Por Dimas Marques
Editor-chefe
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Identificar animais silvestres capturados ilegalmente na natureza dentro de criadouros autorizados sempre foi um desafio para os órgãos de fiscalização do poder público no Brasil. Em muitos casos, somente com análises laboratoriais é possível comprovar a fraude. E as investigações desenvolvidas no combate ao tráfico de fauna no país raramente conseguem acesso a essas tecnologias.
Mas a Superintendência Regional da Polícia Federal no Amazonas investiu em equipamentos e capacitação de profissionais para começar a trabalhar com o que há de mais moderno em perícia no combate ao tráfico de fauna e a alguns crimes ambientais na região.
Desde janeiro, os peritos têm à disposição equipamentos que realizam análises de isótopos estáveis. “Somos pioneiros na implementação dessa metodologia entre as organizações policiais brasileiras. A Polícia Federal está na vanguarda”, afirma o ex-superintendente regional da PF no Amazonas, o delegado Alexandre Silva Saraiva, que foi substituído do cargo após enviar notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, e o senador Telmário Mota (Pros-RR), acusando-os de envolvimento com irregularidades no comércio de madeira nativa no Pará.
Para implementar a nova tecnologia, a Polícia Federal do Amazonas investiu R$ 2,6 milhões em equipamentos e na adequação de instalações laboratoriais, sendo R$ 2,5 milhões provenientes de termo de ajuste de conduta (TAC) realizado com infratores e R$ 100 mil de verba própria. Foram adquiridos um Espectrômetro de Massas de Razão Isotópica (IRMS), para analisar amostras de seres vivos, e um aparelho de Fluorescência de Raios-X por Reflexão Total (TXRF), ideal para minerais. Para trabalharem com novos equipamentos e metodologias de investigação, os peritos da PF participaram de cursos e workshops na Universidade de São Paulo (USP) e no Instituto Nacional de Criminalística da própria instituição.
“A análise de isótopos estáveis é uma técnica muito versátil que pode ser adotada em diversas casuísticas. As aplicações forenses são inúmeras, sendo o tráfico de fauna uma delas. Por conta disso, ter os equipamentos disponíveis na superintendência do estado do Amazonas representa um avanço imenso no combate ao crime na região”, afirma Saraiva para explicar a opção por investir nessa nova metodologia.
Além de crimes envolvendo animais, a perícia com isótopos estáveis pode ser aplicada em casos de extração e comércio ilegais de madeiras nativas e minérios (como o ouro dos garimpos), além de investigações que envolvam alimentos e entorpecentes.
Tecnologia permite identificar a origem geográfica do animal
Cada elemento químico, ou substância, pode ter diferentes quantidades de nêutrons no núcleo do átomo. Isso faz com que um mesmo elemento possa ter variantes que são chamadas de isótopos. A metodologia pericial recém implantada pela Polícia Federal trabalha com os chamados isótopos estáveis, aqueles em que não há alterações na quantidade de nêutrons.
Conforme explica a bióloga e professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília, Gabriela Bielefeld Nardotto, “incluem-se no grupo dos isótopos estáveis que mais utilizamos na área ambiental e forense o carbono-12 (leve) e o carbono-13 (pesado); o nitrogênio-14 (leve) e o nitrogênio-15 (pesado); o oxigênio-16 (leve) e o oxigênio-18 (pesado) e o hidrogênio-1 (leve) e o hidrogênio-2 (pesado)”.
Pesquisadora sobre o uso de isótopos estáveis em estudos ambientais, Gabriela explica que a proporção entre os isótopos pesados e os leves desses elementos químicos, que resulta em um número chamado razão isotópica, varia conforme a região. Isso faz com que esse número esteja nas características dos alimentos consumidos de uma determinada área pelos animais na natureza. Consequentemente, o mesmo número será encontrado no organismo desse animal.
“Com isso, podemos usar na análise as unhas e os pelos de mamíferos, que são formados por queratina e que, por sua vez, é formada por carbono, nitrogênio, oxigênio e hidrogênio”, salienta a professora. A proporção dos isótopos na queratina dos animais será a mesma da dos alimentos consumidos e da água de onde eles vivem. Ou seja, a nova metodologia de análise pericial implantada na Polícia Federal do Amazonas torna possível identificar a origem geográfica de um animal.
Mas essa é uma informação que, no caso de crimes contra a fauna, não é sempre necessária. “Nem precisamos descobrir o local de origem do espécime. Esse exame permite comparar os isótopos da amostra do animal apreendido com os da alimentação ou da água fornecidas pelo criador. Se as proporções isotópicas não baterem, há irregularidade. Para a investigação policial, já é suficiente”, explica Saraiva. Segundo ele, o novo método ajuda a desmascarar o “esquentamento” de fauna – fazer um animal capturado na natureza se passar por um nascido em criadouro legalizado.
“Via de regra, os animais de cativeiro se alimentam de ração industrializada e isso confere a eles uma proporção isotópica diferente daqueles não originários de cativeiro”, acrescentou Saraiva.
Mesmo nos casos em que o animal retirado da natureza ficar durante muito tempo em cativeiro, recebendo a mesma alimentação e em ambiente similar aos espécimes nascidos no criadouro, Gabriela afirma ser possível desmascarar o golpe. Nos mamíferos, por exemplo, tecidos como os de dentes têm sua proporção isotópica registrada logo após o nascimento ou nos primeiros anos de vida, quando são formados.
Para as aves, a situação é mais complicada, já que o valor isotópico das penas, por exemplo, está ligado às características da região em que estava o animal quando foram formadas. “Por isso devem ser consideradas as taxas de renovação dos tecidos amostrados na investigação. Uma vez conhecidas as taxas de renovação, pode-se inferir temporalmente a idade do tecido e espacialmente também é possível inferir de qual região geográfica este animal pode ser oriundo”, explicou.
E o aparelho responsável por essa análise é o Espectrômetro de Massas de Razão Isotópica, recém adquirido pela PF do Amazonas. De acordo com Saraiva, a metodologia irá ajudar em investigações de tráfico de tartarugas-da-Amazônia (Podocnemis expansa), tracajás (Podocnemis unifilis), pirarucus (Arapaima gigas) e jacarés.
No Estado, criadouros comerciais legalizados de animais dessas espécies estariam, segundo o policial, inserindo animais retirados da natureza em seus plantéis para vendê-los como se ali tivessem nascido. “Será possível identificar o que foi “esquentado” pelo criadouro, separando o joio do trigo”, diz Saraiva. Em 27 de abril, o Fauna News publicou “Filhotes de tartarugas-da-Amazônia são resgatados do tráfico no rio Solimões (AM)“, em que noticiou a apreensão de mais de 600 filhotes de tartarugas-da-Amazônia que estavam em uma embarcação no rio Solimões, em Coari, município situado a 363 quilômetros de Manaus. Os animais estariam sendo levados para criadouros.
Ferramenta é importante para solturas precisas
O especialista em tráfico de animais da ONG WCS (Wildlife Conservation Society) Brasil, Rafael Leite, considera interessante o investimento em perícia feito pela Polícia Federal no Amazonas. Para o ambientalista, que está baseado em Manaus, seria ideal que os diferentes órgãos de fiscalização que atuam no estado tivessem infraestrutura para realizar esse tipo de perícia ou que pudessem ter acesso a ela. “O que não pode é investir dinheiro público e deixar o que foi construído se transformar em um elefante branco, com pouca utilização”, diz Leite.
O delegado Saraiva afirma que a Polícia Federal tem insumos suficientes para realizar exames em larga escala. Nos casos envolvendo fauna, os resultados das análises ficam prontos em 48 horas. “A PF está aberta, inclusive, para trabalhar com outros órgãos governamentais e otimizar ao máximo a utilização do laboratório e dos equipamentos”, destacou.
A veterinária e especialista em quelônios da WCS Brasil, Camila Ferrara, acha importante que as análises com base em isótopos estáveis feitas nos laboratórios da PF tentem identificar também o local de origem dos animais apreendidos. “Essa informação permite que se façam solturas mais precisas, com o retorno deles aos locais onde foram capturados”, explicou.
Para determinar a origem dos espécimes, são necessárias amostras do ambiente de onde foram retirados para que a proporção isotópica dos elementos na água, por exemplo, seja comparada com a do animal. Para isso, torna-se imprescindível a construção de um banco de dados com essas informações sobre os locais de captura.
Para a bióloga Juliana Machado Ferreira, diretora executiva da ONG especializada no combate ao tráfico de fauna Freeland Brasil, análises com isótopos estáveis e testes a partir de DNA são os meios mais eficazes para investigar fraudes em criadouros e garantir o retorno dos animais às suas regiões de origem.
“A utilização de testes de paternidade por análise de DNA, a inferência de origem também por DNA e a inferência de origem e diferenciação de animais criados em cativeiro dos coletados na natureza através das análises de isótopos estáveis são as técnicas mais sensíveis para detectarmos ilegalidades e realizarmos solturas tecnicamente responsáveis, assim como para identificarmos pontos de superexploração pelo tráfico, o que pode ajudar a direcionar recursos para o combate a esse crime”, afirma ela.
Com doutorado em Genética, Juliana considera a existência do comércio legalizado de fauna uma porta de entrada para animais ilegais, assim como impõe ao poder público a necessidade de fiscalizar e diferenciar o legal do ilegal. “Atualmente, as formas de rastreabilidade de origem são muito falhas e as fraudes comuns e numerosas”, salientou Juliana.