
Por José Anselmo d’Affonseca Neto
Médico veterinário do Laboratório de Mamíferos Aquáticos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (LMA-Inpa)
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O Projeto Peixe-boi teve seu início em 1973, quando uma estudante de biologia canadense, Diana Magor, resgatou em Letícia, na Colômbia, um filhote de peixe-boi de um pescador. Como não encontrava ali condições para manter o animal, mudou-se logo em seguida para Manaus (AM), encontrando no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) o apoio necessário para a manutenção não só daquele filhote como de muitos outros que vieram posteriormente. Desses filhotes surgiu o principal estímulo para as ações de pesquisa e de conservação com a espécie, tão emblemática e ameaçada, e que à época muito pouco ou quase nada se sabia sobre a sua biologia. Liderados pelo então estudante de doutorado canadense, Robin Best, um grupo de pesquisadores brasileiros e do Canadá iniciaram os primeiros trabalhos científicos sobre a espécie.
O peixe-boi-da-Amazônia (Trichechus inunguis) é um mamífero aquático endêmico dos rios da bacia amazônica. Pertence a ordem Sirenia, a qual recebeu esse nome por causa da lenda das sereias. O peixe-boi é o maior mamífero aquático da Amazônia, chega a medir três metros e pesar mais de 400 quilos, sendo encontrado em quase todos os tributários do rio Amazonas, na Colômbia, Peru, Equador e na Amazônia brasileira. É um animal herbívoro, que se alimenta de plantas aquáticas e semiaquáticas, raízes e vegetação de áreas alagadas, controlando a quantidade de plantas na superfície dos rios e lagos amazônicos.

José Anselmo d’Affonseca Neto
Assim como sua migração, a reprodução também está intimamente relacionada à variação no nível dos rios da bacia amazônica. Se reproduz na época de enchente e cheia e, consequentemente, de maior disponibilidade de alimento para a espécie. As fêmeas geram um filhote a cada gestação, que dura aproximadamente 12 meses. O filhote é amamentado por cerca de dois anos.
Foi intensamente caçado desde os séculos passados para consumo de sua carne e utilização da gordura e couro em larga escala comercial. Nos dias atuais, a caça ainda persiste, não apenas para a subsistência, mas, principalmente, para manter um comércio ilegal da carne. A degradação do habitat em virtude dos desmatamentos e das construções de hidrelétricas são ameaças relevantes. Além disso, a utilização crescente de redes de espera aumentou os registros de captura acidental de filhotes, sendo hoje a principal causa para resgates desses pequenos peixes-bois.
O Laboratório de Mamíferos Aquáticos do Inpa atualmente conta com um plantel de mais de 60 peixes-bois, com cerca de 20 filhotes sendo amamentados artificialmente. Eles mamam até os dois anos. A grande maioria dos animais chegou resgatado e com poucos dias de vida. O número de filhotes resgatados vem crescendo nos últimos 20 anos, com uma média atualmente de 12 filhotes por ano.

Nos históricos que acompanham os resgates no passado, sempre notávamos indícios e informações de provável matança das mães. Porém, nos últimos 10 anos, assistimos a um incremento nos relatos de filhotes encontrados emalhados em redes de espera, localmente conhecidas por malhadeiras. Em geral, esses filhotes emalhados apresentam boas condições corporais e ausência de ferimentos sérios. O que permitiria que fossem liberados imediatamente no mesmo local onde foram encontrados. A dificuldade em avistar as mães, que são muito ariscas, tem levado as pessoas que os resgatam a acreditar que as mães não estejam no local e que o filhote estaria abandonado à própria sorte. No intuito de ajudar e salvar o recém-nascido, achamos que os pescadores estão, na verdade, separando os filhotes de suas mães. Uma situação que traz obviamente muitas consequências negativas.

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Devido ao estresse extremo da separação e a não adaptação à fórmula láctea fornecida (substituto do leite materno), alguns filhotes adoecem e vão à óbito. Para a espécie é mais um indivíduo que é retirado de sua população na natureza. Além disso, temos as dificuldades em relação às limitações de instalações e aos altos custos da manutenção desses filhotes.
Com o intuito de reduzir essas ocorrências, o Laboratório de Mamíferos Aquáticos do Inpa juntamente com a Associação Amigos do Peixe-boi (Ampa) promoveram uma campanha e elaboraram uma cartilha e um cartaz com orientações, em uma linguagem simples e objetiva, que pudesse ajudar os pescadores na avaliação da condição do filhote e na decisão de devolvê-lo imediatamente ao local onde foi encontrado emalhado. Nessa cartilha, além de algumas informações gerais sobre a espécie, apresentamos imagens de dois filhotes, um em boas condições e outro em más condições físicas, visando dar condições de uma avaliação visual rápida pelo pescador.
Queremos com isso levar informação à população ribeirinha e conscientizá-los de que o melhor local para um filhote de peixe-boi se desenvolver é no ambiente natural e ao lado de sua mãe, se preparando de todas as formas para uma vida plena e para desempenhar seu importante papel no ambiente aquático amazônico.
Ao longo dos últimos cinco anos, conseguimos reintroduzir 32 peixes-bois na natureza. Esse é um desafio imenso, pela quantidade de recursos e pelos esforços gigantescos, mas que se torna urgente e necessário dado à chegada de tantos filhotes resgatados ao laboratório.
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