Pesquisadores da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) em parceria com o Instituto Organização Consciência Ambiental (Instituto Orca) analisaram 12 carcaças de botos-cinza (Sotalia guianensis) vindas do Espírito Santo, encontradas entre os municípios de Aracruz e Presidente Kennedy, de 2019 a 2022. Em quatro desses botos foram encontrados resíduos de plástico maiores, incluindo um material de 19,22 centímetros – maior que uma caneta Bic! – dentro do trato gastrointestinal de um deles. E em todas as amostras foi detectada a presença de microplásticos.
Os botos-cinza são uma espécie de golfinho com ampla distribuição ao longo da costa atlântica tropical e subtropical das Américas do Sul e Central. No Brasil, podem ser encontrados em quase toda a costa. A espécie, porém, é classificada como “vulnerável” ao risco de extinção na lista nacional do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
O artigo com a pesquisa que identificou a presença dos resíduos plásticos nos botos foi publicado no periódico científico Marine Pollution Bulletin. Uma das autoras, a pesquisadora Letícia Versiani, do Laboratório de Morfologia e Patologia Animal da Uenf, conta que durante seu mestrado surgiu o interesse em pesquisar os microplásticos, o que se estendeu até seu doutorado. Os golfinhos são uma primeira fase para sua pesquisa, que busca compreender os efeitos desses resíduos plásticos em nível trófico, ou seja, na cadeia alimentar.
O Instituto Orca forneceu as 12 amostras utilizadas pela pesquisadora. A instituição recebe animais vítimas de emaranhamento e capturas acidentais em redes de pesca, realiza exames necroscópicos para determinar a causa da morte e os disponibiliza para estudos.
A pesquisa contou com financiamento da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas (INCTAA), além de esforços coletivos, como auxílio de professores no financiamento dos reagentes usados na análise.
Dos 12 botos-cinza estudados, nove eram machos e três fêmeas. Sete deles morreram em decorrência de emaranhamento em redes de pesca. Não foi possível detectar a cauda da morte do restante por conta do estado de decomposição. Em quatro botos havia resíduos e plástico de 1,21 centímetro a 19,22 centímetros, de diferentes formatos, como equipamentos de pesca e embalagens. E em todos eles foram encontrados microplásticos, com um total de 426 partículas identificadas. Entre as carcaças havia ainda uma fêmea grávida, que trazia a parte posterior do seu corpo amputada por um material afiado.
“Eu confesso que o intuito da minha pesquisa não era analisar macro, era só analisar micro. Mas surgiram quatro animais com a presença desses plásticos. Isso (o golfinho que continha um plástico de 19,22 centímetros) é uma coisa que chamou atenção. Tinha o CEP da indústria, várias coisas foram embora, mas o CEP da indústria continuou ali. A comunidade precisa cobrar das indústrias produtoras de plástico, de embalagens, que eles também têm de tomar conta do lixo que geram. Esse plástico foi produzido a mais de 900 quilômetros de onde o animal encalhou. A fonte desses plásticos também precisa ser estudada”, aponta a pesquisadora.
De acordo com os dados levantados no artigo, o Brasil produz 14 milhões de toneladas de plástico anualmente e é um dos 16 principais países responsáveis pelo descarte de resíduos nos oceanos. A maior parte do lixo é mal administrada e não monitorada quanto ao seu destino. Pesquisas anteriores, feitas entre 2010 e 2017, não haviam encontrado ainda resíduos sólidos nos botos-cinzas.
Desde que eu trabalho com esses animais, em 2012, a gente ainda não tinha visto nenhum plástico. Não é comum para os botos-cinza ingerir o plástico. É uma coisa a se pensar, se algo mudou no ambiente deles”, questiona Letícia.
A destruição do hábitat, a diminuição da disponibilidade de presas, assim como o tráfego de navios e a bioacumulação de poluentes, como detritos de plástico, são as principais ameaças aos botos-cinza. “Eles vivem muito perto de praias; sofrem com redes de pescas, embarcações e com toda a poluição”, aponta a pesquisadora.
“Cada um precisa entender o uso do plástico. Recusar o plástico é muito importante. Fazer a reciclagem, entregar esse plástico para as cooperativas. Fazer a chamada economia circular girar”, convoca Letícia. A pesquisadora aponta ainda a necessidade de cooperação entre sociedade civil, políticas públicas e empresas produtoras de plástico a fim de diminuir o descarte irregular. “Nós precisamos que as indústrias que produzem o plástico, as embalagens, assumam esse compromisso”, resume Letícia.
Combate ao plástico
Recentemente, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) lançou uma consulta pública para o projeto de lei nº 2524/2022, que estabelece regras relativas à economia circular do plástico, para evitar a geração desse material e prevenir a poluição causada por esses resíduos. A proposta altera ainda a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) para tipificar como infração o seu descumprimento e a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, para incluir as atividades das cooperativas e associações de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis no Programa Federal de Pagamento por Serviços Ambientais.
Projetos como esse crescem juntamente com a preocupação acerca dos altos níveis de poluição no mundo. Mais de quatro mil delegados e observadores de países se reuniram em Ottawa, no Canadá, em abril deste ano, para última rodada de negociações das Nações Unidas, com o intuito de desenvolver um instrumento internacional juridicamente vinculativo sobre a poluição plástica (INC-4, na sigla em inglês), inclusive no ambiente marinho.