Por Lígia Takau
Repórter
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Novembro de 2020. Em uma das suas maiores operações de fiscalização já realizadas nas cidades do entorno do Parque Nacional Serra de Itabaiana (SE), ele e sua equipe apreenderam 575 animais em três dias. São experiências como essa que tornam o analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e atual chefe da Estação Ecológica de Murici (AL), Marco Antonio de Freitas, um dos profissionais mais combativos no Brasil contra o tráfico de fauna e a caça.
Geógrafo e especialista em Gestão Ambiental, Marco também é mestre em Zoologia Aplicada e doutor em Ciência Animal Tropical. Dos seus 50 anos, já dedicou 33 no combate ao tráfico de animais e à caça. Seu envolvimento com a fauna começou aos 14 anos, quando foi trabalhar no zoológico de Salvador. Aos 18, foi morar em uma reserva particular do patrimônio natural (RPPN) e três anos depois passou a atuar com turismo ecológico.
Durante sua jornada, Marco lidou com reflorestamento e cuidou dos animais silvestres apreendidos pelo então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), atual Ibama. Seu forte, como ele próprio destaca, é em conhecimento e atuação em áreas do Norte e do Nordeste do Brasil.
O sonho de Marco era entrar em uma instituição pública para trabalhar para a sociedade com foco na conservação da natureza, principalmente da fauna. Prestou concurso para o ICMBio em 2009 e foi chamado no ano seguinte para ser analista ambiental.
Começou sua trajetória no órgão passando pelas Reservas Extrativista Chico Mendes (AC) e pela Reserva Biológica do Gurupi (MA), seguindo para o Parque Nacional do Catimbau (PE), até chegar à estação ecológica (Esec) em que sempre teve vontade de trabalhar: a de Murici (AL) – dia 13 de janeiro completará quatro anos lá.
Marco conversou com o Fauna News e contou como é o trabalho que desenvolve para defender os animais silvestres em uma unidade de conservação.
Fauna News – Qual é a história e a realidade da Esec de Murici?
Marco Antonio de Freitas – A Esec de Murici foi criada em 2001, no governo FHC, por um pedido pessoal do príncipe Charles que, enquanto elite inglesa praticante de birdwatching, teve sua atenção voltada para a área mais importante das três Américas em número de espécies de aves endêmicas e ameaçadas de extinção. Porém, desde a sua criação, a estação sempre foi renegada a segundo plano, nunca ninguém investiu em regularização fundiária para que ela tivesse sua primeira sede em campo.
Fauna News – Você poderia nos contextualizar sobre o trabalho da Esec de Murici com os municípios e as comunidades?
Marco Antonio de Freitas – Nesse sentido, antes mesmo de falar da estação ecológica de Murici, que engloba três municípios, falemos da Área de Proteção Ambiental (APA) de Murici, que engloba dez municípios. Ela conta com 133 mil hectares, foi criada para a conservação de nascentes e dos remanescentes de Mata Atlântica, sendo o maior fragmento ao norte do rio São Francisco, e engloba a Esec.
A estação, apesar de estar dentro de terras latifundiárias, abrange poucas casas, então não temos residências que causem problemas sérios. O que fazemos hoje é um trabalho conjunto com a APA e o Instituto do Meio Ambiente (IMA) para proteger a área como um todo. Assim, estamos sempre em contato com os moradores dos assentamentos, pequenos e médios proprietários e latifundiários do entorno para espalhar a ideia de proteção da Mata Atlântica e, aos poucos, criar uma cultura.
Fauna News – Acompanhando suas postagens em redes sociais, verifica-se um intenso trabalho de combate à caça. A caça de animais da região ocorre por um fator cultural, o de se alimentar com a carne da caça como iguaria, ou realmente por uma questão de matar fome?
Marco Antonio de Freitas – A questão cultural da caça no Nordeste é muito forte. Toda caça praticada, até pelo nordestino pobre, é uma caça esportiva. Caça de subsistência no Nordeste não existe e quem pratica a caça tem fartura nos quintais: aves domésticas, porcos, ovelhas, bois, criação de peixes, produção de frutas, etc. Não existe fome na região, exceto nas cidades. O que se fala muito é o seguinte: “vou caçar pra tomar com cachaça”. Ou seja, é um tira gosto, é a “farra” dessa pessoa. E tem uma parte da caça que é para venda, para abastecer o comércio de carne de caça, que também é uma coisa real e que existe na região. Nesse caso, a carne vai para classe média alta que vive nas cidades.
Fauna News – E em relação à captura de animais silvestres vivos? Ela é praticada por pessoas que querem ter esse tipo de animal em casa ou existe uma pequena indústria do tráfico organizada?
Marco Antonio de Freitas – Também é forte no Nordeste a questão cultural de ter pássaros silvestres dentro das residências. Em quase quatro anos, a gente encontrou entre quatro e cinco residências onde ficou muito caracterizada a captura e o armazenamento para venda de pássaros de florestas, inclusive de espécies ameaçadas de extinção. Então tem sim um comércio, tanto para fornecer passeriformes (passarinhos) de florestas, que é o mais comum, como também passeriformes de áreas abertas de pastagem. Além da problemática da manutenção ilegal, na zona da mata do Nordeste, de espécies que vêm do bioma Caatinga.
Fauna News – Qual é a metodologia de trabalho que vocês empregam no combate à caça e ao tráfico de animais na área?
Marco Antonio de Freitas – Nós realizamos reuniões técnicas, um bate-papo, com algumas comunidades, principalmente assentamentos, explicando o que pode e o que não pode ser feito. Aliado a isso, começamos o trabalho de recolhimento de pássaros silvestres, de armadilhas e de armas. O artigo 24 do Decreto nº 6.514 de 2008, no seu 4º parágrafo, diz que todo e qualquer agente pode apreender, sem multa, as espécies que não forem ameaçadas de extinção, no caso de passeriforme. Então fazemos o recolhimento educativo, que, na verdade, funciona muito.
Para manter isso, tem que ter sequência de trabalho, ou seja, rondas semanais. Hoje temos rondas seis dias por semana. A presença institucional dos brigadistas, por exemplo, fazendo monitoramento de fogo, mas ficando de olho no tráfico e na caça, faz com que as pessoas vão entendendo de forma boa ou de forma ruim que aquilo é errado. Já as operações acontecem a cada dois meses. Tudo isso muito associado à mídia. Dessa forma, quem não viu ou não soube da operação, fica sabendo através da televisão.
Fauna News – Como funcionam, na prática, os recolhimentos, apreensões e operações?
Marco Antonio de Freitas – Tem que ter certa paciência. Em muitas situações só tem recolhimento de arma e advertência verbal. Em outras acaba tendo prisão. Entrando, saindo ou dentro da estação, a tolerância é zero: encontrou com caça e com arma, vai ser conduzido para delegacia por porte ilegal de arma. Já fora, no entorno, procuramos recolher. A não ser que a pessoa tenha um conjunto de coisas: caça na geladeira, armas, pássaros…
Na operação do mês de novembro, prendemos oito indivíduos em residências próximas e com armadilhas e alçapões. Em uma casa de traficante havia 27 pássaros, um tatu na geladeira, uma espingarda calibre 16, sendo que um ano e pouco atrás ele já havia sido multado em seis mil reais e teve sua bicicleta apreendida. O caso será publicado no Diário Oficial do Estado porque ele está foragido.
Por isso, mesmo nos municípios fora da APA de Murici, acabamos fazendo apreensões em feiras, recolhimento educativo e aplicações de multas, porque é muito comum as pessoas reincidirem. Tudo sempre aliado à imprensa, para que possamos, cada vez mais, ampliar as operações envolvendo cativeiros ilegais de animais.
Fauna News – Quais são as características dos ecossistemas da Esec de Murici? Qual riqueza de fauna vocês estão se esforçando para defender?
Marco Antonio de Freitas – A Estação Ecológica de Murici tem 6.131 hectares e um recorte em formato Z, fazendo com que tenha um perímetro direto de mais de 70 quilômetros. Nas rondas, no entanto, o perímetro acaba sendo muito maior. Tem como bioma a Mata Atlântica Ombrófila e Montana e começa, em algumas áreas, entre 120 e 130 metros de altitude. Há trechos mais altos, em duas serras, chegando a 640 metros de altitude. Possui muitas lianas, cipós, bromélias e plantas que vivem da umidade noturna, da chuva orográfica ou do vapor da umidade.
A fauna é extremamente rica. São pouco mais de 40 espécies ameaçadas de extinção nas listas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e do Ministério do Meio Ambiente (lista oficial de 2014). A riqueza consiste, como já citado anteriormente, no fato de ser o maior fragmento da Mata Atlântica ao norte do Rio São Francisco e a área mais importante das três Américas em número de espécies de aves endêmicas e ameaçadas de extinção. A preocupação principal é com essas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção, como o pintor-verdadeiro, que é a espécie ameaçada mais traficada (foram 25 em quatro anos) e o cuandu-mirim, que é a espécie ameaçada mais caçada.
Das 121 carcaças registradas entre 2017 e 2020 na região de Murici, envolvendo 16 espécies caçadas e consumidas, o tatu-verdadeiro está em primeiro lugar com 48 registros. Em segundo está o cuandu-mirim com 17 registros. É muita coisa para uma espécie ameaçada.