Por Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Há mais de 12 milhões de anos, um vulcão submarino entrou em erupção no leito do oceano Atlântico. O acúmulo de material sólido fez surgir uma gigantesca montanha, cuja base está a 4 mil metros de profundidade. Novas atividades vulcânicas e processos erosivos moldaram as partes emersas, formando o arquipélago de Fernando de Noronha como o vemos hoje.
Apesar de conhecidas desde o século 16, as mais populares ilhas oceânicas do Brasil ainda oferecem inúmeras fronteiras a serem pesquisadas. As informações e os dados científicos sobre sua biodiversidade são restritos, basicamente, à vida fora da água e às espécies marinhas de ambientes rasos.
Em um recente esforço de cientistas brasileiros e americanos dispostos a ir um pouco mais fundo nas claras águas de Fernando de Noronha, quatro novas espécies de peixes foram descobertas e estão sendo descritas. Houve ainda registros inéditos para a região de 15 espécies de peixes. Quatro delas possuem características físicas diferentes de seus padrões e, por isso, os pesquisadores não descartam a possibilidade de serem novas espécies ou subespécies.
Esses primeiros resultados da expedição realizada entre 15 de outubro e 1 de novembro de 2019 foram publicados mês passado na revista científica Neotropical Ichthyology, da Sociedade Brasileira de Ictiologia.
“O nosso objetivo principal era realizar um grande levantamento sobre a diversidade de peixes nos ambientes mesofóticos, que compreendem recifes do arquipélago com profundidade entre cerca de 30 e 150 metros, e propor estratégias de proteção dessas espécies e ecossistemas ainda pouco conhecidos por nós”, afirma o oceanógrafo e pesquisador da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Caio Pimentel, que integrou a expedição. Esse foi o primeiro levantamento sistemático da biodiversidade de peixes dos ecossistemas mesofóticos de Fernando de Noronha.
Os recifes de ambientes mesofóticos do arquipélago estão nas chamadas quebras da plataforma e nas paredes que levam ao fundo oceânico. “As quebras são as bordas da plataforma horizontal. É como se fossem as bordas da Chapada dos Guimarães, só que caso você se sente nela para olhar para baixo, estaria olhando para paredões íngremes de 4 mil metros de altura. Já as paredes são esses penhascos de 90 graus que vão rumo às profundezas abissais”, explica o biólogo responsável por chefiar a expedição, Hudson Pinheiro.
Pesquisador da ONG Associação Voz da Natureza e da Academia de Ciências da Califórnia, Pinheiro também faz parte da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. Essa foi a primeira vez que cientistas mergulharam nas paredes e nas quebras de plataforma de Fernando de Noronha.
Segundo Caio Pimentel, os pontos de mergulho e de filmagens foram previamente determinados com base em informações de estudos já realizadas no arquipélago, além de consultas a pesquisadores, mergulhadores e pescadores da região. A maioria dos pontos em que a pesquisa foi realizada fica fora da área do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, que está restrito às zonas rasas de até 50 metros de profundidade e, portanto, sem proteção das atividades pesqueiras e extrativistas.
Além da expedição de 17 dias, que envolveu 16 profissionais, os pesquisadores trabalharam mais de 12 meses em atividades de taxonomia (classificação) das espécies, comparando as características morfológicas dos peixes registrados com centenas de outros para comprovar se de fato se tratavam de novos animais para a Ciência. O projeto, financiado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza e pela iniciativa Hope for Reefs, da Academia de Ciências da Califórnia, ficou sob a responsabilidade da ONG capixaba Associação Voz da Natureza. Somente as atividades de campo custaram cerca de R$ 200 mil por dia.
Novas espécies
As espécies descritas pela equipe englobam um peixe gobídeo (Psilotris sp.), um peixe-pedra (Scorpaena sp.), um peixe-lagarto (Synodus sp.) e um peixe-afrodite (Tosanoides sp.). Todas são dos ecossistemas mesofóticos.
Os peixes-pedra são venenosos e se camuflam em recifes de coral para caçar e se esconder de predadores. Os peixes-lagarto também utilizam de camuflagem para, imóveis, abocanhar suas presas. Já os gobídeos se caracterizam por serem pequenos e se alimentarem de microrganismos como zooplâncton e microinvertebrados. A nova espécie de peixe-afrodite é a segunda do gênero descoberta no Oceano Atlântico. A primeira, Tosanoides aphrodite, também foi encontrada no Brasil, no arquipélago de São Pedro e São Paulo, em 2018.
Os peixes de cinco das 15 espécies registradas pela primeira vez em Fernando de Noronha são de ecossistemas eufóticos, ou seja, dos ambientes mais rasos e que recebem maior incidência de luz solar – onde também foram realizados alguns trabalhos. Essa constatação indica que mesmo as áreas marinhas mais pesquisadas do arquipélago ainda têm grande potencial para novas descobertas e necessitam de mais atenção dos cientistas.
Todo o arquipélago está em uma área de proteção ambiental federal (APA de Fernando de Noronha – Rocas – São Pedro e São Paulo), onde também está inserido o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, que abrange 70% da ilha principal e as vinte demais. Com as novas descobertas na expedição, o número de espécies de peixes marinhos em Fernando de Noronha chega a 250.
Abaixo, o momento da descoberta de uma das novas espécies de peixes (Tosanoides sp.) nos recifes profundos de Fernando de Noronha:
https://youtu.be/1xYOPo1c0EA
Drones submarinos e câmeras com iscas
Além do ineditismo da pesquisa em recifes mais profundos de Fernando de Noronha, a equipe teve a oportunidade de utilizar uma rara diversidade de dispositivos em expedições dessa natureza no Brasil. Ao convencional equipamento de mergulho autônomo (Scuba), os cientistas também utilizaram rebreathers fornecidos pela Academia de Ciências da Califórnia. “Por não soltar bolhas, o gás respirável é reciclado com um filtro de gás carbônico e, com isso, eles permitem que consigamos realizar mergulhos de até 6 horas com um volume relativamente pequeno de gases”, explicou Pinheiro.
Ainda para os registros dos peixes, também foi empregado um drone submarino equipado com câmeras de vídeo e sensores que é operado por controle remoto (ROV). “Um piloto-pesquisador controla e registra as imagens através de um computador em uma embarcação”, relata Pinheiro. Uma outra metodologia para o registro de imagem usada foi a BRUVS. De acordo com o chefe da expedição, tratam-se de “estruturas metálicas que possuem câmeras e uma bolsa que contém iscas com a finalidade de atrair peixes. É uma excelente técnica para registrar tubarões, peixes de grande porte, espécies raras e ameaçadas de extinção.”
A utilização de cada um desses equipamentos e técnicas, seguindo Pimentel, dependia do local a ser pesquisado e do objetivo para aquele ponto. “Para os levantamentos realizados com sistemas de filmagens remotos com isca, os BRUVS, a ideia era contemplar diferentes habitat bentônicos, ou seja, fundos com recifes, bancos de macroalgas, bancos de rodolitos [algas calcárias] e fundos de areia, ao longo de uma faixa de profundidade entre 30 metros e 90 metros. Os pontos de ROV e de mergulho visavam caracterizar os ambientes e a diversidade dos ecossistemas mais profundos, como os da quebra da plataforma e das paredes”, afirma o pesquisador.
As explorações mais profundas realizadas pelos mergulhadores chegaram a 110 metros de profundidade. Já as filmagens remotas realizadas pelo drone submarino alcançaram 140 metros.
Lixo no fundo do mar
Embora o foco principal da expedição fosse conhecer os peixes que habitam os recifes mais profundos de Fernando de Noronha, os pesquisadores não fecharam os olhos para a poluição encontrada durante os trabalhos e citaram o problema no artigo científico. Eles relataram ter encontrado lixo plástico e detritos de pesca em 6% e 18% dos censos visuais, respectivamente, nos ecossistemas mesofóticos explorados.
“Embora já tenham sido considerados refúgios em potencial para organismos de águas rasas e menos suscetíveis aos impactos humanos e naturais, os recifes mesofóticos estão cada vez mais sendo reconhecidos como ecossistemas únicos, abrigando comunidades de vida marinha distintas e independentes, que também são impactadas e precisam de proteção tanto quanto recifes de águas rasas”, destacaram na publicação. Um dos motivos apontados pelos cientistas para o problema do lixo é o comércio, em Fernando de Noronha, de mercadorias que utilizam plástico em suas embalagens.
A polêmica da pesca da sardinha
Entre os objetivos da geração de conhecimentos sobre os ecossistemas dos recifes profundos de Fernando de Noronha está subsidiar, além de políticas de conservação, o desenvolvimento e o manejo sustentáveis dos recursos pesqueiros e do turismo da região. Segundo Pinheiro, parte da pesca realizada no arquipélago é dependente dos peixes de fundo, que vivem junto ao leito arenoso, em rochas ou recifes, uma vez que não se pode pescar nos pontos mais rasos por causa da existência do parque nacional marinho. Portanto, os ecossistemas mesofóticos, sem proteção legal, acabam sofrendo.
“A biodiversidade dos recifes é muito vulnerável à pesca devido ao isolamento geográfico do arquipélago. Uma vez impactados, os recursos-alvo dependem deles próprios para se recuperarem. Assim, a criação de áreas de reprodução de pescado, onde os peixes possam crescer e multiplicar, favorece o desenvolvimento sustentável da pesca na região”, explica Pinheiro.
Além da preocupação com a biodiversidade dos recifes profundos de Fernando de Noronha, os pesquisadores manifestaram contrariedade à decisão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) de liberar a pesca da sardinha em dois pontos (praias da Caieira e do Leão) dentro do parque nacional. O anúncio foi feito em 30 de outubro pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e repercutida em redes sociais pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo secretário de Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Júnior.
O ICMBio não informou se a decisão já está em vigência nem deu detalhes sobre seu funcionamento. O que se sabe é que as autorizações são fornecidas por meio de termos de compromisso a serem assinados entre pescadores artesanais da ilha e o chefe do Núcleo de Gestão Integrada de Fernando de Noronha, João Luiz do Nascimento da Rocha, responsável pelo parque nacional e pela APA. “É um precedente inacreditável você poder entrar em um parque nacional para pescar. É inaceitável. Os pescadores já têm a parte fora do parque, a área de proteção ambiental, para pescar e eles também vivem do turismo e de outras fontes de renda mais sustentáveis”, desabafa Pinheiro.
Para o pesquisador, a exploração da sardinha pode afetar espécies locais, principalmente os tubarões que frequentam os recifes. “Grandes cardumes de peixes de passagem, que, além de terem muita importância para pesca, também satisfazem turistas e mergulhadores recreativos, deixariam de ser atraídos para a região”, afirma.
Em 6 de novembro, o secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, Djalma Souto Maior Paes Júnior, enviou um ofício para Rocha solicitando informações e esclarecimentos sobre autorização da pesca da sardinha. Fernando de Noronha é parte do território pernambucano e o secretário é conselheiro do parque nacional e da APA. Segundo o superintendente de Conservação da Biodiversidade da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, Maurício Guerra, até o momento não houve resposta ao pedido.
“Fomos surpreendidos com a decisão. Enquanto não tivermos acesso aos estudos que embasam essa liberação para termos certeza que não haverá impactos negativos aos ecossistemas, vamos ser contrários a ela”, afirma o superintendente.