Por Roberto Cabral Borges
Biólogo, mestre em Ecologia e coordenador de Operações de Fiscalização do Ibama
nalinhadefrente@faunanews.com.br
As lutas entre animais, em especial as brigas de galo e de canários, constituem prática cruel, mas que ainda conta com muitos adeptos no país. As rinhas são proibidas pela Constituição Federal e também pelo artigo 32 da Lei nº 9.605 de 1998. Ademais, os animais utilizados não possuem instinto combatente como alardeiam aqueles que cometem e incentivam esse crime. Eles possuem instinto territorialista, ou seja, defendem seu território. E esse instinto territorialista é desvirtuado para permitir a contenda.
Quanto ao aspecto legal, a Lei n° 9.605 de 1998 criminaliza o ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Observa-se, portanto, que tanto o galo quanto o canário-da-terra, espécie silvestre nativa, são protegidos pelo referido artigo. Não obstante a total ilegalidade da atividade, a mesma alega se basear em uma premissa de instinto combatente dos animais. O referido instinto combatente é, na verdade, o instinto de territorialidade manipulado para favorecer a contenda.
Esse instinto de territorialidade existe devido à competição por recursos. Quando ocorre dentro da mesma espécie é a chamada de competição intraespecífica, já quando acontece entre animais de diferentes espécies é a competição interespecífica. Assim, a competição é qualquer uso ou defesa de um recurso por um indivíduo que reduz sua disponibilidade para outros indivíduos.
O recurso seria qualquer substância ou fator que é consumido por um organismo. Nesse aspecto, não apenas água e alimento constituem recurso, mas também lugares para esconderijos e mesmo disponibilidade de parceiros sexuais pode ser considerado recurso, pois o uso por determinados indivíduos os indisponibilizam para outros. Como os recursos podem ser ou se tornar escassos, visando garantir sua sobrevivência, diversos animais tendem a defender os recursos por eles utilizados. Essa defesa culmina na competição despótica entre os indivíduos e, como vários recursos estão distribuídos espacialmente, determinadas espécies que os utilizam desenvolveram mecanismos comportamentais que visam garantir a sua utilização exclusiva. A territorialidade se inclui nesse mecanismo.
Assim, em termos ecológicos, território é qualquer área defendida por um ou mais indivíduos contra a invasão por outros da mesma espécie ou de espécies diferentes. No entanto, embora sua defesa garanta os recursos necessários à sobrevivência do indivíduo, ela também demanda custos, sejam eles energéticos ou potenciais riscos de injúrias durante a defesa. Como meio de maximizar a defesa e minimizar os custos e os riscos, as espécies territorialistas desenvolveram uma ampla gama de comportamentos que visam demarcar a área de seu território e, também, informar a possíveis competidores seu interesse e vigor em defendê-lo. Nesse aspecto, todos certamente já observaram os cães se esmerando em urinar o mais alto possível buscando informar aos outros canídeos da área o seu pretenso tamanho – em ambientes naturais, aqueles espécimes menores evitariam o confronto por poderem, pela altura da urina, estimar o tamanho do oponente. Como ganho energético, aquele que demarca o território não precisa estar constantemente rechaçando os espécimes mais fracos, pois avisados da superioridade do outro, eles não invadirão o território.
Como a maioria das aves não possui o trato olfativo bem desenvolvido, os sinais sonoros se tornaram um meio mais eficaz de delimitar territórios, demarcando suas fronteiras. Ressalta-se que, tanto os galos quanto canários-da-terra, ambas aves territorialistas, possuem o canto como mecanismo de delimitação do território. Esses sinais de “mantenha distância” reduzem o trabalho defensivo do dono do território ao diminuir o número de invasores.
A atuação do canto na defesa do território foi demonstrada por estudo desenvolvido na Universidade de Oxford. O macho territorial do chapim-grande foi retirado de seu território e as áreas recém-vagas foram logo ocupadas por outros machos que não tinham território. Entretanto, quando o território vazio foi defendido por um alto-falante reproduzindo os cantos dos chapins-grandes machos, a ocupação foi muito mais lenta do que se estivesse vazio ou defendido por um alto falante com um som diferente. Contatou-se, assim, a importância do canto em defender o território.
Consequentemente, a utilização desses animais em rinhas não é natural e a luta somente ocorre devido à manipulação de uma série de variáveis que em ambiente natural inibiriam ou mesmo evitariam a contenda. Entre as variáveis manipuladas pelos criminosos, citam-se:
– os animais são colocados no “tambor” (arena de luta) ou na gaiola de rinha (no caso dos canários). Como a área é estranha e não pertence a nenhum deles, ambos se vêem compelidos à disputa pela posse do novo território. No ambiente natural, o dono do território possui muito mais disposição em defender seu domínio que o invasor em conquistá-lo. Isso diminui a possibilidade de confrontos entre ambos e, portanto, de ferimentos;
– os animais são emparelhados para a luta em igualdade de condições (peso) a fim de que um não leve vantagem sobre o outro. Isso, a princípio, poderia parecer uma consideração dos apreciadores de rinhas para com os animais. Porém, a situação criada é extremamente artificial, pois em ambiente natural raramente haveria necessidade ou coincidência de confronto entre dois espécimes de mesmo porte. Usualmente, cada um conseguiria definir um bom território que seria defendido contra espécimes de porte menor. E esses, após avaliarem as condições do oponente, não optariam pela disputa;
– os animais são atiçados uns contra os outros. Evidente que em ambiente natural esta situação não ocorre;
– utilização de esporas artificiais e biqueiras de metal, no caso dos galos.
A essas questões, soma-se a seleção artificial promovida pelos criadores que privilegiam a reprodução dos animais que demonstrem mais instinto territorialista. Esse instinto se traduz em maior disposição da ave para a contenda. Alguns criadores defendem a rinha como mecanismo de selecionar os animais que seriam utilizados como reprodutores. Tal argumento demonstra a intenção de promover lutas e não apenas de manutenção da espécie.
Portanto, como se pode observar, não existe amparo legal ou mesmo técnico-biológico que respalde as brigas de galo ou de canários-da-terra. Elas apenas constituem uma prática cruel, abominável e ilegal contra os animais.