Por Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Autor do polêmico projeto de lei que pretende transformar a criação de animais em patrimônio cultural do Brasil, o deputado federal Paulo Bengston (PTB-PA) mais uma vez atua em defesa dos criadores. Relator na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara dos Deputados do PL nº 4.705/2020, que propõe o fim do comércio legalizado de animais silvestres no país, ele apresentou ontem seu parecer pela rejeição da proposta.
Bengston afirma em seu relatório que “o PL 4.705/2020 acarretaria sério prejuízo econômico para os criadores já autorizados pelo poder público, além de aumentar a pressão pela captura e tráfico ilegal de animais da natureza, deixando a criação das espécies de nossa fauna como monopólio de estrangeiros.” O deputado federal Ricardo Izar (PP-SP), um dos autores do projeto, afirmou não estar surpreendido. “Pelo visto, temos um novo Colatto na Comissão de Meio Ambiente. Tudo que for a favor dos animais, ele é contra”, declarou o parlamentar fazendo alusão ao ex-deputado federal Valdir Collato (MDB-SC), autor do Projeto de Lei nº 6.268/2016, que tenta liberar a caça profissional e esportiva no Brasil e ainda tramita na Câmara dos Deputados.
Izar e o deputado federal Célio Studart (PV-CE) são os autores do PL nº 4705/2020. O projeto propõe modificar a Lei nº 5.197/1967 (Lei de Proteção à Fauna), permitindo somente o funcionamento de criadouros de animais silvestres para fins científicos e conservacionistas. A criação comercial para o mercado de bichos de estimação e para abate (como jacarés e tartarugas) seria proibida.
Na justificativa do PL, Izar e Studart destacam:
“Os animais, embora seres vivos sencientes, nunca foram considerados pelo seu valor intrínseco, mas em função da necessidade e do interesse humano. O Direito positivo brasileiro sempre tratou a fauna sob uma ótica privatista, considerando os animais como um bem, recurso ou propriedade. Destarte, a proteção da fauna nunca se deu pelo reconhecimento de seu direito à vida e ao bem-estar, mas para garantir a manutenção da biodiversidade como um recurso para o homem.”
Os parlamentares também afirmam que o comércio autorizado de animais silvestres não funciona como ferramenta para combater o tráfico de fauna. “Apenas serviu para alimentar uma cultura de posse e fomentar um costume de se manter animais silvestres em cativeiro.”
O projeto de Izar e Studart começou a tramitar na Câmara dos Deputados em 22 de dezembro de 2020. Ele tem de ser analisado pelas comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) e de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).
Em 26 de março, o deputado Paulo Bengston foi designado relator do projeto pela presidente da CMADS, deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). “Ao saber da designação dele, solicitei que fosse apensado o PL nº 318/2021, que ele é autor, ao projeto. Isso faria com que Bengston não pudesse ser relator. Infelizmente, o pedido não foi aceito”, explicou Izar. Para o deputado, Bengston não poderia ter a relatoria de um PL que vai contra um projeto de sua autoria.
Sobre ter designado Bengston como relator do projeto de Izar e Studart, Carla Zambelli afirmou que “não houve nada combinado, arranjado, pensado ou calculado. Ele pediu a relatoria, ninguém havia se interessado, eu concedi. Não há nada no regimento que impeça ou que indique outra conduta.”
Pela rejeição
Em seu relatório, Bengston, que é veterinário, não utiliza qualquer argumento que aborde bem-estar dos animais em cativeiro. Todo o documento têm como base a utilização da fauna como recurso econômico.
Contradizendo Izar e Studart, Bengston afirma que a criação comercial de animais silvestre ajuda a combater o tráfico. Para sustentar essa tese, o parlamentar utiliza como exemplo a recuperação que está acontecendo da população das araras-azuis-grandes (Anodorhynchus hyacinthinus) na natureza:
“Um dos principais motivos foi a menor pressão de captura na natureza, decorrente da diminuição da demanda por espécimes silvestres, visto que essa demanda está sendo suprida pela produção de exemplares nascidos em criadouros comerciais nos EUA e na Europa.”
Bengston desconsiderou o trabalho da bióloga e pesquisadora Neiva Gudes, presidente do Instituto Arara Azul, que desde 1989 atua pela conservação dessas araras no Centro-Oeste brasileiro. A significativa redução de capturas dessas aves se deu por um trabalho de conscientização da população local que passou a ajudar na fiscalização dos ninhos e das caixas-ninho instaladas para a reprodução da espécie. O Fauna News, em reportagem publicada em 27 de novembro de 2020 (“Novos casos de tráfico de araras-azuis-grandes e micos-leões-dourados deixam ambientalistas em alerta”), informa um recente aumento no tráfico das aves para o mercado internacional ocorrido depois de a espécie ter saído da lista brasileira de fauna ameaçada de extinção.
“O comércio legalizado estimula no cidadão comum a cultura e o hábito de consumo de animais silvestres. O mercado legalizado é o maior estímulo para a compra direta de animais no mercado paralelo, que é mais barato”, afirmou o biólogo e gerente de Vida Silvestre da Proteção Animal Mundial, João Almeida. Para o biólogo e gerente de pesquisa da ONG Ampara Silvestre, Maurício Forlani, os preços dos animais legalizados nunca serão competitivos com os traficados, sendo portanto mais uma razão para não considerar a criação comercial autorizada como um desestímulo à compra dos espécimes capturados na natureza. “Basta ver o que acontece com os cigarros. São vendidos em toda esquina e ainda assim tem contrabando”, explicou.
A ONG Proteção Animal Mundial, na publicação de 2019 Crueldade à venda, mostra com bases em dados oficiais que as espécies mais comercializadas no mercado regulamentado são as mesmas espécies mais apreendidas com traficantes de fauna e criadores ilegais. E a criação comercial legalizada é permitida desde 1967 e até hoje o tráfico de animais atua com força no Brasil.
Outro argumento de Bengston em seu relatório envolve o bicudo (Sporophila maximiliani), passarinho de belo canto classificado como “criticamente ameaçado” de extinção. A espécie quase desapareceu da natureza por conta de décadas de capturas criminosas para criação em gaiola. Segundo o deputado, as milhares dessas aves em cativeiro no Brasil garantiriam “um valioso banco genético dessa espécie, centenas de vezes maior que o existente na natureza. Esses exemplares ex situ (em cativeiro) são fundamentais para a recuperação da espécie na natureza.”
A bióloga e pesquisadora do projeto Bicudos do Cerrado, Amanda Melo, afirmou que os bicudos em cativeiro sejam, talvez, a única fonte de indivíduos para reestabelecer as populações selvagens da espécie no país. “Os estudos genéticos do projeto Bicudos do Cerrado mostram que os animais de cativeiro possuem diversidade genética suficiente para formar grupos de indivíduos para reintrodução e manter o reforço de indivíduos nas populações reintroduzidas com o objetivo de manter a variabilidade genética na natureza. Entretanto, não é possível dizer que essa variabilidade genética de cativeiro é maior que a existente na natureza, pois não se conhece as características genéticas das populações em liberdade”, explicou.
Forlani considera que não ser preciso criar bancos genéticos das mais de 400 espécies criadas no Brasil hoje. “A criação comercial cria bancos genéticos visando a venda de animais mais vistosos, bonitos e diferentes. Essa seleção não natural não funciona para a conservação das espécies, que precisam de estudos e avaliações para manter a variabilidade genética”, explicou.
O próprio Diagnóstico da criação comercial de animais silvestres no Brasil, publicado pelo Ibama em 2019, que foi citado por Bengston, destaca que 60% dos criadouros comerciais “não estão reproduzindo seu plantel, isso significa que não estão cumprindo seu papel de conservação dos estoques.” E dos que reproduzem, somente 8,2% dos nascimentos correspondem a animais de espécies ameaçadas de extinção.
Amanda não acredita que a proibição da criação em cativeiro acabaria com a cultura da criação de animais silvestres pela população da noite para o dia. “É uma questão muito mais profunda. Eu creio que o investimento a longo prazo em educação ambiental, em fiscalização e em disseminar as consequências da criação em cativeiro para os animais podem contribuir para diminuir essa vontade de ter o animal como pet e, como consequência, diminuir a necessidade de criação de silvestres em cativeiro”, salientou a pesquisadora.
Bengston também citou a criação comercial em grande escala de jacarés-do-Pantanal (Caiman yacare) fez “a caça clandestina a praticamente desaparecer e a população da espécie se recuperar saindo totalmente do perigo de extinção”. Esses animais eram intensamente caçados por sua pele até o início da década de 1990. De acordo com o biólogo e mestre em Ecologia, Roberto Cabral Borges, o argumento do parlamentar não está correto pelo fato de que a caça desses répteis diminui por causa do controle internacional do comércio de couro da espécie, que estava sendo “esquentado” (recebendo documentação) na Bolívia e no Paraguai por criadores comerciais de lá. “A caça acontecia em território brasileiro e o couro exportado por esses países. Quando houve um boqueio internacional, a caça caiu. Não foi por causa da criação em cativeiro no Brasil”, explicou.
O Fauna News tentou contato por telefone e e-mail com o gabinete de Bengston, mas ninguém atendeu ou respondeu.
Bengston e os animais
Paulo Bengston é autor do Projeto de Lei nº 318/2021, que está propondo classificar a criação de animais como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Análise publicada pelo Fauna News em 9 de março de 2021 (“PL nº 318/2021 – A banalização da escravidão animal, da conservação e do patrimônio cultural”) indica que, além de reforçar a ideia de que animais são mercadorias, o tratamento generalizado dado pelo texto do projeto permite interpretar a criação ilegal de fauna silvestre também como patrimônio cultural.
O parlamentar também é foi relator na CMADS do substitutivo da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural ao Projeto de Lei nº 2.452/2011, que propõe o reconhecimento da vaquejada como atividade desportiva. A prática, que já é considerada patrimônio cultural, deixaria de ser considerada crueldade contra animais caso ganhe o status de esporte. O relatório do deputado foi favorável à proposta e acabou sendo aprovado em votação realizada terça-feira (27 de abril) na comissão.