vi um tigre-siberiano ser trancafiado para passar a noite num cubículo imundo, repleto de lama e larvas nas paredes. Foi em um zoológico onde testemunhei, chocado e enojado, um diretor gastar parte do orçamento anual para manter um restaurante particular, com intuito de servir seu alto escalão, enquanto os grandes mamíferos da instituição são mantidos em alguns dos piores recintos para suas espécies no Brasil. Seria isso uma contradição?
Contraditório é uma palavra que define bem 99% dos zoológicos brasileiros, mas, acredito, não a instituição como um todo no mundo atualmente. Digo isso porque, no momento em que escrevo, já tive a experiência de visitar 78 zoos e aquários em sete países. De fato, comecei minha carreira na biologia nesse tipo de instituição, com um estágio que durou um ano no zoológico da minha cidade natal. Aprendi muito naquele local, tanto para o bem quanto, principalmente, para o mal, sobre como não fazer as coisas. Caso não tivesse um conhecimento prévio sobre zoos e o potencial que essas instituições têm para educar, executar pesquisas e conservar espécies, é muito provável que eu tivesse parado ali.
Mas não parei e ainda tentei, ao longo de nove anos, mudar a situação daquele zoológico em particular. Conversei com jornalistas, participei de audiências no Ministério Público e até procurei a Associação de Zoológicos e Aquários do Brasil. Mesmo com tanta gente e entidades envolvidas, nada disso adiantou e o zoo, assim como muitos no país, permanece sendo uma referência de tudo que um zoológico não deve ser no século 21. Você pode estar se perguntando sobre porque os zoos brasileiros têm tantos problemas ou mesmo porque precisamos dos zoológicos hoje.
Certa vez, durante uma palestra, um colega cunhou o termo “zoominion” para definir as pessoas que defendem os zoológicos sobre quaisquer circunstâncias, que acreditam que sempre sabem o que estão fazendo e/ou que seus profissionais sempre se preocupam com os animais sob seus cuidados. Confesso que eu já fui assim. Eu achava que todos os profissionais nessa área eram dedicados à Ciência, conservação e ao bem-estar animal. Mas quanto mais vi e mais conheci o zoo brasileiro, mais preocupado fiquei.
E como haveria de não ficar? A maioria dos diretores ou tomadores de decisão nos zoológicos brasileiros não têm ou têm um conhecimento muito superficial sobre comportamento animal, conservação ou mesmo gestão das instituições. Muitos simplesmente caíram de paraquedas no cargo, porque são amigos ou “puxaram o saco” de alguém. São os famosos – e tão comuns no Brasil – cargos comissionados, que mantêm ou mantiveram como diretores de zoológico no país advogados, engenheiros, policiais militares e até analfabetos. Tudo por causa da indicação e proteção política de um deputado, prefeito ou governador, que, geral e infelizmente, não possui comprometimento com as instituições sob sua responsabilidade. Algo que impacta de forma direta os zoos no Brasil, pois cerca de 80% deles são de administração governamental.
Isso levou muitas pessoas a defenderem que a saída para a continuidade dos zoológicos brasileiros é a concessão público-privada. Em outras palavras, ceder essas instituições, mediante um pagamento, para a gestão de uma empresa. Boa ideia, não acham? Afinal, costumamos ouvir no Brasil que tudo sempre é melhor quando se administra como uma empresa. Só que há um problema: o zoológico, em sua concepção ou conceito moderno, não costuma gerar o lucro que uma empresa espera ou deseja. Os frutos ou produtos de um zoo moderno sequer são sentidos ou vistos a nível imediato. São algo para o futuro. Seus resultados só se tornam evidentes depois de décadas. Por exemplo, levou 18 anos entre o início do programa de conservação em cativeiro do órix-árabe (Oryx leucoryx) e a reintrodução dessa espécie no seu ambiente natural. E há um outro detalhe importante nessa história. Esse programa, um dos mais bem-sucedidos na integração zoológico-natureza, foi conduzido por instituições sem fins lucrativos.
O modelo de gestão do zoológico sem fins lucrativos não é algo novo. Seu início está na Inglaterra e no século 19, com a fundação da Sociedade Zoológica de Londres em 1826. Foi ela que, dois anos depois, fundou o primeiro zoo científico do mundo na mesma cidade. Isso levou o Zoológico de Londres a desenvolver não apenas algumas das primeiras pesquisas sobre anatomia e fisiologia de animais selvagens, mas igualmente alguns dos primeiros programas de conservação em cativeiro. De fato, foi Londres que coordenou o projeto que permitiu ao cervo-do-padre-David (Elaphurus davidianus) retornar à natureza em 1985. Todas essas atividades são custeadas por meio de doações, patrocínios, convênios, produtos, anuidades de associados e ingressos há 195 anos. Uma situação que só é possível devido à respeitabilidade gerada como instituição científica, que inclusive publica o periódico International Zoo Yearbook.
Por que não adotamos o mesmo modelo no Brasil? Infelizmente, existe um empecilho legal para tal. Segundo a legislação vigente, os zoológicos aqui no país só podem ser geridos como instituições com fins lucrativos. Algo que colegas norte-americanos consideram incompreensível, já que museus, orquestras e diversas outras atividades culturais possuem incentivos tanto por parte da lei quanto do governo. A solução, você deve estar pensando, é mudar a legislação. Só que isto não é fácil e requer representatividade política. É nesse ponto que a Associação de Zoológicos e Aquários do Brasil (AZAB), uma organização não-governamental fundada em 1977, deveria entrar. No entanto, devemos lembrar que, por mais magníficos que sejam, onças, harpias e sucuris não votam. Não são capazes de eleger representantes que defendam suas causas como nós. Ou seja, a reivindicação por qualquer mudança legal em prol de zoos dedicados à conservação, pesquisa e educação tem que partir da opinião pública e as pessoas só defendem aquilo que conhecem. Será que você, leitor deste artigo, já ouviu falar da AZAB? Caso sua resposta seja negativa, terá meu perdão.
Uma pesquisa que estou coordenando demonstra que, em um universo amostral superior a 1.000 pessoas, 66,7% sequer sabem da existência da Associação de Zoológicos e Aquários do Brasil. Esses dados estão sendo coletados nas cinco regiões do país. O resumo dessa ópera é uma organização com pouco ou nenhum poder político, incapaz de motivar ou conduzir melhorias relacionadas aos animais, ao conceito de zoo moderno ou mesmo à conservação como um todo no Brasil. Um exemplo disso é o Acordo de Cooperação Técnica assinado entre a AZAB e o Ministério do Meio Ambiente no ano de 2018 para o manejo em cativeiro de 25 espécies brasileiras ameaçadas de extinção. Uma grande vitória, segundo a organização. No entanto, a maioria desses programas de conservação existe apenas no papel porque muitos dos zoológicos participantes ainda não possuem uma filosofia conservacionista e de compartilhamento das informações. Não raro, as instituições se recusam a seguir as recomendações dos programas para transferir os animais por questões de pareamento e reprodução.
Lembro que, em determinada ocasião, conversei com um grande amigo e colega sobre com quantos profissionais poderíamos ter um diálogo a respeito da concepção moderna de zoológico aqui no país. Nossa contagem não chegou a 15. Em uma nação com 128 zoos e aquários, tal resultado é, no mínimo, preocupante.
Cenário diferente encontramos nas associações norte-americana (AZA) e europeia (EAZA) de zoos e aquários. Fundadas em 1924 e 1992, respectivamente, essas organizações reúnem quase todas as melhores instituições de seu tipo no mundo e possuem poder político tanto para reivindicar melhorias quanto para combater ameaças à natureza e aos animais. Por exemplo, a AZA conduziu um forte lobby contra os retrocessos na proteção ambiental nos Estados Unidos durante o governo de Donald Trump. Isso incluiu até o apoio a greves e paralisações de servidores públicos, fornecendo descontos ou isenções para eles nas entradas das instituições-membro. Alguém aí viu a AZAB fazer o mesmo ou similar contra o desmonte da legislação e órgãos ambientais que o Brasil enfrenta atualmente? Pelo contrário, ela levou inacreditáveis três meses para fazer um único pronunciamento a respeito das queimadas no Pantanal.
Eu acreditava no futuro do zoológico brasileiro quando era um “zoominion”. Acreditava que essas instituições se dedicavam à conservação e ao bem-estar animal e iriam melhorar. Contudo, após 15 anos nessa área, considero o oposto. Sabe quantos zoos modernos temos no país até o presente momento, janeiro de 2022? Somente um, o Parque das Aves. Localizado em Foz do Iguaçu, no Paraná, esse zoológico se diferencia dos demais brasileiros pela sua filosofia direcionada para a conservação de espécies da Mata Atlântica e tendência inovadora na infraestrutura de seus recintos. A razão para isso, talvez, esteja na sua origem. O Parque das Aves foi fundado por um britânico e uma veterinária alemã, cuja família permanece administrando a instituição. Acredito que, dentro de 30 anos, eles serão o único zoológico a existir no Brasil. Os demais terão fechado ou sido fechados de uma forma ou de outra.
O zoo brasileiro está morto. Apenas seu cadáver permanece insepulto. Rotineiramente, recebo mensagens de colegas desestimulados ou oprimidos por um sistema que não valoriza a capacitação e o conhecimento. Tento encontrar palavras para incentivá-los, mas, sinceramente, não consigo. Eu não tenho como contra-argumentar com muitas pessoas “anti-zoos” diante da realidade brasileira. Elas estão certas e os zoológicos brasileiros estariam acabados caso essas pessoas fossem mais inteligentes ou informadas. O que digo hoje para os estudantes ou qualquer colega que deseje seguir na área dos zoos é o seguinte: leia bastante livros, artigos e revistas. Aprenda um outro idioma. Tente fazer as malas e ver o mundo. Saia da caverna de ignorância e mesmices na qual os zoológicos brasileiros se enfiaram. Conheça o trabalho das instituições da AZA e EAZA, por exemplo. Você verá que existe um mundo de instituições e profissionais dedicados à conservação, aos animais e a fazer desse planeta um lugar melhor.
O último que sair do Brasil que apague a luz.
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Igor Morais é biólogo pela Universidade Federal de Pernambuco e mestre em Zoologia pela Universidade Estadual de Santa Cruz, com parte da dissertação desenvolvida no National Marine Mammal Lab (EUA). É especializado em comportamento animal e ecologia de populações. Desde 2007, trabalha com zoológicos brasileiros para promover reformas em prol do bem-estar animal e organizar programas de manejo populacional. Seu trabalho inclui o primeiro levantamento da população ex situ (em cativeiro) de elefantes-africanos, girafas e rinocerontes-brancos-do-sul no país. Igor também foi membro do Comitê de Bem-Estar Animal (2013-2020) e studbook keeper para o cachorro-vinagre e a ariranha (2018-2020) na Associação de Zoológicos e Aquários do Brasil. Ele publicou artigos científicos sobre os impactos antropogênicos nos cetáceos na costa brasileira e é um dos autores do plano de populações do Zoológico de Brasília, onde foi assessor de Conservação e Pesquisa Aplicada (2016-2018) e hoje trabalha como gerente de Projetos Educacionais. Sua atuação nos zoos brasileiros também inclui a tradução das estratégias de conservação e bem-estar animal da World Association of Zoos and Aquariums e dos livros O Professor no Zoológico e Além do Bem-Estar Animal, ambos do Dr. Terry Maple, para o português. Recebeu o Prêmio Robin Best da Sociedade Latino-Americana de Especialistas em Mamíferos Aquáticos (2014) e a bolsa Memorial Devra Kleiman para Conservação da Vida Selvagem do Zoo Conservation Outreach Group (2018).
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