Por Vitor Calandrini
Primeiro-tenente da PM Ambiental de Paulo, onde atua como chefe do Setor de Monitoramento do Comando de Policiamento Ambiental. É mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
nalinhadefrente@faunanews.com.br
Realmente o mundo é cheio de surpresas – tristes surpresas, às vezes – e quando achamos que na evolução humana estamos caminhando para o entendimento de que os animais surgem em discussões políticas e sociais como seres sencientes, ou seja, que possuem sentimentos e dessa forma devem ser considerados como tal, e até mesmo sujeitos de direitos, temos a sanção da Lei Estadual nº 8.657, de 24 de janeiro de 2020, do estado de Sergipe.
Essa lei praticamente fomenta a rinha de galos, uma das formas mais cruéis de maus tratos a animais.
Ao ficar sabendo de uma lei que regulamenta o manejo e a criação de uma espécie animal, pensei: nossa que legal, mais um movimento positivo de nossa sociedade para proteção animal. Mas ao entender o sentido real dessa lei, cheguei a pensar que era brincadeira, que não poderia existir uma lei nesse sentido após a Constituição Federal, a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) e até mesmo o Decreto Federal nº 6.514/2008. Infelizmente ,ela não só é real, como está em vigência.
Mas o que há de tão errado com essa lei?
Pois bem, deixarei aqui um breve comentário. Com relação a seus dois primeiro artigos, nada de anormal, exceto o fato de a nomenclatura usada para definir o galo Mura como “galo de combate”. Isso mesmo leitor! Galo de combate.
Agora, minha primeira pergunta é: uma lei que visaria proteger a fauna utilizaria essa terminologia pretendendo o quê? A proteção da fauna ou o estímulo à rinha, o que por lei é crime e constitucionalmente ilegal?
Mas vamos aos seus primeiros artigos:
Art. 1º – Fica autorizada a criação, manejo e realização de exposição de aves da Raça Mura – Galo de Combate, no âmbito do Estado de Sergipe, nos termos estabelecidos na Portaria nº 1.998, de 22 de novembro de 2018, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA.
Art. 2º – Deve ser permitido apoio amplo e irrestrito aos criadores, possuidores e expositores de aves da Raça Mura, no sentido de realizarem feiras e exposições públicas, que devem acontecer em recintos ou locais apropriados, nas sedes das Associações ou em instalações adequadas para essa finalidade.
Parágrafo único. A realização de exposições de que trata o caput desse artigo deve estar condicionada à prévia comunicação e autorização do órgão ambiental competente.
Até aqui, podemos dizer “tudo bem, a nomenclatura é temerária, mas ainda tem um viés protetivo”. Sendo assim, qual o grande problema?
Pois bem, agora veja o que foi sancionado no Art.3°:
Art. 3º – Havendo impossibilidade do Estado em cumprir o que rege a Lei (Federal) nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, em seu art. 25, §§ 1º e 2º, com alterações da Lei (Federal) nº 13.052, de 08 de dezembro de 2014, no tocante à destinação das aves resultantes de apreensões, devem as mesmas ficar a cargo do proprietário, na condição de "fiel depositário", desde que o mesmo esteja vinculado a Associação dos Criadores e Preservadores de Aves da Raça Mura do Estado de Sergipe.
Entenderam o que está escrito nas entrelinhas?
Se uma pessoa for presa em caso de maus tratos, esses galos (em situação de rinha) devem ser devolvidos ao proprietário, ou seja, à própria pessoa que estava colocando essas aves para a briga, criando assim um círculo vicioso de maus tratos: galos brigam, a fiscalização age, apreende esses galos e tem o dever legal de devolvê-los aos criminosos.
Se essa temática é um problema de nível estadual. Inicialmente, o Estado deveria se preocupar com um local para destinação dessas apreensões e não legislar para beneficiar infratores ambientais que usam desculpas de desporto ou cultura para ver animais brigando. Até quando vamos nos apoiar em desculpas como “eventos culturais” para permitir atrocidades ambientais?
A verdade é uma só: leis como essa são um retrocesso ao bem estar animal e fragilizam consideravelmente os órgãos de fiscalização, pois perdem uma capacidade efetiva para combate ao crime ambiental. Vamos torcer para, o quanto antes, essa lei perca vigência e nenhuma outra nesse sentido volte a existir.