Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Base da alimentação de vários povos, o milho (Zea mays – Poales: Poaceae). tem origem americana, tendo sido cultivado pelos astecas, maias e incas, dentre outros povos. Quando os descobridores portugueses chegaram no Brasil, o milho já era um cultivo bastante disseminado por aqui. Sabor e versatilidade, aliados à influência das culinárias indígena e africana, o tornaram uma das grandes estrelas das Festas Juninas brasileiras, por exemplo.
Da América para o mundo, o milho conquistou paladares diversos, sendo que espanhóis e portugueses tiveram papel importante em sua disseminação. Há muitas variedades de milho e, aparentemente, sua origem precisa ainda é incerta. Certo mesmo é que a planta, na forma que conhecemos, não cresce de maneira selvagem e, sim, precisa ser cultivada. E, dentre os povos que melhor fizeram esse cultivo, estão os maias.
Uma das mais destacadas culturas da América pré-colombiana, a civilização maia é admirada por sua língua escrita, arte, arquitetura, matemática e agricultura. Inicialmente estabelecidas durante o período pré-clássico (1.000 a.C. a 250 d.C.), muitas cidades maias atingiram o seu mais elevado estado de desenvolvimento durante o período clássico (250 d.C. a 900 d.C.), continuando a se desenvolver no período pós-clássico, até a chegada dos espanhóis.
No auge, era uma das mais densamente povoadas e culturalmente dinâmicas sociedades do mundo. Embora não tenham desaparecido de todo, os povos maias sofreram grande declínio com a colonização espanhola na América. Hostis ao domínio espanhol, a defesa maia contra os invasores foi facilitada pois, ao contrário dos impérios inca e asteca, não havia um único centro político que, uma vez derrubado, representasse o fim da resistência. Os conquistadores espanhóis tiveram que sobrepujar, uma a uma, as várias unidades políticas independentes que formavam o império maia. Os últimos estados maias apenas se renderam em 1697, após quase dois séculos de resistência.
Além de caçarem e pescarem com perícia, domesticarem o peru e algumas espécies de abelhas, cultivarem algodão, tomate, cacau, batata e frutas diversas, os maias enriqueciam sua dieta com três variedades de milho cultivadas. E é exatamente aí que entrou na história uma certa espécie de inseto.
Peregrinus maidis é uma cigarrinha da família Delphacidae (ordem Hemiptera) com distribuição cosmopolita, mais prevalente em áreas tropicais e subtropicais da África, América, Ásia, Austrália, Índia, ilhas dos oceanos Atlântico e Pacífico – vem daí o nome do gênero, originário do latim peregrinus, peregrino, o que peregrina; romeiro, indivíduo andante, que viaja, que empreende longas jornadas. A ligação desse inseto com o milho é tão efetiva que à espécie foi conferido o nome comum corn planthopper (equivalente à “cigarrinha-do-milho”) por parte da Entomological Society of America – além, é claro, do epíteto específico maidis, que é uma latinização do nome do milho em taino, MAHIS, e significa “do milho”.
Implicado na transmissão de doenças virais às plantas, como o vírus-do-mosaico-do-milho (MMV), a cigarrinha Peregrinus maidis é um dos insetos mais estudados do planeta. Em que pese sua importância como praga do milho, também ocorre em muitas outras espécies vegetais, como o sorgo, Sorghum sp. (Poaceae) [1] [2] [3]. Os exemplares medem de 2 a 4 centímetros da cabeça até a extremidade do abdome, sendo as fêmeas maiores. As asas anteriores são mais longas (6 a 7 centímetros) que o corpo e, como em todos os integrantes da família dos delfacídeos, as pernas posteriores apresentam um esporão [1]. As fêmeas depositam de 20 a 30 ovos e o desenvolvimento da ninfa até o adulto leva aproximadamente 20 dias. Como em muitos delfacídeos, em Peregrinus maidis há indivíduos adultos em que as asas são bem menores, chamados de braquípteros, enquanto os de asas normais são chamados de macrópteros [1] [2].
Já foi sugerido que a chegada de Peregrinus maidis na América Central contribuiu para o colapso da civilização maia, cuja economia era, em grande parte, baseada no cultivo do milho. Acredita-se que o MMV tenha sido inicialmente soprado do Caribe para o continente e, depois, transmitido pela cigarrinha às plantações durante o período clássico da civilização maia. A partir de evidências baseadas em estudos etnográficos e biológicos sobre as raças de milho, estima-se que a produção tenha sido duramente afetada, até mesmo porque as raças de milho cultivadas pelos maias não possuíam resistência ao vírus, ao contrário de outras variedades do Caribe e da América do Sul. O milho resultante, nos casos em que era possível alguma colheita, era mirrado, estranho – fato que teria sido interpretado como um cruel presságio de que os deuses haviam abandonado a produção de milho.
O MMV é prevalente em áreas úmidas ou irrigadas, com cultivo intensivo e durante todo o ano. Áreas mais secas não teriam sido tão prontamente afetadas e, portanto, argumenta-se que os maias teriam migrado para essas novas áreas e superado a crise [4]. É interessante imaginar que o aguerrido povo que fez frente, séculos mais tarde, ao poderio colonizador espanhol, quase sucumbiu ante à chegada de um pequeno inseto [1]. Ciência e cultura sempre caminhando lado a lado.
Para espécies com ampla distribuição geográfica, muitas vezes é difícil se determinar qual teria sido, efetivamente, a localidade de origem. No caso de Peregrinus maidis, presume-se que a África seja o berço da espécie, em que pese a ligação com o milho, de origem americana. Uma evidência para isso é o fato da única outra espécie conhecida do gênero, Peregrinus iocasta, ter ocorrência restrita à África Central e Ocidental [5].
O Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural (Labeuc) do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) realiza inventários da fauna de insetos em diversas localidades do Estado do Rio de Janeiro. Nessas andanças, frequentemente nos deparamos com a cigarrinha Peregrinus maidis, que está bem distribuída, ocorrendo até mesmo em áreas urbanas, longe de plantações comerciais. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, a cigarrinha por aqui não tem um nome comum (no Brasil, cigarrinha-do-milho é nome de uma espécie de outra família, o cicadelídeo Dalbulus maidis). Cidadão do mundo, com histórias interessantes e destacada importância econômica, o pequeno inseto aqui apresentado bem que poderia ser conhecido entre nós como o “peregrino-do-milho”, em respeito a seu nome científico e sua história viajante.
Referências
[1] Da-Silva, E.R.; Codá, V.; Trindade, D.P, & Coelho, L.B.N. 2017. A fêmea de Peregrinus maidis (Ashmead, 1890) em Itatiaia, Estado do Rio de Janeiro (Insecta: Hemiptera: Delphacidae). In: Mônico, A.T. et al. (ed.), Anais do VI SIMBIOMA: Simpósio sobre a Biodiversidade da Mata Atlântica. SAMBIO, Santa Teresa, p. 336-346.
[2] Tsai, J.H. & Wilson, S.W. 1986. Biology of Peregrinus maidis with the descriptions of immature stages (Homoptera: Delphacidae). Annals of the Entomological Society of America 79 (3):395-401.
[3] https://prezi.com/k9h0afhpt0m1/le-declin-des-mayas
[4] Brewbaker, J.L. 1979. Diseases of maize in the wet lowland tropics and the collapse of classic Maya civilization. Economic Botany 33:101-118.
[5] Nault, L.R. 1983. Origins of leafhopper vectors of maize pathogens in Mesoamerica. In: Gordon, D.T. et al. (ed.), Proceedings International Maize Virus Disease Colloquium and Workshop. Ohio Agricultural Research and Development Center, Wooster, p. 75-82.
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