Nem bem acabou o Carnaval e as pragas já se espalham por aqui

Na sabedoria popular, costuma ser dito que o ano só começa mesmo depois do Carnaval. Muita gente se incomoda com a expressão, alegando que ela representa uma espécie de grito dos que não querem trabalhar, o que não poderia estar mais equivocado. Na real, na minha percepção, tal fala tem muito mais a ver com a dificuldade em se conseguir as coisas. Já tentou marcar uma consulta médica ou odontológica em janeiro? Pois é. Além disso, algumas categorias profissionais ficam mesmo em recesso no início calendárico do ano, como parlamentares e professores de ensino fundamental e médio – embora esses últimos, com certeza, estejam trabalhando o tempo todo.

Assim, não me incomoda admitir que o ano começou agora há pouco, mais precisamente na Quarta-Feira de Cinzas. Porém, o recém-finalizado Carnaval ainda está fresco na memória e no coração dos foliões. O que representa uma ótima chance para se falar de insetos. Já mostrei por aqui [1] que o grupo animal mais representativo do planeta tem artimanhas que lembram o espírito satírico,  irreverente e trapaceiro (no bom sentido) dos festejos de Momo. E isso pode ser visto até nas escolas de samba.

As abelhas na Porto da Pedra

Este ano, no desfile do grupo principal do Rio de Janeiro, as abelhas (ordem Hymenoptera, família Apidae) foram lindamente representadas em um carro alegórico do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Porto da Pedra, simpática agremiação do município fluminense de São Gonçalo. A escola teve como enredo o Lunário Perpétuo, livro escrito por Jerônimo Cortés em 1594 e que, segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, foi a obra mais lida no Nordeste nos séculos 18 e 19, representando uma espécie de enciclopédia de costumes. As abelhas, com a rainha à frente da colmeia, foram mostradas no desfile por conta de sua forte ligação cultural com a humanidade. Infelizmente a Porto da Pedra acabou sendo rebaixada, a meu ver muito injustamente.

Já que, ousadamente e sem qualquer conhecimento de causa, me arrisquei a palpitar até no resultado da classificação, vou seguir na ousadia pós-carnavalesca e sugerir temas entomológicos para os desfiles futuros. (Alô carnavalescos, não deixem de me dar o crédito!) Que tal, por exemplo, abordar os esbeltos, longos, elegantes e ágeis louva-a-deus (ordem Mantodea), verdadeiros mestres-salas das matas? Ou, quem sabe, os multicoloridos besouros e borboletas enquanto representantes da nossa mega biodiversidade, exaltando os fundamentais papéis ecossistêmicos que desempenham?

Por falar nessa importância ambiental, seria lindo ver um desfile que tratasse da ligação dos insetos com as flores, enfatizando a explosão mágica da polinização e a coevolução.

Dentro dessa abordagem, parte significativa desse desfile sugerido poderia ser dedicada aos insetos que se alimentam de néctar, bem como suas adaptações morfológicas e comportamentais. Quem sabe até explorando a semelhança, ante aos olhos humanos, das mariposas-falcão (ordem Lepidoptera, família Sphingidae) com os beija-flores [2]. Alô Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, fica a dica.

As cigarrinhas e a agricultura

Saindo do sonho e voltando à realidade, já abordei por algumas vezes no Fauna News as cigarrinhas da família Delphacidae (ordem Hemiptera). Aqui na coluna, tratei do Peregrinus maidis, insetinho considerado praga no milho e em muitas outras culturas, e que causou problemas para os Maias [3], e no podcast “Silvestres”, no quadro “Fala, Professor!”, abordei o Leptodelphax maculigera [4], espécie africana recém-chegada ao Brasil e com tremendo potencial de espalhamento. Como essa cigarrinha tem potencial de transmissão de microrganismos patogênicos às plantas, está todo mundo com as barbas de molho. O primeiro registro em nosso país foi em Goiás [5], mas a espécie, que vem sendo chamada de cigarrinha-africana, foi posteriormente registrada em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul [6]. Da mesma forma do que ocorre em relação à Peregrinus maidis, o pessoal está preocupado com eventuais danos às plantações de milho [7].

Como desgraça pouca é bobagem, outra espécie da família Delphacidae, Metadelphax propinqua, a cigarrinha-das-gramíneas, também teve um importante registro no Brasil. Já se conhecia sua ocorrência por aqui [8], só que recentemente exemplares desse inseto foram encontrados em uma fazenda de produção de feno comercial no município de Chapecó (SC). Com potencial para ser considerada praga, tal cigarrinha foi observada se alimentando de grama-bermuda, das mais economicamente importantes variedades de pastagem no Sul do Brasil [9]. A espécie também costuma ser problemática às plantações de milho [10], além de ser potencial transmissora de doenças às plantas [8]. Metadelphax  propinqua é encontrada em diversas regiões do mundo, incluindo África, Austrália, Europa, América do Sul e Ásia.

Bom, a moral da história é que, como as cigarrinhas da família Delphacidae são conhecidas por causarem impactos significativos à agricultura, é importante monitorar esses insetos e, eventualmente, tomar medidas adequadas para tentar mitigar seus efeitos. Porém, é sempre bom realçar que as introduções faunísticas, que tanto medo provocam por conta do possível dano econômico advindo de novas pragas, não costuma ser “culpa” dos bichos envolvidos. Ou melhor, é culpa sim, mas da mais problemática e destruidora espécie do planeta. Assim, dentro do espírito inversivo do Carnaval, o título do texto de hoje pode ser considerado errado, pois “praga” mesmo é só o tal do Homo sapiens (ordem Primates, família Hominidae).

Referências

[1] https://faunanews.com.br/carnaval-dos-insetos-um-mundo-de-cores-formas-e-farsas/
[2] https://www.revistaabruxa.com/_files/ugd/b05672_f50d2899d0754456bdee5c2040d8c7c7.pdf
[3] https://faunanews.com.br/o-inseto-peregrino-que-quase-derrubou-o-imperio-maia/
[4] https://www.youtube.com/watch?v=wtnlUbQWaNQ&t=647s
[5] https://assets.researchsquare.com/files/rs-2818951/v1/5104f465-160a-4d65-81b6-aec942834573.pdf
[6]https://publicacoes.epagri.sc.gov.br/nt/article/download/1763/1602/13165
[7] https://revistacultivar.com.br/artigos/cigarrinha-africana-leptodelphax-maculigera-encontrada-em-plantacao-de-milho-no-brasil
[8] https://sites.udel.edu/planthoppers/north-america/north-american-delphacidae/genus-metadelphax-wagner-1963/
[9] https://link.springer.com/article/10.1007/s13744-023-01116-3
[10] https://controle.canalideal.com.br/noticia/pesquisadores-identificam-nova-praga-de-pastagens-em-santa-catarina-registros-do-inseto-foram-feitos-no-oeste

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