Gabriel Gatti
Aluno de Jornalismo da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e integrante do portal Impacto Ambiental para o Projeto Nova Geração
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A cidade de Araripe, no interior do estado do Ceará, apresenta uma geologia propícia para as escavações paleontológicas. No território já foram encontrados diversos fósseis, como o do Ubirajara jubatus, o primeiro dinossauro de Gondwana em bom estado de conservação. Apesar de o fóssil do animal ter sido achado no Brasil, hoje ele se encontra no Museu de História Natural de Karlsruhe (SMNK), na Alemanha, assim como outros tantos fósseis nacionais levados para o exterior ilegalmente por pesquisadores – leia sobre o caso no artigo “#UbirajaraBelongsToBR – Movimento exige a repatriação de fóssil de novo dinossauro brasileiro“, publicado pelo Fauna News em janeiro de 2021). O furto de fósseis do Brasil é um problema que pouco mobiliza a diplomacia do país e requer um grande esforço da Polícia Federal e do Ministério Público para repatriar artefatos.
Segundo o pesquisador e paleontólogo André Piacentini Pinheiro, há três finalidades para a retirada de material fóssil do Brasil: por comerciantes, por colecionadores privados e por pesquisadores estrangeiros. O fóssil de um pterossauro Tupandactylus navigans, por exemplo, quase foi traficado em 2013, quando foi recuperado pela Polícia Federal de combate a esse tipo de crime. Encontrado na Chapada do Araripe, no Nordeste, ele é um dos mais completos já encontrados, pois apresenta até os tecidos moles, como os órgãos internos, muito bem conservados, característica muito rara em um processo de fossilização. Com a apreensão do material que seria provavelmente vendido para museus ou coleções particulares do exterior, ele foi entregue à Universidade de São Paulo (USP) para ser estudado.
Pinheiro alerta que os fósseis registram as transformações geológicas, o que nos permite compreender quais foram as mudanças que uma determinada região passou. Desse modo, o tráfico desse material causa um grande prejuízo para a Ciência nacional. Com a retirada dos artefatos do Brasil, há perda de patrimônio histórico, visto que, “apesar dos estudiosos internacionais publicarem um trabalho científico bastante robusto e bem embasado, o material não está mais aqui e um pesquisador nacional não pode estudá-lo”.
Muitos registros mostram que em diversos casos os fósseis foram levados para o exterior de forma irregular, dificultando o trabalho dos pesquisadores brasileiros. Segundo o paleontólogo Juan Carlos Cisneros, muitos outros fósseis, como os dos pterossauros Ludodactylus sibbicki, Lacusovagus magnificens, Unwindia trigonus e Tapejara navigans foram vendidos de forma ilícita para compradores estrangeiros. Todos esses casos são posteriores a 1942, ano de promulgação do Decreto-lei nº 4.146, que diz que todos os artefatos paleontológicos são de propriedade da nação.
De acordo a Polícia Federal (PF), há registros de “tráfico pesado de peças fósseis encomendadas aos peixeiros da região desde os anos de 1960”. O objetivo dessas encomendas era para a obtenção de conhecimento sobre os animais que povoavam a região nas eras jurássicas, mas o destino do material nem sempre era o exterior. Segundo informações da PF, os traficantes também vendiam os fósseis para indivíduos de outras regiões do Brasil. São peças “oriundas de trocas por roupas, cestas básicas e brinquedos com a população carente local”.
Essa questão chama a atenção para um problema social do Araripe. Segundo a paleontóloga e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Kamila Luísa Bandeira, muitas das pessoas que trabalham na região são de baixa escolaridade. Desse modo, os estrangeiros chegam oferecendo quantias significativas para a realidade dessas pessoas, proporcionando o tráfico. Durante os anos 1990, era estimado que os traficantes pagavam um dólar por cada 10 horas de serviço, 15 dólares a cada ictiólito, isto é, uma concreção com um peixe, e negociavam os valores para os fósseis maiores. Ela afirma que “falta uma consciência da importância do fóssil” para esses indivíduos e que esse “é um problema muito mais social do que de legislação”.
Existem duas leis que protegem os registros fósseis brasileiros. A primeira delas é o decreto-lei de 1942, que estabelece que todos os artefatos pertencem à nação, sendo necessária “autorização prévia e fiscalização do Departamento Nacional de Produção Mineral do Ministério da Agricultura” para a exploração paleontológica. Pelo fato de os fósseis serem propriedades da União, a legislação ainda afirma que os sítios de valor paleontológico “devem ser protegidos pelo poder público através de todas as formas legais de acautelamento e de preservação”.
Posteriormente, em fevereiro de 1991, foi criada a Lei nº 8.176, mais rígida que a primeira. A partir de sua implantação foi determinado que usurpar patrimônios pertencentes à União “sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo” é considerado crime passível a pena de um a cinco anos de reclusão, além de multa. Mas o caso pode se agravar caso seja verificado o envolvimento de organizações criminosas ou relação com outros tipos de crime.
Segundo Cisneiros, uma lei complementa a outra. Após a implementação da legislação de 1991, os requisitos para os pesquisadores estrangeiros estudarem em território nacional são trabalhar com uma instituição brasileira, deixar 30% do material coletado e não levar holótipos, ou seja, os espécimes suados na descrição uma espécie nova. Mas, apesar da lei, há momentos de falha na fiscalização, como ocorrido no caso do Ubirajara jubatus
Alguns países, como a França e a China, apresentam políticas extremamente rigorosas de proteção aos fósseis, diferente do Brasil, Ao infringir a soberania nacional, como já houve diversas vezes, a mobilização estatal por aqui é nula. O paleontólogo Paulo Victor Pereira destaca que não houve movimentação do poder público sobre o tráfico do Ubirajara jubatus, sendo nítido apenas o clamores popular por meio das redes sociais e dos cientistas.
Essa postura do governo federal é parte do contexto de como a Ciência é tratada no Brasil. O recente corte de verbas para o setor é outro exemplo. Projeto de lei aprovado no Congresso determina que dos R$ 690 milhões previstos para pesquisas científicas no país, mais de R$ 600 milhões sejam distribuídos entre seis ministérios, resultando em apenas 13% da verba (R$ 89 milhões) inicial prevista. De acordo com Bandeira, a falta de dinheiro é o que dificulta as explorações paleontológicas e, com esse corte de verbas que seriam destinadas ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) as explorações paleontológicas serão inviabilizadas.
Esse tipo de ação que propicia um congelamento da pesquisa nacional. Kamila conta que até a década de 1930, boa parte dos pesquisadores que faziam pesquisa em território nacional eram estrangeiros e, apesar de eles fazerem grandes contribuições sobre a natureza brasileira, o conhecimento gerado ia para a Europa.
Apesar da presença de estrangeiros não ser tão intenso atualmente, a ação de pesquisadores que atuam no território nacional e retiram o material paleontológico ilicitamente perpetuam práticas que Cisneros classifica como “colonialistas”. Para o paleontólogo, o país-potência minimiza as leis locais para segurar o material em seu território. Todos esses fatores geram “um ciclo vicioso em que o Brasil não tem recursos para fazer pesquisas, os fósseis saem, a pesquisa é estrangeira e, com isso, eles conseguem mais recursos para a produção científica”, assim como nos períodos da colônia, em que nosso território era exportador de matéria bruta para os europeus produzirem.
Muitos dos países que estudam paleontologia na atualidade têm como material os fósseis de outros territórios. É o caso da Alemanha, em que 88% da produção científica é referente a materiais fossilizados de outras regiões do globo, o que fortalece a ciência alemã e não a dos países de origem da matéria bruta a ser estudada. Consequentemente aos benefícios científicos, surgem melhoras econômicas, educacionais e culturais.
Apesar da falta de ação da diplomacia brasileira nesses casos, há chances de os materiais furtados do país serem repatriados. O processo é muito longo e cheio de obstáculos, mas já ocorreu em algumas situações. Segundo o procurador da República no Ceará, Rafael Rayol, já foram identificados fósseis nacionais levados ilegalmente em diversos países, como Alemanha, França, Itália, Japão, Espanha e Estados Unidos. “Quando isso é descoberto, a gente instala procedimentos com dois objetivos em especial: um é apurar os fatos, identificar como saiu, saber como chegou ao exterior e como foi o transcurso para tentar identificar os responsáveis. O outro é o pedido pela atividade de repatriação”, explica.
No caso do Ubirajara jubatus, que os alemães alegam ter importado legalmente em 1995, houve mobilização social e da comunidade científica pela repatriação do fóssil do animal. Até o momento, apesar de não ter conseguido o regresso do material, o artigo científico produzido na Alemanha sobre o dinossauro foi temporariamente retirado da revista, visto que o material fora furtado do Brasil. Essa dificuldade de negociar o retorno do artefato, explica Cisneros, se dá pelo fato de que o país europeu ter assinado a Convenção da Unesco de 1970 (Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais) somente em 2007 e, como a lei deles não é retroativa, não há a obrigação de devolver artefatos que chegaram antes dessa data.
Entretanto, nem todos os países apresentam essa rigidez legislativa para devolver os fósseis para sua nação de origem. Em 2019, a Polícia Federal conseguiu repatriar o pterossauro Anhanguera santanae após denúncia ocorrida em 2014 e uma longa negociação com a França. Além disso, após os desdobramentos do furto do Ubirajara jubatus, foram repatriadas 36 aranhas, dentre elas a Cretapalpus vittari, fóssil que homenageia em seu nome a cantora e drag queen, Pabllo Vittar. A conquista partiu de um processo voluntário de pesquisadores estadunidenses
Com ações como essas se obtém conquistas científicas, econômicas e sociais. Com o regresso desses fósseis, os museus ficam recheados de atrações históricas. Além disso, o turismo local fica muito mais ativo, visto que é possível mobilizar a população para conhecer a região e consumir os produtos locais, favorecendo o desenvolvimento monetário dos comerciantes regionais.