O papagaio, o biólogo e o juiz. Um diálogo pelo direito de ser livre

– Então o senhor contesta minha decisão de devolver o papagaio à vovó?

– Com toda veemência, senhor juiz.

– Mas o senhor sabe que esse animal não consegue mais retornar à natureza?

– Meritíssimo, gostaria de saber em que se baseia tal afirmação? Afinal, existem inúmeros trabalhos científicos que atestam o contrário.

– Eu decidi com base própria, mas em outros processos existem laudos de veterinários que informam a impossibilidade de retorno à natureza.

– Com todo respeito, ao decidir sobre tema biológico, ecológico e comportamental, vossa excelência avança sobre a reserva técnica. Ademais, mesmo que determinado profissional tenha produzido laudo contrário, assim como a jurisprudência baliza o judiciário, os trabalhos científicos e seus resultados devem embasar os laudos e, sobre reintrodução, os resultados dos estudos comprovam a possibilidade.

– Então você está dizendo que todos os animais podem ser soltos?

– Não, não estou dizendo que todos podem ser soltos e nem que todos devam ser imediatamente soltos.

– Como assim? – Indaga o juiz.

– Existem casos em que os animais foram mutilados e não poderão ser soltos. Por exemplo, uma onça sem garras ou uma coruja cuja asa foi decepada pelo cerol.

– Então o senhor concorda comigo?

– Em absoluto, meritíssimo. Estes casos são excepcionais e devem ser assim tratados. O perigo é tornar a exceção a regra.

– Mas eu não estou fazendo isso. Estou fazendo justiça ao papagaio e à pessoa que o ama.

– Justiça a quem?

‐ A ambos! – Responde o juiz.

– O papagaio tinha a possibilidade e o direito de voltar a ser livre. Com a decisão de vossa excelência, ele teve sua liberdade roubada duas vezes: primeiro pelo traficante e depois, pelo judiciário.

– Mas se ele for solto, morrerá.

– Apenas se for solto imediatamente.

– Então o senhor concorda comigo: o papagaio fica com a vovó.

– Não, não concordo!

– Então, não entendi.

– Senhor juiz, existem dois padrões de captura no tráfico: de filhotes e de animais adultos. Papagaios, araras, psitacídeos em geral, são capturados filhotes, enquanto passarinhos, por exemplo, são capturados adultos e privilegiando-se os machos.

– Isso eu não sabia.

– Daí a importância de se respeitar a reserva técnica, percebe?

– Mas qual diferença isso faz?

– Muita. Se o animal já vivia em liberdade, como é o caso dos pássaros, ele precisa simplesmente recuperar o condicionamento físico e poderá ser solto. Afinal, ele já sabe viver na natureza. Já papagaios, que foram capturados filhotes, terão que aprender a se alimentar, voar e evitar predadores.

– Isso é muito difícil. Eles não vão sobreviver.

– Na verdade, sobrevivem sim. Seja no Brasil ou no exterior, existem inúmeros trabalhos de reintrodução que comprovam isso. Quando a gente precisa ensinar e dar suporte para o animal passar a viver sozinho, chamamos de soft release ou soltura suave. Papagaios são soltos por soltura suave enquanto passarinhos, comumente, por hard release ou soltura abrupta.

– São anos de cativeiro contra o quê? Meses ou um ano de treinamento?

– A conta não é essa. São milhões de anos de evolução e seleção natural contra poucos anos de cativeiro. Por exemplo: por que um papagaio consegue voar?

– Não é preciso adentrar em reserva técnica para responder a essa pergunta. Porque tem asas. – Diz o juiz, quase se divertindo.

– Não! Se fosse apenas isso, todos nós poderíamos voar por aí, bastando acoplar asas aos nossos braços. As aves voam em decorrência de adaptações fisiológicas e morfológicas moldadas por milhões de anos: asas, por óbvio, mas também ossos pneumáticos, ausência de bexiga urinária, osso esterno com quilha, músculos peitorais desenvolvidos, sacos aéreos, corpo aerodinâmico, bico, etc. Quando a colocamos em uma gaiola, todas estas adaptações perdem o sentido, assim como sua própria vida.

– Está certo. Mesmo assim, o parágrafo 2° do artigo 29 Lei nº 9.605 de 1998 me permite deixar de aplicar a pena.

– Correto. Mas vamos lembrar que a pena é de detenção de seis meses a um ano e multa.

– E daí?

– E daí, meritíssimo, que a apreensão dos animais está prevista no artigo 25 da mesma lei.

– E…?

– E no artigo 25 não existe a possibilidade de o papagaio ficar com a vovó, sobrinho, tia, tio ou qualquer um que o detinha ilegalmente. No artigo 25 está claro que o animal deverá ser prioritariamente libertado no ambiente natural.

– Mas o senhor tem que admitir que em alguns casos não dá para libertar o animal.

– Sim, mas nestas situações ele deverá ser entregue a zoológicos ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados.

– Então existe a possibilidade.

– Exato. Mas vossa excelência percebe que a vovó ou qualquer parente não são exatamente pessoas habilitadas, né? Nem, tampouco, casas ou apartamentos são zoológicos.

– Na verdade, eu sei disso e por isso minha decisão não é calcada na Lei de Crimes Ambientais.

– Mas sendo a Lei de Crimes Ambientais a lei específica sobre o tema, ela deveria ser a adotada. Pelo princípio da especificidade e estando a conduta prevista em lei específica, como vossa excelência afasta a lei que deveria balizar a decisão?

– Na verdade, eu me baseio na dignidade ecológica da pessoa humana.

– Engraçado, até então nunca havia ouvido falar nisso…

– É que eu considero a afetividade entre a pessoa e o papagaio e entre ele com a pessoa.

– Então, vossa excelência está misturando dois conceitos: afetividade e ecologia. Sobre a ecologia, a Constituição Federal determina que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Isso significa que os seres vivos que ali nasceram desenvolvem seu serviço ambiental para todos, inclusive os seres humanos. Isso sim é priorizar a dignidade. A afetividade não pode ser uma cortina para esconder a tragédia do tráfico, em que o cativeiro doméstico é o final da cadeia e o vetor da força motriz do comércio ilegal de animais silvestres. Ademais, a afetividade pode ser usada como justificativa para descumprir a lei?

– Não foi isso que eu disse. – Retruca o juiz.

– É que eu fiquei imaginando. Sequestrar bebês é crime e sequestrar crianças também. Mas caso ocorresse um sequestro e ele só fosse descoberto, digamos, uns 15 anos depois e já houvesse afetividade; sentimentos entre a criança e aquela pessoa que a criou. Isso afastaria o crime de sequestro?

– Mas aí é diferente.

– Com todo respeito senhor juiz, mas as circunstâncias são análogas: o papagaio é capturado filhote, sua captura é crime e a justificativa para se manter a conduta criminosa é a afetividade. Se a criança não teve a oportunidade de conhecer o amor de seus verdadeiros pai e mãe, ao papagaio isso também lhe foi roubado.

– Então o senhor quer dizer que, do ponto de vista técnico, os papagaios podem voltar à natureza?

– Sim, meritíssimo!

– Também argumenta que em caso de condescendência do judiciário, a decisão deveria se limitar a deixar de aplicar a detenção e a multa, conforme dispõe o artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais?

– Sim, meritíssimo!

– Que o animal não poderia ficar com a pessoa porque isso não está previsto no artigo 25 também da Lei de Crimes Ambientais?

– Sim, meritíssimo!

– Que eu deveria usar o princípio da especificidade das normas e me pautar na Lei de Crimes Ambientais?

– Sim, meritíssimo!

– Finalmente, que se eu falar em afetividade para afastar o crime e devolver o animal, estarei sendo especista porque em situação idêntica, mas com humanos, não decidimos assim?

– Com todo respeito, sim, meritíssimo!

– Então, o que o senhor deseja?

– Desejo apenas que a lei e a Constituição Federal sejam respeitadas, que o papagaio tenha o direito de nascer, crescer e viver livre, mas que, se em algum momento, o crime o retirou da natureza, que a justiça possa reestabelecer o estado de direito. O direito dele de não ser submetido à crueldade e não existe crueldade maior que a perda injusta da liberdade. Também que se respeite o direito de todos os cidadãos de apreciarem esses animais em liberdade, além do direito, também constitucional, deles retornarem ao ambiente natural para cumprirem sua função ecológica, como determina o artigo 225.

– E o que eu posso fazer por isso?

– Acho que é simples, meritíssimo. Compreenda que quem mantém um papagaio em cativeiro roubou dele os melhores anos de sua vida, que a condescendência com quem cometeu esse crime já está prevista na possibilidade de não aplicação da pena e que a liberdade é um direito do papagaio e uma dívida nossa pelo crime que cometemos e, no qual, ele é a vítima. Seja a voz dele, pois esse animal que, embora fale, necessita de quem clame por justiça por ele.

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