Por Thiago Mariani
Biólogo e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da Universidade Federal de Viçosa e colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional. Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira.
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Renovada do ano novo, a coluna Túnel do Tempo retorna com um assunto que muitas pessoas já podem ter se perguntado. Este mês abordaremos o passado da Mata Atlântica e o que ele tem a ver com a rica biodiversidade existente nesse bioma atualmente.
Muita gente sabe que a Mata Atlântica é um bioma com uma rica biodiversidade, equiparada e, às vezes, considerada maior do que à da Amazônia em muitos aspectos. Ela se estendeu por grande parte do litoral brasileiro, desde o nordeste até o Uruguai, pegando áreas tão internas quanto o leste do Paraguai e nordeste da Argentina. Também sabemos que foi o primeiro bioma a ser destruído pelos colonizadores, atividade que ainda acontece, tanto que nem 10% da área original permanece de pé.
Mesmo com tamanha destruição, muito é conhecido sobre a biodiversidade do bioma a partir das áreas remanescentes. A Mata Atlântica é tão diversa que é conhecida com um hotspot de biodiversidade, o que significa um “ponto quente” para o conhecimento das espécies existentes e para a descobertas de novas espécies. E é um dos biomas com prioridade de conservação e recuperação, dentre várias regiões do mundo, por órgãos e instituições internacionais. Mas por que a biodiversidade da Mata Atlântica é tão grande?
Para responder isso, é necessário retornar ao passado e conhecer mais a história da região dos últimos milênios – em alguns casos, vários milênios mesmo! Essa história é complexa e não é somente sobre as florestas, mas também sobre a formação das montanhas e as variações climáticas que afetaram regimes de chuva, temperatura e nível do mar.
Uma das hipóteses mais conhecidas é a teoria dos Refúgios. Durante a época do Pleistoceno (entre 2,5 milhões e 11,7 mil anos atrás), houve muitas variações de temperatura no planeta, com períodos frios em que o nível do mar baixava e períodos quentes em que o nível do mar aumentava. Nessa época, os biomas brasileiros já existiam e a floresta atlântica seguia o ritmo climático do momento. Essa teoria prediz que, quando a Terra esfriava – também chamados de períodos glaciais porque as áreas congeladas aumentavam nos polos –, as áreas de florestas retraíam e biomas mais abertos, como o Cerrado, se expandiam, rodeando as “ilhas” de florestas formadas, que não estavam conectadas a outras áreas de mesmo bioma.
Com esse isolamento geográfico, alguns grupos animais tiveram suas populações separadas e, como consequência, dado o tempo necessário (alguns milhares de anos de isolamento), espécies surgiram dentro de cada reduto florestal.
Ao passo que nas épocas quentes – os períodos interglaciais –, o contrário acontecia: as florestas se expandiam e as áreas abertas recuavam. Com isso, as ilhas de florestas se conectavam e as espécies aumentavam a sua distribuição. Na medida em que climas frios e quentes foram se alternando ao longo de milhares de anos, várias espécies foram surgindo (lembrando que inúmeras outras também foram extintas!), muitas das quais culminaram nas espécies conhecidas – e desconhecidas – atualmente.
Existe também a hipótese dos efeitos tectônicos na costa brasileira, que causaram alguma fragmentação de áreas e levaram a consequências climáticas em níveis regionais. Uma delas é a elevação da serra do Mar, um conjunto de montanhas que passa pela costa brasileira desde o Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro. Com a elevação dessas montanhas, houve uma redução da precipitação na parte mais interna, continental, enquanto o litoral ficou bastante úmido, porque os ventos marítimos paravam nas montanhas e a chuva caía ali.
Além dos efeitos sobre o clima, as serras também podem causar isolamento geográfico, tornando mais difícil que algumas espécies cruzem as regiões elevadas, onde as condições climáticas, como temperatura, são diferentes das que elas estão adaptadas. O tectonismo também pode afetar as bacias hidrográficas, como já vimos aqui quando tratamos da evolução da bacia Amazônica no Mioceno.
Há também a hipótese que tem a ver com o efeito dos grandes rios da Mata Atlântica na distribuição das espécies, na qual eles servem de barreiras para espécies de alguns grupos. Assim, os rios impedem que populações de uma espécie se cruzem entre si e, com o tempo, cada população pode virar uma espécie diferente.
Na floresta Atlântica, consideram-se quatro rios como os principais atores nessa hipótese. O rio São Francisco, na parte norte do bioma; os rios Jequitinhonha e Doce, na parte central; e o rio Paranapanema, na porção centro-sul. Para alguns grupos de organismos, entretanto, os rios não são necessariamente uma barreira para migração, mas podem afetar as condições ambientais locais em que eles estão adaptados. Assim, esses seres não migram porque não conseguem se adaptar a condições diferentes daquelas que já estão adaptados. Portanto, nem sempre um rio servirá como uma barreira física, mas atua com importante fator nas condições ambientais das regiões.
E é sobre isso a última hipótese, conhecida como a hipótese de gradiente. Ela diz que as condições ambientais variam entre diferentes regiões e isso faz com que os organismos sejam diferentes entre elas. Por exemplo, a Mata Atlântica é rodeada pelo Cerrado, um bioma mais seco e aberto. Entretanto, nas áreas onde ocorre a transição de um bioma para outro, as condições são mistas e podem ocorrer espécies dos dois biomas, dependendo da tolerância de cada espécie a essas condições.
Na Mata Atlântica também existem diferentes gradientes ambientais, como as florestas nas regiões mais altas e as de regiões mais baixas. Isso quer dizer que a topografia influencia nas condições ambientais, no tipo de vegetação que cresce no local e, consequentemente, nas espécies de animais existentes. Como resultado, condições ambientais diferentes podem causar aumento na riqueza de espécies.
Como vocês já podem ter deduzido, é bem mais complexo do que parece explicar a biodiversidade da Mata Atlântica. As quatro hipóteses apresentadas não parecem fazer sentido isoladamente, porque uma afeta diretamente a outra. Por exemplo, a tectônica causa o soerguimento de montanhas, que criam gradientes ambientais diferentes e afetam o curso dos rios e suas sub-bacias. Já a hipótese dos refúgios não é um fator causal das outras hipóteses, mas indicaria quais espécies estariam presentes nas regiões, espécies essas que responderiam às consequências das mudanças geológicas e climáticas.
A importância de entender como essa biodiversidade surgiu é poder saber como conservar esse bioma já tão destruído; além de ter uma noção de como os eventos climáticos do passado modificaram o ambiente a ponto de causar extinções. Algumas espécies podem não tolerar as alterações que estão acontecendo, pelo menos não na velocidade em que têm ocorrido. E isso afeta diretamente as condições da vida humana no planeta.
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