Por Yara Barros
Bióloga, doutora em Zoologia, coordenadora executiva do Projeto Onças do Iguaçu e associada do Instituto para a Conservação dos Carnívoros Neotropicais – Pró-Carnívoros
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O Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, é uma ilha de vida em um Estado castigado pelo desmatamento. Com seus 185 mil hectares, abriga e protege centenas de espécies, muitas delas ameaçadas, como a onça-pintada (Panthera onca).
Os esforços para salvar a onça-pintada na região começaram na década de 1990, com o trabalho pioneiro do Peter Crawshaw, que criou o Projeto Carnívoros do Iguaçu. Os resultados iniciais de uma década de esforços apontavam para um cenário preocupante: população reduzida e várias onças abatidas como resultado do conflito com criadores de gado do entorno do parque nacional. De lá para cá, muita coisa foi feita e, com alívio, temos visto a população da espécie na unidade de conservação aumentar.
Em 2018, o Projeto Carnívoros do Iguaçu passou a se chamar Projeto Onças do Iguaçu e ampliou seu escopo de trabalho para intensificar o envolvimento dos moradores lindeiros com a questão da conservação da onça-pintada. O Onças do Iguaçu é um projeto institucional do Parque Nacional do Iguaçu, desenvolvido em parceria com o Instituto Pró-Carnívoros. Temos também o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do ICMBio como parceiro executor nessa empreitada, além de muitos outros colaboradores, pois conservação não se faz sozinho.
Onças não conhecem fronteiras, e o Rio Iguaçu, que separa Brasil e Argentina, conecta áreas importantes para esses animais. E se temos onças circulando lá e cá, temos também um exemplo muito bacana de como dois projetos e dois países podem unir esforços para salvar uma espécie. Trabalhamos em parceria estreita com o Proyecto Yaguareté, da Argentina, que há 20 anos atua na conservação da espécie no país.
O Projeto Onças do Iguaçu tem três linhas principais de ação: pesquisa, engajamento e coexistência das comunidades lindeiras ao parque com grandes felinos.
Na área de pesquisa é feito um esforço para entender a disponibilidade de presas para as duas espécies de onças do local (pintada e parda) e o estudo de suas dietas. Também são capturadas e colarizadas onças para que possamos entender seu deslocamento, área de vida e território. Essas informações são úteis no estabelecimento de medidas de conservação. As campanhas de captura são realizadas em conjunto com o Proyecto Yaguareté e o Cenap/ICMBio.
Para monitorarmos essa população, a cada dois anos é feito um censo binacional, envolvendo as equipes do Projeto Onças do Iguaçu e do Proyecto Yaguareté. Esse é o maior esforço mundial (em tempo e área) para monitorar onças-pintadas: já são 10 anos de monitoramento e a área amostrada nos dois países, conhecida como Corredor Verde, é de cerca de 600 mil hectares.
A população no parque nacional era estimada em cerca de 9 a 11 indivíduos em 2009 e de lá pra cá vem crescendo: dados do censo realizado em 2018 apontaram que a população do lado brasileiro era de cerca de 28 animais. Se considerarmos Brasil e Argentina, a estimativa é de cerca de 105 animais. Sempre nos perguntam quantas onças-pintadas “cabem” no Corredor Verde. A estimativa é que a área tenha capacidade de suporte para 250, então temos ainda um longo caminho pela frente.
Existem apenas cerca de 250 a 300 onças-pintadas em toda a Mata Atlântica, ou seja, temos aproximadamente um terço de todas as onças do bioma. E essa é a única população que está comprovadamente crescendo na Mata Atlântica. Uma responsabilidade enorme.
A equipe de proteção do parque nacional trabalha de maneira intensiva no combate à caça ilegal dentro da unidade.
Estamos finalizando a amostragem do censo de 2020 e ainda este ano deveremos ter uma nova estimativa.
A caça, a perda e a fragmentação de hábitat e os conflitos com populações humanas são grandes ameaças para as onças. Através de inúmeras ações contínuas com as comunidades dos 14 municípios lindeiros ao parque nacional, procuramos transformar esse medo em encantamento, conseguir engajamento. Fácil? De jeito nenhum. O medo é muito forte e geralmente baseado muito mais em crenças do que em fatos. Temos ações como Onça na Escola, Papo de Onça, Onça Itinerante, Pedal da Onça e Trilha da Onça. Assim conseguimos atingir vários públicos.
Criamos um programa de ciência cidadã, o Time Panthera, que busca o envolvimento direto das comunidades que estão junto aos limites do parque nacional nas atividades do Projeto Onças do Iguaçu. Além do senso de pertencimento e de envolvimento direto da comunidade na conservação da onça-pintada na região, essa ação possibilita multiplicar a presença do projeto, através de pontos focais nos Municípios lindeiros. Com isso, a meta é que as notícias sobre onças cheguem mais regularmente ao projeto e que os membros do Time Panthera possam atuar junto a suas comunidades como parceiros em atividades de engajamento, coexistência, identificação de fragilidades ou oportunidades de intervenção.
Fazemos visitas constantes a propriedades no entorno. Não só naquelas onde ocorrem casos de predação, mas também nas que estão vulneráveis a predação. Desenvolvemos, testamos e instalamos dispositivos anti-predação para evitar perdas de animais domésticos que possam causar abate de onças por retaliação. Costumamos dizer que não queremos apenas cuidar das onças, mas das pessoas que dividem essa terra com elas.
Integramos a COPCoex, uma Comunidade de Práticas em Coexistência, coordenada pelo Dr. Sílvio Marchini (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz – Esalq/USP), na qual estão envolvidas as principais equipes de pesquisadores que trabalham com grandes predadores na Américas. O grupo busca entender os conflitos e desenvolver e partilhar ferramentas para trabalhar a coexistência entre grandes predadores e seres humanos.
O contato contínuo com as comunidades ajuda a afastar o medo, criar e fortalecer vínculos, além d ajudar o projeto a ter uma relação de confiança com os moradores. A ideia é que o “atira primeiro, pergunta depois” seja substituído pelo “pergunta primeiro, não atira nunca”. Temos tido ótimos resultados e nossa estratégia inclui atendimento imediato, sempre que possível, a predações, visualizações de grandes felinos ou mesmo de pegadas. E cada atendimento nunca é uma visita única, já que as propriedades passam a ser monitoradas constantemente. Em 2020, em plena pandemia, fizemos quase 200 visitas a propriedades no entorno do parque nacional, sempre seguindo um protocolo sanitário.
Não fazemos o ressarcimento de animais predados por onças, mas criamos um sistema que chamamos de “CompONÇAção”, no qual identificamos, em uma avaliação caso a caso, talentos locais que o projeto possa ajudar a desenvolver, visando a produção de produtos/serviços aos quais a onça agregue valor e gerando uma fonte alternativa de renda diretamente relacionada à conservação da espécie. Usamos nossa rede de contatos para buscar capacitação, intercâmbio entre produtores, certificação e identificação de mercados para os produtos associados às onças. O resultado esperado é que a geração alternativa de renda agregue valor à manutenção das onças vivas. E já temos vários exemplos, como o queijo da onça, o mel da onça, nozes & onças, palanques da parda… E estamos só começando! Tem muita ideia bacana em fase de implementação.
Sim, a estrada para a conservação da onça-pintada na região é longa, mas tem muita gente cheia de energia, paixão e comprometimento trabalhando junta para cuidar dessa espécie tão absolutamente magnífica.
Não existem soluções simples, existe uma junção de estratégias e equipes (e orações, claro!)
Vamos juntos?
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