Por Carlos Eduardo Tavares da Costa
Biólogo, bacharel em Direito e agente de Polícia Federal
nalinhadefrente@faunanews.com.br
O Brasil, em razão de fatores geográficos e climáticos, se encontra na região com maior biodiversidade do planeta. Temos uma grande responsabilidade relacionada à tutela ambiental. Pouco se fez, nos últimos trinta anos, para mudar o dramático fato de que nossos espécimes têm sido “despejados” de seus biomas e explorados criminosamente de várias maneiras.
Como biólogo, cabe a mim lembrar que fauna é um elemento imediatamente integrado a um habitat e parte do conjunto de fatores bióticos e abióticos que compõem um ecossistema. Tudo isso dá sustentação à diversidade biológica.
Quando tratamos de crimes contra a fauna, a ausência de dados estatísticos confiáveis e a quase completa falta de compilação e organização das pretensas informações nos colocam diante de uma cegueira inconteste. Não tínhamos, e ainda não temos, de maneira razoável, dados sobre modus operandi, rotas, quadrilhas e volume de animais envolvidos. Me lembro, no início dos trabalhos do primeiro núcleo de crimes ambientais da Polícia Federal, no início dos anos dois mil, quando as “informações” davam conta de que o estado do Rio de Janeiro concentraria uma grande quantidade de animais capturados ilegalmente e que, posteriormente, deixariam o país com destino aos mercados do Primeiro Mundo.
Diante dessa alegação, fomos estudar as principais espécies envolvidas e como chegariam ao Estado. Os números não correspondiam. O volume estimado (estimativa rudimentar) de espécimes traficados e oriundos das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste era bem superior ao número de animais apreendidos, ainda que somadas todas as apreensões dos órgãos envolvidos em tal repressão. Onde estariam os animais excedentes? A fiscalização estaria sendo contornada? Talvez enganada? Os animais estariam sendo pseudolegalizados? Sendo assim, deveríamos identificar quem forneceria marcações e documentos.
Esse é um pequeno exemplo pelo qual passamos, apenas em nível regional. Imaginemos, agora, as dificuldades encontradas em um território de mais de oito milhões de quilômetros quadrados, com modelo federativo e com unidades sem recursos e preparo devido para operar o assunto. Quando obtivemos, junto com os primeiros dados (ainda rudimentares), informações mais consistentes sobre comércio de animais silvestres, dados aqueles oriundos do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), nosso horizonte se abriu.
Vários criadores de caráter comercial e conservacionista apresentavam irregularidades administrativas junto ao órgão. Ao oficiarmos o Instituto para saber quantos desses estabelecimentos, dentro do universo de criadores, detinham ou não o devido registro para operar, descobrimos que o número deles sem a devida outorga superava aos registrados. Fazendo verificação in loco, descobrimos que mesmo os “sem registro” mantinham um plantel. Ali se encontrava boa parte dos animais “perdidos” no sistema e que não contavam com um histórico documental ou marcações que comprovassem origem legal.
A análise de dados e a evolução empírica nos sugeriram a hipótese de que muitos daqueles criadores – legalizados ou não – de fauna silvestre brasileira estariam utilizando suas atividades para encobrir o tráfico de animais. Conclusão óbvia? Tais estabelecimentos fariam parte do “sistema” contributivo para o comércio ilegal de animais em nosso território.
Mas por qual motivo existem estabelecimentos oficializados pela administração – então federal – voltados à criação de animais silvestres? De onde surgiu a ideia de que se criássemos animais silvestres em cativeiro poderíamos reduzir o impacto sobre a natureza?
O Código Civil de 1916 tratava os animais como um bem móvel, denominados semoventes. Em seu artigo 593, eram denominados de coisas. Eram, enfim, uma propriedade. Os animais podiam ser adquiridos pela caça, pesca ou abandono. A Lei 5.197 de 1967, denominada erroneamente de Código de Caça, trazia em seu artigo 6°, a decisão do Poder Público de estimular a construção de criadouros “destinados à criação de animais silvestres para fins econômicos e industriais”. Em 1976, a Portaria 031/1976-P, do extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), determinava a todos os criadores de pássaros “indígenas” (termo usado na ocasião e que significava: silvestre), a filiação a confederações e federações de pássaros. Na mesma normativa, em seu artigo 7°, era proclamada a total liberdade para transporte dentro do território nacional de fauna alienígena (exótica). Finalmente, a partir do ano de 1978, a Portaria 130/78-P, do IBDF, regulamentava a criação de fauna nativa (silvestre brasileira) em cativeiro.
As modificações administrativas se seguiram e, em 1988, exigências de marcação/identificação dos animais foram incluídas. Nesse momento, invertebrados e anfíbios, não apenas as aves, fariam parte dos planteis dos criadouros. Observemos que as normativas, até então, balizavam obrigações por parte de quem desejava criar e comercializar animais nativos. A partir do momento em que concessões foram introduzidas, as falhas no “sistema” começaram a se evidenciar.
As federações de pássaros passaram a ficar responsáveis por coordenar um número mínimo de clubes, associações ou sociedades amadoras. As marcações, leia-se anilhamentos de pássaros, passaram para sua responsabilidade, tendo como base informações prestadas por essas mesmas organizações. Em havendo descontrole – adulterações e falsificações – nas marcações, seguiu-se o descontrole dos registros de nascimentos, mortes, transportes, etc. Os traficantes de animais perceberam que em um ambiente descontrolado poderiam aproveitar para introduzir nos criadouros animais retirados da natureza, já que a captura para fins conservacionistas e comerciais estava proibida nos habitats.
Iniciou-se a “Era da Lavagem”.
O “sistema” se adaptou para o mau. A ideia de suprir um mercado ávido por animais e partes de animais com criações em cativeiro apenas forneceu mais um meio de legalizar um tipo de crime.
A Lei 9.605 de 1998 ampliou o conceito de fauna silvestre. Como vimos, nossa legislação foi se adaptando, ao longo da história, aos novos conceitos sociais e econômicos. Os animais, mais propriamente os pertencentes à fauna silvestre brasileira, participaram de uma longa mudança de pensamento por parte dos legisladores, que com uma carência de entendimento biológico, e porque não dizer, ecológico, tentaram, desde usá-los como bens laborais, até, mais recentemente, tutelá-los como bem difuso.
REFERÊNCIAS
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– BRASIL. Lei 5.197, de 03 de janeiro de 1967. Dispõe sobre a proteção à fauna e dá outras providências. Publicada no D.O.U., Brasília, DF, em 05.jan.1967. Disponível em
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– BRASIL. Portaria 131/88 – IBDF, de 05 de maio de 1988 – “b”. Regulamenta o registro das Federações Ornitófilicas no IBDF e a participação de suas filiadas em concursos e exposições públicas. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 maio.1988, Seção 1, p. 8493.
– BRASIL. Portaria 132-P/88 – IBDF, de 05 de maio de 1988 – “c”. Regulamenta o registro de criadouros comerciais de espécies da fauna silvestre. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 maio.1988, Seção 1, p. 21.858.
– BRASIL. Portaria 139/93 – Ibama, de 29 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a implantação e funcionamento de criadouros de animais silvestres para fins conservacionistas. Publicada no D.O.U., Brasília, DF, n.º 250, em 31.dez.1993. Disponível em:
– BRASIL. Portaria 057/96 – Ibama, de 11 de julho de 1996. Normatiza as atividades dos Clubes Ornitófilos de passeriformes da fauna brasileira e das Federações Ornitófilas, devidamente registradas no IBAMA. Revoga a Portaria 631/91-P de 18 de março de 1991. Publicada no D.O.U., Brasília, DF, em 17.jul.1996. Disponível em:
– BRASIL. Portaria 118-N/97 – Ibama, de 15 de outubro de 1997 – “b”. Dispõe sobre o funcionamento de criadouros de animais da fauna silvestre brasileira com fins econômicos e industriais. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, n.º 200, 16.out.1997, Seção I, p. 23490.
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– CAPRI. Laudo Pericial 01/2005/Anilhas. Constata adulteração em anilhas.
– WORLD WILDLIFE FUNDATION (Org.). Relatório 2005. Brasília: [s.n.], 2005, [s.p.].